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Não é ficção científica; é neurotecnologia

Neurotecnologia: o paciente paraplégico holandês Gert-Jan caminha graças à Interface Cérebro-Computador (BCI) que permite a caminhada controlada pelo pensamento após lesão da medula espinhal, Lausanne, Suíça, 23 de maio de 2023.
Neurotecnologia: o paciente paraplégico holandês Gert-Jan caminha graças à Interface Cérebro-Computador (BCI) que permite a caminhada controlada pelo pensamento após lesão da medula espinhal, Lausanne, Suíça, 23 de maio de 2023. (Foto: EFE/EPA/JEAN-CHRISTOPHE BOTT)

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O campo das neurociências é um dos principais palcos do avanço acelerado das tecnologias, e as notícias sobre pacientes que se beneficiam desses progressos são cada vez mais comuns. Há poucas semanas, Elon Musk anunciou que sua empresa, Neuralink, havia implantado, pela terceira vez, um dispositivo no cérebro de um paciente. Embora não tenha fornecido detalhes sobre o caso, sabe-se que os dois anteriores envolviam pessoas com paralisia, para as quais o procedimento proporcionou maior independência.

Do outro lado do oceano, há outras histórias igualmente impressionantes, desta vez acompanhadas de dados concretos. O holandês Gert-Jan Oskam, aos 40 anos, após uma década de paralisia, recebeu um implante no cérebro e outro na medula espinhal, permitindo que ambos os órgãos fossem conectados sem fio. O resultado foi surpreendente: ele conseguiu se levantar novamente. Seu progresso é lento, mas significativo. Para Oskam, a diferença é como da noite para o dia.

O neurocientista francês Grégoire Courtine, da École Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL), e Jocelyne Bloch, neurocirurgiã da Universidade da mesma cidade suíça, que realizaram a intervenção, referem-se à conexão como uma "ponte digital": os eletrodos no cérebro e na medula espinhal convertem pensamentos em ações. Foi "tecnologicamente muito complicado", admitiu Courtine, mas ver o paciente caminhar foi "o momento mais emocionante da minha carreira".

Essa capacidade potencializada do cérebro, quando aliada a dispositivos de alta tecnologia para contribuir com a recuperação física ou psicológica de uma pessoa, é conhecida como "aumento da mente" (mind augmentation, em inglês). O "levanta e anda" de Oskam é um exemplo poderoso e inquestionavelmente positivo desse fenômeno.

Contudo, embora as ciências avancem rapidamente, é preciso cautela. Algumas técnicas podem ser utilizadas não apenas para restaurar a saúde ou o funcionamento de um órgão, mas para aprimorar habilidades em pessoas saudáveis, criando vantagens artificiais para quem pode pagar por elas. Há também o risco de invasões indevidas de privacidade.

Neurotecnologia: restaurar, ajudar, potencializar...

O aumento das capacidades cerebrais não se restringe a implantes de alta tecnologia, tampouco é um conceito novo. Em certas situações, o efeito "aumentativo" pode ser obtido por meio da ingestão de fármacos ou outras substâncias.

Um exemplo simples? O café. Segundo um estudo sobre aplicações atuais em neurociência (Singh et al., 2022), substâncias potencializadoras da cognição sempre estiveram presentes na alimentação humana. "As mais utilizadas são, sem dúvida, a glicose e a cafeína, que demonstraram em múltiplos ensaios sua capacidade de melhorar a cognição", afirmam os pesquisadores.

Além da bioquímica, certos hábitos e estratégias comportamentais também desempenham papel crucial na saúde mental e no desempenho cognitivo. "Há cada vez mais evidências de que atividades rotineiras, como o sono e o exercício físico, melhoram a cognição" (Hötting e Röder, 2013; Diekelmann, 2014). Os pesquisadores ainda destacam que práticas culturais, como o treinamento musical, a dança e o aprendizado de um segundo idioma, também aprimoram habilidades cognitivas de maneira ampla.

Mas aqui nosso foco está nas neurotecnologias, especialmente aquelas com objetivo terapêutico. Elas podem ser divididas entre não invasivas e invasivas, dependendo do grau de intervenção necessário para que exerçam o efeito desejado.

Entre as técnicas não invasivas, os especialistas citam a estimulação elétrica transcraniana (TES, do inglês Transcranial Electrical Stimulation), na qual eletrodos são conectados ao couro cabeludo para aplicação de corrente elétrica de baixa intensidade por cerca de 30 minutos. Outra técnica é a estimulação magnética transcraniana (TMS, Transcranial Magnetic Stimulation), que gera um campo magnético ao redor de uma bobina posicionada no couro cabeludo, estimulando a atividade neuronal no córtex cerebral.

Pesquisas indicam que essas técnicas podem beneficiar tanto pessoas saudáveis quanto aquelas com dificuldades de memória, ajudando-as a adquirir sequências motoras complexas. Além disso, a TMS tem sido empregada no tratamento de acidentes vasculares cerebrais, da síndrome de Tourette e de transtornos do espectro autista.

As interfaces cérebro-computador, indispensáveis

Entre as técnicas invasivas, as interfaces cérebro-computador (BCI, Brain-Computer Interface) estão entre as mais inovadoras, como demonstrado pelo caso do paciente holandês citado anteriormente. As versões não invasivas dessas interfaces, por outro lado, ainda enfrentam desafios, pois captam sinais neuronais através do crânio e do couro cabeludo, gerando interferências que dificultam a transmissão precisa dos dados.

Em um estudo sobre BCI não invasivas (Edelman et al., 2024), os autores assinalam que, embora afastem as preocupações de segurança e sejam fáceis de utilizar na vida diária, apresentam um desempenho limitado pelos mencionados ruídos no sinal e pela menor transferência de informação. A esperança reside, no entanto, no fácil acesso a muitos participantes – o fato de que não precisa de procedimentos cirúrgicos pode ampliar a amostra –, que oferece aos pesquisadores a oportunidade de avançar no desenvolvimento de técnicas para "otimizar a precisão das tarefas, a transferência de informação e a confiabilidade do sistema para aplicações humanas".

Por sua vez, em um estudo publicado no ano passado sobre o papel da inteligência artificial no diagnóstico e tratamento de doenças neurológicas, as bioquímicas M. Kalani e A. Anjankar enumeram aplicações da BCI que implicam saltos vertiginosos no campo da neurorreabilitação. "As BCI – apontam – ajudam os sobreviventes de acidentes vasculares cerebrais e os pacientes com lesões da medula espinhal a recuperar funções perdidas através do treinamento de neurofeedback". São, acrescentam, "ferramentas indispensáveis em neurociência, já que permitem aos pesquisadores compreender a função cerebral, estudar transtornos neurológicos e desenvolver terapias".

E a IA entra em cena

Um elemento novo – ainda não mencionado, mas onipresente no debate atual – aparece como catalisador desses avanços da neurotecnologia: a inteligência artificial (IA). As autoras ressaltam que as BCI impulsionadas por IA "proporcionam uma comunicação e interação novas para pessoas com deficiências neurológicas graves. Estas interfaces interpretam os sinais cerebrais para controlar dispositivos externos, o que permite aos pacientes paralisados recuperar certa autonomia".

Os benefícios da IA no campo da neurologia abrangeriam desde a possibilidade de estabelecer diagnósticos precoces – fundamentais, dado o caráter irreversível de várias dessas doenças –, de oferecer um tratamento personalizado e de afinar na análise de neuroimagens, entre outras facilidades.

"Em doenças como o Alzheimer ou o Parkinson – dizem – a IA pode detectar desvios muito antes de que se manifestem os sintomas, o que permite realizar intervenções em uma etapa mais manejável. Por exemplo, a IA pode prever como um paciente responderá a um medicamento ou terapia em particular, minimizando o ensaio e erro no tratamento. As simulações e a modelagem impulsionadas por IA permitem a otimização dos planos de terapia".

Quem decide: o médico ou o algoritmo?

Sobre se isso implica que os neurologistas já podem tremer por sua possível substituição como "diagnosticadores" e terapeutas, a resposta é não. Ou pelo menos não tão rápido. Em um artigo publicado no BMJ Journals sobre a incursão da IA nesta área das ciências médicas (Yeung et al., 2023), uma equipe de pesquisadores de várias instituições de saúde britânicas admite o enorme potencial da IA na neurologia, mas observa certa agitação, tanto midiática como no mundo acadêmico, sobre essa hipotética "substituição".

O entusiasmo diante dessa possibilidade "frequentemente omite deliberadamente explicar as numerosas subtarefas implicadas no trabalho de um neurologista e de outros médicos", pontuam. Um software, por muito avançado que esteja, não pode realizar punções nem dar uma má notícia a alguém de modo humano. Como demonstram com a descrição de dois casos de danos causados por acidentes vasculares cerebrais, nos quais a IA ajudou a interpretar as neuroimagens, mas foram médicos de carne e osso que integraram todos os dados e tomaram a decisão final de tratamento.

Os sistemas de IA atuais são meramente assistenciais. A tomada de decisões e a responsabilidade continuam sendo do médico", recordam, e acrescentam uma advertência: "Se avançássemos para sistemas de IA autônomos, como construiríamos um sistema seguro e quem assumiria a responsabilidade quando ocorressem erros?".

Um necessário quadro ético

A cura preventiva neste campo, como em outros, passaria por evitar correr antes de andar. Kalani e Anjankar asseguram que a integração da IA na neurologia "deve ser realizada em colaboração com os profissionais médicos para garantir que se alinhe com as melhores práticas e padrões" na matéria.

Mas há perigos inclusive além da saúde. Gabriela Ramos, subdiretora geral de Ciências Sociais e Humanas da UNESCO, advertiu em uma conferência sobre Ética da Neurologia, em 2023, que a convergência entre neurotecnologia e IA poderia "aprofundar as desigualdades sociais e abrir novas formas de explorar e manipular as pessoas, afetando a coesão social e os processos democráticos". Por isso, pediu para dotar este ramo da ciência de um quadro ético; um em que o progresso tecnológico "sirva aos fins humanos e não o contrário".

Diante disso, a pergunta persiste: será que os avanços tecnológicos seguirão um caminho ético ou a lógica do "a ética se ajusta depois" prevalecerá?

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©2025 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: No es ciencia ficción: es neurotecnología

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