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O processo de sucessão do Papa Francisco reacendeu o interesse no filme Conclave, lançado nos cinemas no começo do ano e que agora chegou ao Prime Video.
Mas, embora a produção tenha méritos no quesito técnico (a reconstituição da Capela Sistina é irretocável, e a atuação dos atores principais é convincente), a obra não deve ser vista como um guia confiável do que de fato acontece durante um conclave.
O filme, uma adaptação feita pelo diretor alemão Edward Berger sobre um livro do britânico Robert Harris, comete um erro comum de obras de ficção que se propõem a retratar o Vaticano: as figuras centrais são apresentadas como inescrupulosas e manipuladoras. Há pouco espaço para a fé genuína. Em Conclave, de forma pouco surpreendente, o principal candidato conservador ao trono é apresentado de forma caricatural, enquanto seu rival progressista exala bom senso e sabedoria.
No filme, praticamente não se fala em Jesus ou no Espírito Santo. O que se vê são cardeais fumando e lançando bitucas de cigarro nos pátios do Vaticano. Cardeais passando por um detector de metais. Cardeais combinando votos como se fossem participantes de um reality show brasileiro.
Pior: a obra traz equívocos importantes sobre o processo de escolha do papa.
Nomeação secreta de cardeal
Logo no começo do filme, um cardeal desconhecido bate às portas do Vaticano para participar do conclave. Ele diz ter sido nomeado secretamente pelo papa anterior para comandar a Igreja em Cabul, no Afeganistão. Ninguém sabe quem ele é. Ainda assim, o encarregado de liderar o conclave (no filme, o cardeal Thomas Lawrence) acaba aceitando a participação dele na votação.
A nomeação secreta de um cardeal (chamada de in pectore no jargão do Vaticano) é prevista nas normas da Igreja Católica. O dispositivo pode ser útil para religiosos que atuam em locais onde os católicos são perseguidos.
Mas a nomeação in pectore tem efeitos limitados até que se torne pública. O artigo 351 do Código de Direito Canônico deixa isso claro: “A pessoa promovida à dignidade cardinalícia, cuja criação o Romano Pontífice anunciar, reservando para si o nome in pectore, não fica entretanto obrigada a nenhum dever dos cardeais nem goza de nenhum dos seus direitos”. Ou seja: o cardeal de Cabul não poderia participar do conclave.
Também é inverossímil que o papa tenha morrido sem comunicar a ninguém em Roma sobre a nomeação in pectore (no filme, a única prova da nomeação é uma carta elaborada pelo papa anterior e apresentada pelo próprio cardeal secreto).
Outra inconsistência de Conclave é o papel exercido pelo Cardeal Lawrence. Os roteiristas do filme parecem ter unificado duas funções distintas: a de camerlengo (que se encarrega de coordenar a Igreja durante a transição até o novo papa ser empossado) e o decano do Colégio Cardinalício (que tem a função específica de liderar a votação para a escolha do pontífice).
Em um conclave, nenhum cardeal acumula tanto poder quanto o cardeal Lawrence no filme.
Final irreal (alerta de spoiler)
O final do filme é duplamente inverossímil.
Em primeiro lugar, o cardeal secreto de Cabul é eleito como o novo chefe da Igreja. Jovem e desconhecido, ele não seria um candidato viável em um conclave do qual, a rigor, ele não teria o direito de participar nem como votante.
Depois, a grande revelação no final do filme acrescenta outra camada de implausibilidade: o novo papa revela ser intersexo. Ele tem útero e genética feminina. O todo-poderoso cardeal Lawrence, entretanto, decide (sozinho) que a condição não é um impeditivo. O jovem desconhecido e hermafrodita cardeal de Cabul se torna, então, o chefe da Igreja Católica.
Já faz mais de um século que, em seu comentário ao Código de Direito Canônico, Dom Charles Augustine Bachofen — um padre beneditino e pesquisador da doutrina católica, — afirmou que pessoas intersexo não podem ser nem mesmo ordenadas padres: "Em relação aos hermafroditas, deve-se dizer que hermafroditas completos, cujo sexo não pode ser determinado, não podem ser validamente ordenados; enquanto aqueles nos quais um sexo prevalece podem ser ordenados validamente, mas não licitamente”, ele escreveu.
Pelo menos a reconstituição digital da Capela Sistina em Conclave é impecável.
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