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Nicole – internada em decorrência de uma estomatite e diagnosticada recentemente com autismo – fica animada com a chegada do Doutor Adalberto Pé de Chinelo e da Doutora Clara Quase | Luiz Fernando Cardoso/Gazeta do Povo
Nicole – internada em decorrência de uma estomatite e diagnosticada recentemente com autismo – fica animada com a chegada do Doutor Adalberto Pé de Chinelo e da Doutora Clara Quase| Foto: Luiz Fernando Cardoso/Gazeta do Povo

“Ela está interagindo! Normalmente ela não brinca com ninguém”. A fala de uma mãe, naturalmente preocupada com a recuperação da filha internada há dias, exprime bem a atmosfera de alegria que toma conta do quarto de hospital quando os doutores palhaços chegam, trajando jalecos brancos com remendos coloridos, calças xadrez, de porte do tradicional nariz vermelho e com música e apetrechos de todo tipo para garantir a diversão.

A mãe é a dona de casa Kamyla Foque, que ficou boquiaberta diante da reação da pequena Nicole – internada em decorrência de uma estomatite e diagnosticada recentemente com autismo – com a chegada do Doutor Adalberto Pé de Chinelo e da Doutora Clara Quase. Os personagens são interpretados pelos atores Hudson Zanoni e Lilian Gadani, pioneiros do projeto Terapia da Alegria, que inclui outros 13 palhaços e visita 50 crianças e 200 adultos por semana.

Nossas convicçõesÉtica e a vocação para a excelência

“Normalmente ela não interage com as pessoas, por causa do autismo, mas com eles [palhaços] ela está interagindo”, disse Kamyla à reportagem da Gazeta do Povo, que acompanhava in loco o trabalho do Terapia da Alegria na tarde de 23 de julho, no Hospital Municipal de Maringá. “Eles trazem alegria para as crianças, que ficam tristes por estarem fechadas num quarto de hospital”, acrescentou a mãe, enquanto a filha seguia entretida com bolinhas de sabão e alguns lances de mágica. 

No quarto seguinte, a pequena Agatha teve, de súbito, o choro substituído por olhar arregalado e curioso assim que avistou os palhaços Pé de Chinelo, com seu violão, e Clara Quase, com um pequeno xilofone. “Isso ajuda a criança a se recuperar, trocando o choro pelo sorriso”, disse a cozinheira Ana Carolina Araújo da Silva, mãe da menina internada com pneumonia. 

Ainda que por apenas alguns instantes, tudo muda para melhor quando os pacientes – crianças e também adultos – se deparam com o humor inesperado de um projeto sem fins lucrativos que há 15 anos percorre unidades de saúde de Maringá. Atualmente, além do Hospital Municipal, os 15 palhaços voluntários se revezam em duplas nas ações semanais na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Zona Sul, no Asilo Luzamor e no Hospital Psiquiátrico de Maringá. 

Alcance

Nos cálculos do Terapia da Alegria, Nicole, Agatha e outros pacientes visitados naquela tarde entram para uma lista de mais de 10 mil pessoas alcançadas pelos doutores palhaços. “Diretamente ou indiretamente, considerando livro, documentários, oficinas de palhaços em hospitais, vídeos no YouTube e postagens em redes sociais, foram alcançadas mais de 1 milhão de pessoas nesses 15 anos”, contabiliza Hudson Zanoni, líder do projeto. 

No Hospital Municipal, que recebe a visita dos doutores palhaços duas vezes por semana, tudo começa numa pequena salinha, onde os atores se vestem e se maquiam. Em seguida, os palhaços iniciam suas atividades junto às enfermeiras do turno para saber se a entrada em todos os quartos está liberada e se há orientações especiais para alguns pacientes ou restrições médicas. 

Nossas convicçõesOs responsáveis pelo bem comum

Entre um quarto e outro, os doutores palhaços interagem com quem encontram no corredor: enfermeiros, médicos, mães e visitantes a caminho dos quartos. “A gente percebe que esse trabalho faz bem não só para os pacientes, mas também para quem está acompanhando o enfermo e para os funcionários, porque na alegria se esquece dos problemas”, disse Aldair de Assis Vieira, capelão do Hospital Municipal. 

Aquela visita ao hospital percorreu vários quartos e terminou com cantigas ao som do violão com algumas funcionárias, no intervalo para o lanche; e com o pedido do capelão para que os doutores palhaços visitassem o local também aos domingos. Um pedido que esbarra nas limitações do voluntariado. 

Dedicação em tempo integral

Segundo os atores, o desejo dos integrantes do Terapia da Alegria de ampliar ainda mais o projeto esbarra na falta de tempo. Todos no grupo têm suas profissões, famílias para sustentar e boletos a pagar todo início de mês. “Seria uma realização ficar em tempo integral com aquilo que amamos fazer. Esse é nosso sonho”, diz Lilian, atriz e animadora de festas infantis. 

Assim como Zanoni e outros membros mais antigos do projeto, muitas vezes Lilian precisou tirar do próprio bolso para que as atividades do Terapia da Alegria prosseguissem de forma ininterrupta desde o primeiro paciente visitado. 

Em abril deste ano, o Terapia da Alegria teve reconhecimento internacional. Integrantes do projeto foram convidados a dar uma plenária no encontro mundial de palhaços em hospitais, em Viena, na Áustria. O assunto abordado pelo grupo de Maringá foi “O Palhaço no Lugar do Caos”. 

“Falamos de nosso projeto dentro dos hospitais e das ações humanitárias, porque algumas pessoas do Terapia da Alegria fazem viagens humanitárias como voluntários. A Lica [Lilian Gadani], por exemplo, já esteve no Haiti, e eu já estive na África, na Jordânia e no Nepal trabalhando com refugiados”, conta Hudson Zanoni. 

No encontro mundial, o contato com 400 palhaços de 50 nações acabou fomentando nos integrantes do Terapia da Alegria o anseio de se dedicar integralmente ao projeto. O caminho para a realização desse sonho passaria pela profissionalização dos então voluntários, o que permitiria ampliar o atendimento do projeto nas unidades de saúde. 

“Com remuneração, consigo aumentar o tempo desse palhaço no hospital, deixando a unidade de saúde o tempo todo com um palhaço”, diz Zanoni, profissional com formação em marketing e que, atualmente, trabalha como professor de teatro. 

Sonho para maringaenses, realidade em outros grupos de doutores palhaços. “O que vimos nesse congresso na Áustria é que fora daqui, especialmente nos países desenvolvidos, os palhaços em hospitais são todos remunerados, o que aqui no Brasil é o caso dos Doutores da Alegria”, comenta Zanoni, citando os palhaços em hospitais que são referência nacional e que inspiraram a criação do projeto maringaense. 

Quando o Terapia da Alegria se profissionalizará? Zanoni e Lilian não têm a resposta, mas nesse caminho o projeto deu um importante com a conquista do título de utilidade pública, concedido pela Câmara Municipal de Maringá em 12 de julho. Além de facilitar a obtenção de apoio do poder público, o título garante algumas isenções, como a de taxas da conta bancária. Para um projeto que sobrevive com poucos apoiadores, toda ajuda é bem-vinda. 

ENTREVISTA 

“Não imaginávamos que Lei Rouanet seria tão difícil” 

Gazeta do Povo – O Terapia da Alegria recebe algum tipo de apoio financeiro? 

Hudson Zanoni – Durante mais de dez anos, todo o investimento era pessoal. Nos últimos anos que começamos a contar com mantenedores e pequenos patrocinadores, mas antes sempre foi do nosso bolso.  

Vocês já tentaram recursos via Lei Rouanet? 

Já fomos aprovados na Lei Rouanet, e estamos agora na fase de capacitação de recursos junto a empresas. Achávamos que era uma coisa mágica, mas é muito difícil essa segunda fase. Não conseguimos nem 10% dos recursos necessários. Nossa ideia é dar uma ajuda de custo para os palhaços, porque o projeto é voluntário. Os membros têm custos como de figurino, maquiagem, com instrumentos musicais, cursos, combustível para vir para cá (hospitais). Temos um espaço chamado Camarim, onde guardamos nossas coisas, e tem ainda o aluguel desse lugar.

Há uma grande rotatividade no projeto pelo fato de ser voluntário? 

Não tem uma rotatividade grande pelo fato de os participantes serem selecionados. Recebo convites toda semana. Vejo que as pessoas querem fazer o bem, mas nem todos estão dispostos a se capacitar. Todos os nossos integrantes são atores, são palhaços treinados. Eu sou ator e palhaço profissional, com DRT. Palhaço é profissão também. Pelo fato de nosso grupo ter essa capacitação, nosso grupo não tem essa rotatividade.

O projeto tem um livro publicado. Ele é comercializado? 

O livro “Diário de Bordo” [77 páginas, publicação independente], de 2017, teve tiragem de 30 mil exemplares. Desse total, 20 mil livros foram entregues gratuitamente para crianças das escolas públicas de Maringá e nos hospitais, e 10 mil estão sendo vendidos. São 31 histórias, uma para cada dia do mês, todas elas baseadas em visitas aos hospitais e contadas pelos palhaços do projeto. Os textos têm ilustrações de Guilherme Match, de Curitiba.

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