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Guardas chineses patrulhando a capital de Xinjiang, em 2010
Guardas chineses patrulhando a capital de Xinjiang, em 2010| Foto: EFE/EVA GARRIDO

Em outubro de 2020, um professor de história foi decapitado na França, após exibir caricaturas do profeta Maomé, em uma aula sobre liberdade de expressão. Na última década, o país já sofreu dezenas de atentados terroristas atribuídos a grupos islâmicos, desde o ataque com 12 mortos à redação do jornal satírico Charlie Hebdo, que havia publicado charges do profeta do islã, em 2015. Conhecida no Ocidente, a reação do mundo muçulmano a atos envolvendo o povo e seus símbolos religiosos contrasta com o silêncio diante do massacre dos uigures na China (que inclui a destruição de tempos islâmicos e de estátuas de Maomé). Os interesses econômicos, a não homogeneidade do bloco muçulmano e a “guerra ao terrorismo” são alguns fatores que podem explicar a apatia do mundo islâmico e do restante do planeta ao extermínio dos uigures na região de Xinjiang, considerado o maior atentado a minorias étnicas e religiosas desde o Holocausto.

Especialista em Política Internacional pela Universidade de Georgetown, com ênfase em árabe e teologia, Harper Thomas, que cresceu em Xangai e Cingapura, desenvolveu pesquisas sobre “as respostas dos Estados de maioria muçulmana no Oriente Médio às ações da China em Xinjiang”, com fomento do Instituto para Estudo de Diplomacia (ISD, na sigla em inglês), da mesma instituição de ensino.

Para ele, “a explicação mais forte para a morna resposta regional à crise de Xinjiang é que as relações econômicas entre a China e muitos países do Oriente Médio se aprofundaram significativamente nas últimas duas décadas. A China combinou seu crescente consumo de hidrocarbonetos do Oriente Médio com sua Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês) para aumentar seu investimento estrangeiro direto na região em mais de 340% de 2012 a 2020”.

Até 2027, a projeção é que os investimentos chineses ultrapassam US$ 1 trilhão, com especial importância para Arábia Saudita, Egito e Emirados Árabes Unidos. “Consequentemente, cada um desses estados defendeu firmemente as ações opressivas da China em Xinjiang. Além de endossar publicamente as políticas chinesas de Xinjiang, todos esses países deportaram uigures de volta à China a pedido de Pequim”, detalha Thomas.

De acordo com Thomas, a situação de insegurança e competitividade que permeia a geopolítica do Oriente Médio favorece o chamado “realismo defensivo”, ou seja, a ação dos Estados motivada pela necessidade de sobrevivência. “Isso, por sua vez, cria um dilema de segurança e encoraja a competição constante por recursos, criando caminhos para a influência chinesa. Através do prisma desse dilema de segurança, os laços econômicos chineses se tornam uma arena para a competição interestatal, e o apoio autoritário da China se torna um ingrediente essencial para a sobrevivência do regime”, explica.

Nesse contexto, “as clivagens étnicas e culturais dentro do Islã são um fator secundário, desencorajando um senso global de responsabilidade para os muçulmanos que vivem fora do centro islâmico central”.

Pofessor de Relações Internacionais do Ibmec-SP, Carlo Cauti ressalta que, como o chamado “mundo muçulmano” não é um bloco homogêneo em termos de etnia e crenças, a solidariedade fica prejudicada. “Nem todos os muçulmanos se interessam pelo que acontece na Palestina”, exemplifica. “Existe a questão demográfica: os uigures são cada vez menos. A China promove o que chama de ‘campos de reeducação’, que são campos de concentração, esterilização forçada, além da migração de chineses Han, que vão morar na região para diluir essa presença muçulmana, como fizeram no Tibete. A maioria agora é chinês Han”, comenta. “Por que a Arábia Saudita não faz nada, por exemplo? Porque o primeiro comprador de petróleo deles é a China. A Turquia também tem se aproximado cada vez mais de potências autoritárias, como China e Rússia. A economia fala mais forte, o principal parceiro comercial de muitos países é a China”, resume Cauti.

Assim, por mais que organizações internacionais como a ONU denunciem a situação dos uigures, dificilmente o mundo terá força de isolar economicamente a potência asiática. “As sanções contra a Rússia não têm funcionado. Basta olhar o PIB, eles não sofreram mudanças radicais nos padrões de vida, pelo menos não por enquanto. Menos de um quarto dos países aplicaram sanções no contexto da guerra, e o país está sendo suprido pela China”, compara. “Se aplicar sanções contra a China, o mundo para”, afirma Cauti.

Relação com o Talibã

Em outubro de 2021, um ataque com um homem-bomba, cuja autoria foi reivindicada pelo Estado Islâmico-Khorasan (EI-K, braço regional do EI), matou quase 50 pessoas em Kunduz, no norte do Afeganistão. “Que o grupo militante tenha assumido a responsabilidade pelo ataque não foi surpreendente, mas, em uma nova reviravolta preocupante para Pequim, também decidiu vincular o massacre à China: o grupo disse que o homem-bomba era um uigur e que o ataque visava punir o Talibã por cooperar estreitamente com a China, ignorando as ações [da ditadura chinesa] contra os uigures em Xinjiang”, analisa Raffaello Pantucci, membro do Royal United Services Institute, think tank britânico de defesa e segurança, e da Escola S. Rajaratnam de Estudos Internacionais em Cingapura.

Pantucci recorda que, por muito tempo, a China conseguiu ganhar a simpatia dos oprimidos do planeta por não ser uma das "potências coloniais de primeiro mundo”. “Antes do 11 de setembro, os teóricos da Al Qaeda chegaram a falar de Pequim como um possível parceiro. De acordo com sua lógica, a China era contra os Estados Unidos, o inimigo jurado da Al Qaeda, e, portanto, o velho tropo ‘o inimigo do meu inimigo é meu amigo’ pode ser aplicado”, explica.

Embora nunca tenha apoiado totalmente o Talibã, a China encontrou maneiras de trabalhar conjuntamente, oferecendo investimento e apoio limitado. Como contrapartida, o Talibã deveria conter os grupos uigures estabelecidos no Afeganistão sob a proteção do mulá Mohammed Omar, que chefiou o Estado de 1996 a 2001. “Pequim não parecia muito preocupada com quais eram os objetivos maiores do Talibã, desde que os líderes do Afeganistão agissem de acordo com esse pedido fundamental”, acrescenta Pantucci.

Carlo Cauti acentua que outro interesse da China em estabilizar a região do Afeganistão é a proximidade com as rotas da seda. “Os chineses estão interessados em fazer esse comércio para a Europa e também miram explorar as minas afegãs”, afirma. O país abriga reservas de cobre, ferro, mercúrio, cobalto e lítio, matérias-primas úteis para a indústria da alta tecnologia.

O novo governo talibã declarou publicamente o desejo de trabalhar com Pequim, algo que o governo chinês deixou claro que depende da ação contra militantes uigures. E apesar de movimentos do grupo nesse sentido, como o deslocamento pelo Talibã de uigures no Afeganistão para longe da fronteira chinesa, a China ainda encara a “parceria” com ceticismo e cautela.

Em dezembro, outro ataque reivindicado pelo EI-K deixou cinco chineses gravemente feridos em um hotel em Cabul, que atende empresários da China. “[EI-K] referiu-se à natureza ímpia comunista da China, sua opressão aos muçulmanos uigures e sua relação com o Talibã afegão como razões legítimas para atacar seus interesses no Afeganistão”, afirma Faran Jeffery, vice-diretor e chefe da seção de terrorismo do Sul da Ásia no ITCT, um think thank baseado em Londres, com foco no combate ao terrorismo islâmico. Para ele, os ataques têm grandes chances de continuarem ocorrendo. “Eu definitivamente imagino ataques semelhantes no futuro, contra os interesses dos países que estão tentando estabelecer relações estreitas com o regime do Talibã”, diz.

Censura e “guerra ao terrorismo”

Ainda que haja ataques muçulmanos em reação ao massacre dos uigures em território chinês, a censura promovida pelo Partido Comunista (PCCh) é outro fator que impediria o mundo de tomar conhecimento. “Anos atrás, houve um ataque na Praça da Paz Celestial, um cara jogou o carro contra pessoas, mas a China abafou tudo. Eles também começaram a fichar os habitantes de Xinjiang com reconhecimento facial, então, não existe possibilidade das pessoas se movimentarem dentro do país sem autorização. Sabemos pouco sobre o que acontece em Pequim, Xangai, mas em outras cidades mais do interior não sabemos nada, é totalmente obscuro”, recorda Cauti.

O professor ressalta que houve revoltas em Xinjiang no passado, mas a divulgação é nula, uma vez que até os jornalistas são proibidos na região. De acordo com uma matéria da BBC, publicada em 2021, “além das pesadas restrições que impõe aos jornalistas estrangeiros que tentam relatar a verdade sobre a região de Xinjiang, no extremo oeste, a China tem uma nova tática: rotular a cobertura independente como ‘notícias falsas’".

Há duas décadas, o Repórteres Sem Fronteira já denunciava que “as autoridades chinesas, incluindo o Departamento de Relações Exteriores da Região Autônoma Uigur de Xinjiang (no noroeste da China), recusaram-se a conceder aos correspondentes da imprensa estrangeira na China as autorizações necessárias para cobrir o terremoto que matou pelo menos 250 pessoas”.

Outro trunfo da China foi se aproveitar da “guerra global ao terrorismo”, declarada pelos Estados Unidos, após o 11 de setembro de 2001. O jornal O Politico analisa que o PCCh “explorou a repulsa internacional ao terrorismo desencadeada pelos ataques de 11 de setembro para reformular a repressão estatal aos uigures muçulmanos em Xinjiang. E o fez com a bênção da América”.

“Enquadrar [Xinjiang] como uma ameaça terrorista de repente deu muita latitude à China em termos do que ela poderia fazer aos olhos da comunidade internacional porque, é claro, os EUA, de muitas maneiras, estabeleceram um precedente para suspender os direitos humanos de qualquer pessoa considerada um 'terrorista'”, disse à publicação Sean R. Roberts, professor associado da Escola Elliott de Assuntos Internacionais, da Universidade George Washington.

Embora o tratamento dado aos uigures na China tenha paralelo com o nazismo, acrescenta Carlo Cauti, não tem força de despertar uma mobilização internacional capaz de freá-lo. “Ninguém tem simpatia pelos islâmicos, então, as Ongs ganham maior apoio popular com causas mais próximas. Faz mais efeito apoiar os índios na Amazônia, por exemplo. Ong de esquerda não critica problema de esquerda, não critica país comunista, como a China”, afirma. “A esterilização forçada de centenas de milhares de uigures é a mesma do programa de esterilização forçada dos deficientes físicos e mentais no começo do nazismo, antes da Guerra, quando Hitler tomou o poder, que só foi interrompido porque foi denunciado publicamente”, compara.

Harper Thomas acrescenta que, embora os uigures tenham muito em comum com os muçulmanos do Oriente Médio (sendo predominantemente sunitas), eles se diferenciam destes por não serem árabes. “A posição geográfica de Xinjiang combinada com as tradições culturais distintas da região se combinam para colocar os uigures na periferia cultural do mundo muçulmano. A singularidade da cultura uigur e seu status marginal provavelmente contribuem para um sentimento de apatia em estados predominantemente árabes”, pondera.

Autoritarismo exportado

Em 2019, 37 países enviaram ao Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos uma carta em defesa das políticas chinesas na região uigur. “Uma rápida pesquisa da carta de 2019 revela que praticamente todos os signatários do Oriente Médio são regimes autoritários. A China oferece a esses regimes um modelo de desenvolvimento atraente de autoritarismo de alta tecnologia, não incomodado por violações dos direitos humanos, combinado com dinamismo econômico. A China já começou a exportar esse tipo de tecnoautoritarismo para países do Oriente Médio, incluindo Egito, Marrocos, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos”, explica Harper Thomas.

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