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Em uma anedota, uma pessoa é confrontada por ter atirado lixo ao chão, na rua, ao que prontamente responde: “eu faço isso para garantir o emprego do gari”. Ser avesso a esse tipo de comportamento e demonstrar empatia genuína com o outro, explica a psicologia, pode se revelar algo extremamente recompensador.
Isso se mostra por meio de atos e gestos entendidos e inseridos na chamada “conduta pró-social”. Arrumar os pratos na mesa do restaurante de forma a facilitar o trabalho do garçom, ou mesmo não sair e deixar a bandeja na mesa depois de comer em praça de alimentação são bons exemplos. “É o contrário daquilo que se convencionou chamar de antissocial”, explicou Paulo Cesar Porto Martins, doutor em Psicologia Clínica, em entrevista à Gazeta do Povo.
“Uma conduta genuína de colaboração, de ajuda em relação ao outro pode ser mais do que um sinal de boa educação. Isso é interessante porque demonstra uma preocupação verdadeira, e é saudável não só para a pessoa que recebe o gesto, mas também para quem o pratica”, explicou o especialista.
Segundo Martins, há estudos no campo da Psicologia que mostram que a qualidade de vida e da saúde mental é melhor em pessoas que praticam gestos de gentileza. Isso funciona, de acordo com o especialista, para grandes atos, como os trabalhos voluntários, e para atos mais simples, como um sorriso e um “bom dia” ao passar por outras pessoas.
Ações de gentileza geram "espiral de positividade"
Tais atitudes, detalhou, desencadeiam uma espécie de “espiral de positividade”. “É benéfico para quem recebe, até por ser algo de certa forma inesperado e que pode ser replicado. E para quem pratica o benefício é maior, pode levar até mesmo a uma desconexão com sentimentos negativos, como esquecer, mesmo que momentaneamente, dos problemas do dia a dia”, completou o psicólogo.
À reportagem, Martins afirmou que espalhar essas pequenas gentilezas, assim como outras ações cotidianas, é algo que pode ser aprendido e aprimorado com a prática. Para o especialista, esse comportamento gentil é inerente ao ser humano e foi algo importante – até mesmo indispensável – para que prosperássemos como espécie.
Porém, o que deveria ser uma espécie de padrão, comentou o psicólogo, tem se tornado quase que uma exceção no comportamento das pessoas. Um dos sinais visíveis, disse Martins, é a quase inabilidade das novas gerações em estabelecer contatos pessoas fora do ambiente virtual. “Ver um grupo de adolescentes fisicamente juntos em uma mesma sala conversando pelo WhatsApp deveria ser algo estranho, mas é cada vez mais corriqueiro”, pontuou.
Pessoas recorrem a mecanismos de compensação pela falta de contato humano
Essa competência de se relacionar com o outro, explicou o especialista, sofre impacto direto do excesso de tecnologia disponível desde a primeira infância. Outro fator complicador é o medo da violência em sociedades como a brasileira.
“A criança aprende desde cedo que não pode falar com estranhos. Mas há estranhos com quem ela precisa falar, como quando chega em uma nova turma de escola, por exemplo. Se há esse reforço constante do medo, esse jovem quando vira adulto vai evitar olhar para o lado quando está dirigindo, e não vai nem dar um ‘boa noite’ em um elevador”, exemplificou Martins.
Para suprir a falta de contato com humanos reais, disse o psicólogo, algumas pessoas acabam adotando mecanismos de compensação que acabam por humanizar seres ou objetos que não deveriam ser vistos como tais. Seria uma possível explicação para donos de pets que tratam os animais como filhos – com direito a festas de aniversário e ensaios fotográficos – e para a quase devoção de pessoas às famigeradas bonecas no estilo “bebê reborn”.
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“Parte da sociedade mostra que tem dificuldade em lidar com o outro, e isso se acentuou com o isolamento provocado pela pandemia. Estamos passando por uma epidemia de ansiedade, e esses mecanismos de compensação são atitudes que não fariam sentido nenhum há alguns anos”, completou.
Somente a gentileza espontânea traz benefícios, reforça psicólogo
O psicólogo reforça que os benefícios trazidos pelos gestos de gentileza só são perceptíveis e reais quando a ação é tomada de forma espontânea. Quando a preocupação está apenas em causar uma boa impressão no outro, como um superior no trabalho ou um agente da lei, o ganho é quase nulo.
“Alguém que é obrigado a prestar trabalho voluntário por uma decisão judicial não está ali por iniciativa própria. É um ‘voluntário obrigatório’, assim como alguém que passa uma imagem irreal de ‘bonzinho’ para um chefe, por exemplo. A pessoa está emulando uma postura que não é a dela”, explicou.
Para quem quer se aprimorar na prática das gentilezas, sejam elas pequenas ações ou grandes obras, a dica do especialista é não desistir nas primeiras adversidades. Afinal de contas, não serão todos os que retribuirão de pronto a um cumprimento inesperado, ou a uma ajuda não solicitada.
“Comece com um bom dia no elevador. Depois convide um colega de trabalho para tomar um café. Em breve você terá um outro nível de socialização que vai te ajudar na vida como um todo. Algo aparentemente simples, como ser gentil, ser educado, ajuda a pessoa, e como consequência direta ajuda a sociedade”, concluiu.