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Homero e Seu Guia (detalhe), de William-Adolphe Bouguereau
Homero e Seu Guia (detalhe), de William-Adolphe Bouguereau| Foto: Wikipedia

Em meio à histeria de se derrubar estátuas e rebatizar as coisas, continuamos dando força à cultura do cancelamento sem pensar.

Agora estamos vendo tentativas de banir clássicos da literatura ocidental e norte-americana. Esses textos canônicos de repente estão sendo considerados racistas ou sexistas pelos moralistas.

Ou, como disse toda cheia de si uma professora de Massachusetts nas redes sociais: “Tenho muito orgulho de dizer que conseguimos tirar a “Odisseia” do nosso currículo neste ano!”.

Orgulho?

Há mais de vinte anos, eu e John Heath escrevemos “Who Killed Homer?”[Quem matou Homero?]. Dizíamos, em tom de alerta, que o racialismo, a luta de classes e a ideologia de gênero — juntamente com a especialização acadêmica — estavam matando as disciplinas clássicas formais nas universidades.

Temíamos que, sem defensores, a grande literatura da Grécia e de Roma talvez desaparecesse do ensino médio também. E aparentemente desapareceu mesmo.

Mas por que deveríamos ler clássicos como a “Odisseia”, de Homero?

Os clássicos nos falam sobre os grandes desafios da experiência humana — o amadurecimento, o aprendizado com as adversidades, a persistência e a aceitação trágica de que geralmente estamos à mercê de forças maiores do que nós mesmos. Todos esses assuntos são temas da “Odisseia”, de Homero.

Às vezes, Odisseu precisa de algo que vai além da coragem e da inteligência — como sorte e ajuda divina. Como o velho Odisseu, depois de dez anos voltando para casa, em Ítaca, se diferencia de sua versão jovem na Guerra de Troia? Quais habilidades velhas e novas permitirão que ele derrote as forças humanas e não-humanas que tentam impedir que ele volte para casa?

A grande literatura ocidental também questiona, e até critica, a própria paisagem que cria. Por que Atena, deusa durona, é mais astuta do que deuses como Poseidon?

Como a supostamente dócil e submissa Penélope consegue ser mais esperta do que os melhores e mais inteligentes pretendentes de Ítaca?

Por que escravos como o pobre Eumaeus são mais sábios, generosos e leais do que os livres e ricos? A “Odisseia” não só revela o chamado patriarcado branco como ao mesmo tempo o questiona.

Homero também cria arquétipos e pontos de referência — não apenas para a produção literária futura, mas para todos nós que amadurecemos e envelhecemos e buscamos exemplos para nos aconselhar ou encorajar.

O espírito inquebrável de Odisseu, as ameaças à sua volta para casa e as habilidades necessárias para se vencer essas ameaças se tornaram modelos para obras-primas futuras, desde o “Ulysses” de James Joyce e o poema “Ítaca”, de Constantine Cavafy, até o filme “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, “O Vento nos Salgueiros”, de Kenneth Grahame, e o filme “E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?”, dos irmãos Coen.

Quando falamos da fragilidade da civilização, imaginamos uma distopia assustadora na ilha dos Ciclopes. E, se agimos como porcos, talvez um dia nos transformemos neles — como a bruxa Circe fez com a tripulação de Odisseu.

Grandes artistas não criam apenas grandes histórias. Eles também o fazem em grande estilo. Os poemas épicos de Homero, a “Ilíada” e a “Odisseia”, foram compostos oralmente em hexâmetros heroicos, métrica que enriquece a narrativa e o diálogo.

O vocabulário algo arcaico do épico, o estilo formulaico e as metáforas exuberantes nos lembram de como as habilidades artísticas são forças multiplicadoras da trama e da caracterização.

Homero talvez tenha sido o primeiro poeta da literatura ocidental, mas ele nos ensina magistralmente a arte de usar flashbacks, consequências imprevistas, personagens incógnitos e identidades trocadas.

Grandes obras de literatura, como a “Odisseia”, de Homero, a “Eneida”, de Virgílio, a Bíblia e o “Inferno”, de Dante, servem como referências culturais duradouras que enriquecem a forma como falamos e pensamos. Se ignoramos os nomes das pessoas, lugares e coisas da “Odisseia” — como os deuses do Olimpo, o cavalo de Troia, Calipso, Hades, Cila e Caríbdis — não temos base para entender a lógica e a linguagem de boa parte do mundo atual.

Por fim, é com a literatura clássica que aprendemos valores, alguns incômodos e outros que nos tranquilizam. Lembre-se do destino do pastor Melântio e do pretendente Antino. Valentões arrogantes como esses dois não têm um final feliz na “Odisseia”. Mas os humildes e gentis geralmente têm.

Para Homero, a lealdade, a responsabilidade, a coragem e a paz de espírito não são opcionais, e sim virtudes que salvam vidas. Odisseu as têm e, portanto, volta para casa apesar de perder a tripulação.

No mundo pagão pré-cristão da Grécia, a modalidade se expressa por meio da morte dos inimigos e da ajuda aos amigos, e não pela misericórdia.

A arrogância leva ao castigo divino, o que é bem diferente do perdão proposto no Sermão da Montanha. Mas para apreciar os valores do Novo Testamento é preciso conhecer alguns dos preceitos que ele busca substituir.

Nossa crise cultural atual não advém do excesso de leitura, e sim da escassez. A maioria das pessoas que vandalizam monumentos e destroem estátuas não sabe praticamente nada sobre os alvos de sua ira.

Cancelar Homero não é sinalização de virtude. É ignorância explícita.

Victor Davis Hanson é classicista e historiador no Hoover Institution da Universidade de Stanford.

© 2021 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês
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