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Sem discrição

Acima da lei? Ministros do STF violam a legislação ao comentar processos em andamento

Presidente do STF, Luís Roberto Barroso fala com jornalistas após reunião com o comandante Geral da Policia Militar de São Paulo, coronel Cássio Araújo Freitas, na sede do COPOM (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

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A conduta pública dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) tem ultrapassado a discrição exigida pelo cargo.   

É cada vez mais comum que ministros do STF apareçam em entrevistas para dar sua opinião sobre processos em andamento, temas que irão julgar e até mesmo mandar recados por entrevistas ou criticar colegas e seus votos em público.  

Mas não é porque isso está se tornando corriqueiro que, de fato, é “normal”. De acordo com a Lei Orgânica da Magistratura, é vedado aos juízes, desembargadores e ministros opinar, por qualquer meio de comunicação, sobre processo, voto seu ou dos colegas ou fazer juízo depreciativo sobre despachos.

As aparições públicas e o disse-me-disse não são de hoje e fazem parte do perfil mais ativista recente do Judiciário brasileiro. Nos últimos meses, entretanto, o que era proibido se tornou praticamente praxe.  

Para juristas ouvidos pela reportagem, essa mudança pode minar a imparcialidade nos julgamentos, fomentar a política de um órgão que não tem esta função e comprometer a elegância nos debates que se espera entre juízes da mais alta corte do país.  

O que diz a lei  

A Lei Orgânica da Magistratura (Loman) determina as diretrizes para juristas, juízes e ministros para garantir a independência e a imparcialidade no exercício de suas funções.

Seus deveres incluem, por exemplo, “cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício” e “não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar”.  

O artigo 36, especificamente, deixa claro que é vedado aos magistrados “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.”

A discrição sobre processos e colegas é tão relevante que também consta no Código de Ética dos Magistrados, um guia complementar à Loman para nortear o judiciário brasileiro.  

O Código de Ética ressalta que “cumpre ao magistrado, na sua relação com os meios de comunicação social, comportar-se de forma prudente e equitativa, e cuidar especialmente para que não sejam prejudicados direitos e interesses legítimos de partes e seus procuradores”. 

Ambos sugerem que os magistrados apresentam decoro e coerência em seu comportamento geral. A Lei é de 1979, quando não havia redes sociais, mas o Código de Ética é de 2008 acrescentou uma censura à "autopromoção" em qualquer tipo de publicação: “O magistrado deve evitar comportamentos que impliquem a busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social, mormente a autopromoção em publicação de qualquer natureza”.

Críticas públicas de ministros 

O caso mais recente que ilustra o que a Lei da Magistratura diz para não fazer é a repercussão do voto do ministro Luiz Fux sobre os oito réus acusados pelo golpe ao Estado. Dos cinco membros da Primeira Turma, ele foi o único com posição contrária aos colegas que decidiram pela condenação dos réus, entre eles, o ex-presidente Jair Bolsonaro.  

Para Fux, a Primeira Turma não tem competência para julgar um ex-presidente e houve cerceamento de defesa pela grande quantidade de provas produzidas pela Polícia Federal com pouco tempo para análise pelos advogados.  

O caso deveria ter sido resolvido nos autos do processo e dentro da sessão – a qual, aliás, durou 13 horas, uma das mais longas da história do STF. Mas, em vez disso, colegas comentaram o voto do colega por outros canais.  

Em entrevista ao programa Roda Viva, na última segunda-feira, o ministro Luís Roberto Barroso deu sua opinião em rede nacional: “O voto de Fux espelhou a visão de uma parte da sociedade brasileira”.

O decano Gilmar Mendes foi menos cordial. A jornalistas, ao ser questionado se o voto de Fux poderia abrir campo para articulação para anistia ampla e irrestrita, ele respondeu: “Acho até, com todas as vênias, que o voto do ministro Fux está prenhe de incoerências.”

Comentários sobre processos 

Como mostra a Lei da Magistratura, a proibição não é apenas para acerca da opinião dos outros membros. É também sobre processos. Um exemplo disso foi quando a ministra Cármen Lúcia antecipou seu veredicto sobre o suposto Gole de Estado em entrevista à CNN, em outubro do ano passado.  

Ela disse que “quem participou do 8 de janeiro tem que responder nos termos da lei”. A ministra fez parte da Primeira Turma que selou o futuro dos oito acusados no mês passado. 

“Vandalismo, destruir instituições públicas, prédios públicos, tudo isso é crime, lutar contra a democracia ou atuar contra a democracia é crime no caso brasileiro. No Estado de Direito, responde(-se) pelo crime praticado”, disse a juíza há cerca de um ano antes de julgar o caso oficialmente.  

Outro episódio sobre comentários de processos fora do lugar e hora certos aconteceu com o ministro Flávio Dino. Em entrevista a jornalistas, em julho, ela comentou a posição do STF ao Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). A decisão que, segundo ele, seria “algo muito simples” do ponto de vista jurídico e com “muitos precedentes”, reverberou mal. Primeiro, porque era uma questão política e fiscal. Segundo, o contexto: o aumento do IOF foi judicializado no STF, após o Congresso Nacional derrubar um decreto presidencial que elevava o imposto.

STF transparente?

Carlos Eduardo Guerra, professor de direito do Ibmec-RJ, explica que, em tese, o juiz só se manifesta nos autos, conforme especifica a Lei da Magistratura. No entanto, ele pondera que o atual Judiciário brasileiro interpreta e lei e não a entende mais no sentido literal.  

Além disso, diz Guerra, os ministros passaram a entender que falar com a imprensa, por julgamentos transmitidos em tempo real ou por meios acadêmicos, ajuda na transparência.  

“É uma característica deste Supremo, e que não é comum na origem do Judiciário, nem funciona em outros países. Geralmente, os magistrados se manifestam pelos autos", diz.

Ministro Barroso concedeu entrevista para jornalistas no Roda Viva na última segunda-feira (Foto: Reprodução da internet)

Mendes e Barroso: unidos, mas não sempre  

Gilmar Mendes e Barroso também já se manifestaram diversas vezes nas sessões, por meio de entrevistas ou publicações em redes sociais em apoio ao colega Alexandre de Moraes que foi sancionado pelos Estados Unidos pela Lei Magnitsky

“Manifesto minha irrestrita solidariedade ao ministro Alexandre de Moraes e à sua família diante da injusta sanção aplicada por governo estrangeiro. Trata-se de medida arbitrária, que afronta a independência do Poder Judiciário e viola a soberania do Brasil”, disse o decano nas redes sociais em uma das ocasiões de solidariedade ao colega.  

Os juristas explicam que um dos problemas é que quando um ministro emite seu parecer por meio de voto ou numa sessão, a princípio, entende-se que é o argumento de um magistrado com base na lei. Ao fazer isso fora dali, ele continua a ser um representante do STF, mas não fica claro se é a sua posição ou da corte, o que pode influenciar a opinião pública.  

Uma síntese de como política e Judiciário podem se confundir foi a presença de Gilmar Mendes em um ato contra a anistia em São Paulo. Segundo a CNN, estavam também presentes representantes de 11 partidos. Entre eles, o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e José Dirceu (PT). O ministro ficou nos bastidores e disse aos jornalistas que o “STF não vai aceitar nenhum impeachment dos ministros.”  

“O Judiciário é um órgão de neutralidade, para ser imparcial. Não cabe a ele a opinião pública nem ser popular. Tem que olhar para a sociedade”, pontua Guerra. 

Há situações, no entanto, em que os ministros trocam farpas e indiretas em transmissões ao vivo, evidenciando a perda da qualidade dos debates. Não chegam a ser comentários depreciativos em entrevistas ou redes sociais, nem sobre processos, mas ainda assim não condizem com o que se espera da mais alta corte. 

Barroso e Gilmar Mendes já protagonizaram um dos bate-bocas mais memoráveis do STF. Em março de 2018, em meio a um debate acalorado sobre a anulação de decisões da Lava Jato e o julgamento de questões polêmicas por turmas do STF (como o aborto), Barroso respondeu a uma crítica de Gilmar com uma ofensa pessoal que paralisou a sessão:  “Me deixe fora desse seu mau sentimento. Você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia.”

Comentarista ou julgador?

O jurista André Marsiglia chama a atenção que os comentários têm sido usados como uma espécie de instrumento desse perfil ativista. “Pelos comentários, eles (os ministros) acabam inibindo que aquele caso siga adiante, que possa se tornar jurídico e que eles votem. Ou seja, eles antecipam, pela política, o julgamento jurídico. Isso é totalmente irregular e inviável.”  

Segundo ele, não só pela questão judicial, mas porque invade a esfera de atuação de outros Poderes. Infringe-se, portanto, a separação entre outros poderes quando o Judiciário atua desta forma.  

Ministro Flávio Dino em entrevista a jornalistas sobre o IOF (Foto: Reprodução da internet)

Outra questão é o impacto que as mensagens públicas causam. Para além dos efeitos jurídicos, elas podem afetar a opinião pública – que não deve ser a preocupação do STF, já que ministro não é eleito – e até mesmo a economia.  

No dia 18 de agosto, o ministro Flávio Dino determinou que leis estrangeiras, como a Magnitsky, não têm aplicação automática no Brasil. No dia seguinte, Alexandre de Moraes deu entrevista à agência Reuters, publicada em 20 de agosto reforçando a cautela no mercado.

Moraes não costuma dar entrevistas no Brasil, mas falou com a Reuters, um dos maiores sites de notícias de alcance global, para corroborar a mensagem: tribunais brasileiros podem punir bancos que aplicarem leis dos Estados Unidos aqui.  

Moraes disse à Reuters que as decisões de tribunais e governos estrangeiros só podem entrar em vigor no Brasil após validação interna. Naquela semana, houve uma queda das ações dos grandes bancos brasileiros na bolsa de valores (B3). As ações do Banco do Brasil, onde a maioria dos funcionários públicos, incluindo juízes, recebe seus salários, caíram 6%.  

Marsiglia lembra que há alguns dias o deputado federal Aécio Neves chegou a dizer que a anistia foi declarada inconstitucional pelos ministros sem que eles tivessem votado. “Quer dizer, só por comentários.”  

Em sua rede social X, Aécio publicou: “Há uma decisão do Supremo Tribunal Federal da qual ele não abrirá mão. A anistia para crimes de golpe de Estado e de abolição do Estado Democrático de Direito é impossível de acontecer, é inconstitucional por decisões anteriores e por palavras recentes de ministros do STF.”  

Por outro lado, Marsiglia argumenta que o Judiciário não foi eleito “justamente porque não foi feito para atender a opinião pública” e, ao trocar críticas publicamente, pode influenciar a opinião das pessoas – o que não é sua função, ressalta.  

Impacto das entrevistas  

Marsiglia questiona o impacto destas entrevistas, críticas e recados públicos. Para ele, um ministro comentar casos de debate público é irregular, do ponto de vista moral e legal:  “Quando o ministro comenta, ele pode estar adiantando o voto e, com isso, impedindo a própria sua função. Se ministros, para dar comentários, são impedidos de julgar, a gente os paga para quê?” , indaga.

Na avaliação do jurista, quando o magistrado adianta o comentário e tem que votar sobre o tema, ele precisaria se declarar impedido ou suspeito, porque já demonstrou tendência para um lado e isso “o torna passível de não ser imparcial e, em razão disso, não poderia julgar o caso”.

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