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DNA: edição genética ainda desperta inúmeras controvérsias | Pixabay
DNA: edição genética ainda desperta inúmeras controvérsias| Foto: Pixabay

Pela primeira vez, cientistas conseguiram usar uma técnica de manipulação do DNA para eliminar um gene mutante causador de doença em embriões humanos, substituindo-o por uma versão saudável, sem provocar complicações ou mudanças genéticas indesejadas. Publicada na revista Nature, a iniciativa lida, no entanto, com o descarte de embriões - um ser vivo que, mesmo nos primeiros estágios de desenvolvimento, têm valor na espécie humana e, por isso, deve ter seus direitos preservados.

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“Esse resultado poderá ser usado para evitar a passagem de doenças genéticas para as futuras gerações”, disse a pesquisadora americana Paula Amato, da Universidade de Ciência e Saúde do Oregon (OHSU, na sigla em inglês), uma das autoras do trabalho. Ela ressalva que mais testes são necessários para aperfeiçoar a técnica e garantir sua segurança.

“Nosso estudo não previa, nem pretendia, levar nenhum embrião a termo”, acrescentou outro responsável pela pesquisa, Shoukhrat Mitalipov, também da OHSU. “Mas, se houvesse transferência dos embriões para um útero, e a gravidez se completasse, haveria implicações para as gerações futuras: os filhos dessas pessoas não levariam a mutação adiante, e a doença estaria erradicada dessa linhagem, dessa família”. 

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O trabalho, que também contou com autores da China e da Coreia do Sul, usou uma técnica de edição genética para eliminar, dos embriões, uma versão mutante do gene MYBPC3, responsável pela doença hereditária cardiomiopatia hipertrófica (CMH), um problema do coração que pode levar à morte e que afeta cerca de 1 em 500 pessoas. Trata-se da doença do coração de origem hereditária mais comum. 

A técnica de edição, conhecida como CRISPR-Cas9, permite remover e substituir trechos de uma fita de DNA selecionados com alta precisão. O CRISPR-Cas9 é formado por uma enzima que realiza cortes no DNA e um fragmento de RNA que funciona como “guia”, levando a enzima até o alvo correto dentro do genoma. Seu desenvolvimento, principalmente ao longo da última década, desencadeou uma revolução na área de manipulação genética. 

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A despeito do potencial revelado pelo estudo divulgado agora na Nature – é possível, por exemplo, que a mesma técnica possa ser usada para eliminar a predisposição genética para certos tipos de câncer de mama –, a abordagem adotada pelos pesquisadores é polêmica. Envolve não só a manipulação e destruição de embriões humanos, como também modificações na chamada linha germinativa: altera não apenas os genes do indivíduo tratado, mas também os que ele passará para seus descendentes. Desta forma, o resultado da manipulação torna-se parte do patrimônio genético coletivo da humanidade. 

Nos Estados Unidos, o uso de verbas federais para estudos com embriões humanos é altamente restrito, e a FDA, órgão que supervisiona as pesquisas médicas no país, está proibida, por decisão do Congresso, de sequer contemplar testes clínicos que envolvam modificações da linha germinativa humana. 

A cientista pioneira nos estudos do método CRISPR, quando testes ainda estavam longe de envolver embriões, Jennifer Doudna, é umas das pesquisadoras que se mostram preocupadas em relação aos limites de aplicação da tecnologia.  No início de 2014, ela detalhou como pesquisadores manipularam pela primeira vez o genoma em embriões de macacos. Desde então, a cientista não é procurada apenas por quem quer ajuda, mas também por mães de crianças com síndrome de Down que lhe disseram amar os filhos delas e não desejarem mudar nada neles. “Isso te faz pensar profundamente no que significa ser humano, não?”, disse Doduna, em entrevista ao jornal The Washington Post, sobre o lado obscuro da manipulação genética e os riscos de “seleção de pessoas” envolvendo a prática.

Diagnóstico 

Pelo menos três tentativas anteriores de usar o sistema CRISPR-Cas9 para eliminar genes responsáveis por doenças em embriões humanos já haviam sido realizadas, incluindo um trabalho pioneiro conduzido na China em 2015, mas sem sucesso: nesses testes, detectaram-se casos de mosaicismo – quando a correção do genoma funciona em apenas uma fração das células embrionárias, enquanto outras preservam o gene problemático – e também edições indevidas, afetando partes do DNA que não eram visadas pelo tratamento. Nenhuma dessas dificuldades apareceu no novo estudo. 

As tentativas prévias haviam adotado a estratégia de introduzir o CRISPR-Cas9 em embriões já formados. O trabalho descrito na Nature usou uma abordagem nova, inserindo o fator de edição no óvulo ainda não fecundado, juntamente com o espermatozoide. Foi o que fez a diferença. 

Os autores utilizaram óvulos saudáveis, doados por voluntárias jovens, e esperma de um portador da versão defeituosa do gene MYBPC3. O doador masculino era heterozigoto para esse gene, o que significa que suas células contêm uma cópia mutante e uma cópia normal do MYBPC3. Nessas condições, seria de se esperar que 50% dos embriões produzidos tivessem o gene ruim e a outra metade fosse saudável. Com o CRISPR-Cas9, a proporção com genoma saudável chegou a quase 73%, ou 42 de 58 embriões testados. 

Paula Amato disse que o processo, caso venha a ganhar mais eficiência, poderá representar um complemento poderoso para a técnica de Diagnóstico Genético Pré-Implantacional (PGD), em que embriões gerados por fertilização in vitro são submetidos a uma triagem para problemas genéticos, antes da implantação no útero. 

“Nossa tecnologia tem potencial para ser um avanço sobre a PGD sozinha, caso se mostre segura”, afirmou, apontando que uma proporção maior de embriões saudáveis significa que menos óvulos teriam de ser extraídos da mulher. “Isso reduz o número de ciclos de ovulação necessários, de ovulação estimulada, para obter o número de embriões saudáveis necessários para a implantação. O que traz menos risco para as mulheres na fertilização in vitro, principalmente para as mulheres mais velhas”. 

Teste clínico 

Uma taxa de pelo menos 90% de sucesso na correção do DNA embrionário foi citada por Mitalipov como uma das pré-condições para levar a técnica ao estágio de teste clínico. “Testes clínicos envolveriam transplantar alguns desses embriões, estabelecer que a gravidez aconteceu, monitorar o nascimento da criança e, se possível, acompanhar seu crescimento”, descreveu. 

“Mas não está claro como esses testes poderiam proceder. Dependeria das agências regulatórias. A FDA está fora de questão aqui nos EUA, e não está claro como outros países reagiriam. Em alguns casos, talvez fosse preciso mudar leis. Não está claro quando teríamos permissão para prosseguir”, lamentou. 

Mitalipov é conhecido por testar os limites técnicos e éticos da ciência da manipulação genética. Em 2007, também na Nature, ele anunciou a criação dos primeiros embriões clonados de primatas, no caso, macacos. E em 2013, na revista Cell, publicou artigo descrevendo o uso de técnicas de clonagem para produzir células-tronco personalizadas, específicas para um paciente. 

Cópia da mãe 

Além do espermatozoide e do CRISPR-Cas9, os óvulos receberam também um “gabarito”, uma versão saudável do MYBPC3. Pesquisas anteriores realizadas em animais, bem como testes com células humanas de pluripotência induzida (iPS) – células adultas tratadas para desenvolver características semelhantes às embrionárias – indicavam que o gabarito seria necessário para guiar o conserto do trecho de DNA rompido na edição. 

Mas os embriões humanos reagiram de modo diferente: em vez de usar o modelo fornecido pelos cientistas, eles consertaram as brechas abertas pelo CRISPR-Cas9 copiando a versão saudável do gene que estava presente no DNA do óvulo. “Fiquei surpreso ao ver que os embriões humanos não aceitaram o gabarito”, disse Mitalipov. “Quando fizemos o mesmo trabalho em células iPS, elas assimilaram o gabarito, e essa era a nossa expectativa de como os embriões reagiriam. Mas, nos embriões, vimos que eles preferem o alelo da mãe”. 

Esse fato, dizem os autores do estudo, torna a técnica potencialmente útil para eliminar qualquer uma das diversas doenças hereditárias que se manifestam na presença de apenas uma cópia do gene defeituoso, já que permite que a cópia saudável, quando naturalmente presente, seja usada para substituir a versão mutante. “Os genes BRCA1 e BRCA2, por exemplo, envolvidos no câncer de mama, são desse tipo”, citou Mitalipov. 

“Este caso mostra que é preciso fazer experimentos em embriões humanos”, acrescentou o pesquisador. “Muitas pessoas dizem que, com as iPS, não seria mais necessário usar embriões em pesquisa. Mas esse caso mostrou que as iPS são diferentes e é preciso fazer pesquisa em embriões, a despeito de todas as limitações e questões éticas”. 

Preocupação 

Para além das possíveis implicações médicas, que ainda dependem de novos experimentos e da superação das barreiras regulatórias, o trabalho publicado na Nature traz uma prova de conceito de que a técnica CRISPR-Cas9 pode ser uma ferramenta viável para alterar o genoma humano, o que para algumas pessoas abre caminho para um mundo de “designer babies”, onde os pais, principalmente os mais abastados, poderão escolher características genéticas dos filhos, como cor dos olhos ou aptidão física. 

Perguntado sobre essa possibilidade, Mitalipov respondeu que “nosso programa é corrigir genes mutantes. Acreditamos que é preciso debater e traçar uma linha, decidir o que deve ser tratado e o que não constitui doença”. 

Um relatório enviado ao Senado dos EUA no ano passado pelo então Diretor de Inteligência Nacional dos Estados Unidos, James Clapper, apontava a edição genética de embriões humanos como uma ameaça de segurança, classificada sob a rubrica “armas de destruição em massa”.

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