Os últimos dias foram uma montanha russa para o deputado André Janones (Avante/MG). O ex-coordenador de greve de caminhoneiros, alçado à fama por ser um dos cabeças da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência no ano passado, começou em alta no último fim de semana de novembro, fazendo um tour pelas livrarias do país e pela Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), para lançar seu livro “Janonismo Cultural” (Civilização Brasileira, 176 páginas).
Mas a gravidade cobra que corpos que se elevam voltem a cair. Na semana passada (27), o portal Metrópoles publicou um áudio de 2019 em que o deputado fala aos membros de seu gabinete que eles devem lhe devolver parte dos salários, a popular rachadinha. “Provarei para todo o Brasil que ele cometia peculato”, disse o ex-assessor Fabrício Ferreira. Mas Janones não parece muito interessado no passado, começando seu livro já na data avançada de 2022. Quando volta um pouco, para 2020, é para dizer que foi reconhecido na rua na Bahia: “Oxente! Ó lá o Janones!”.
Nascido no distopicamente profético ano de 1984 em Minas Gerais, Janones confessa no livro que se valeu de fake news para a campanha que mais tomou como bandeira política o combate às fake news e à desinformação. “Se os bolsonaristas queriam brincar de difamação, eles tinham encontrado um oponente à altura.” É assim que tenta justificar uma notícia que ele dá mostras de saber que era falsa, quando foi para a porta do Templo de Salomão, em São Paulo, e disse em uma live que “vazou um vídeo aí do presidente Bolsonaro com a maçonaria, parece que com alguns rituais satânicos”. Ele diz que este apelo a um dos preconceitos mais antigos do povo foi uma retaliação à divulgação de um vídeo em que um satanista dizia apoiar Lula. Janones confessa que não sabe se o vídeo foi “100% obra do bolsonarismo, mas pouco importa”. A verdade pouco importa.
“Afirmei que Jair Bolsonaro tinha feito algum tipo de pacto? Não. Mas, como foi à maçonaria, ele poderia muito bem ter feito”, insiste Janones, como se tentasse convencer a si mesmo. “Essa live foi uma das mais assistidas durante toda a campanha”, comemora. Ele incentiva a série de desmandos que se seguiram às eleições: “Vamos continuar achando que é possível conversar civilizadamente com quem literalmente caga e mija no Supremo Tribunal Federal?”.
Há outros momentos de confissão de desonestidade no livro: quando surgiu um burburinho de que Lula acionaria o STF para derrubar o piso salarial da enfermagem, Janones confessa que pegou o boato e só trocou Lula por Bolsonaro. “Me excedi”, se desculpa. A Justiça o obrigou a deletar, então a confissão vem na esteira da condenação. Ele conta francamente que também mentiu que Bolsonaro teria Fernando Collor como ministro caso ganhasse, outra que justifica como retaliação por mentiras do outro lado sobre José Dirceu. Uma notícia falsa era mesclada à outra propositalmente: a linha do pacto demoníaco foi ressuscitada com velhas notícias sobre supostos rituais ocultistas na Casa da Dinda. “Os bolsonaristas passaram dias desmentindo a minha novela”, gaba-se. “Em algum momento eu menti? Apenas devolvi na mesma moeda.”
A cruzada contra fake news e desinformação se consolidou como principal narrativa após a derrota da esquerda em 2018, imitando o Partido Democrata americano e os eurófilos britânicos em 2016, que também alegaram que Donald Trump se elegeu e o Brexit passou por causa de esquemas de desinformação russa de parca comprovação, além de conspirações com dados de Facebook de igualmente magra importância, segundo as evidências. Parece que, para a surpresa dessa tribo política, as pessoas não precisam ser enganadas para se recusarem a votar nela. Suas ideias bastam para a dissuasão.
Paula Lavigne e Eduardo Moreira abrem o livro
Confesso que o parágrafo anterior foi escrito antes de eu começar a ler a obra de Janones. Mas a tese “Brexit + Trump + Bolsonaro = fake news” é defendida exatamente como descrevi acima na apresentação de Paula Lavigne, de fama caetânica, que abre o livro. Como diz o filósofo Michael Huemer, a previsibilidade é a marca das pessoas de pensamento político simplório, pois adotam cartilhas inteiras: o que pensam de um assunto é completamente previsível do que disseram sobre outro assunto não relacionado. Lavigne ao menos dá crédito também para os memes da direita, a cujo nível Janones se elevou por ser “um comunicador excelente da contemporaneidade”. Ela diz que “o mundo não está para ponderações” — mas não confundam isso com uma defesa de táticas sujas e extremismo, OK?
O prefácio é de Eduardo Moreira. Se você não sabe quem é, o título do perfil escrito pelo meu colega Omar Godoy já é bastante explicativo: “Fã do MST, casado com paquita, condecorado pela rainha: o ex-banqueiro milionário sensação da esquerda no YouTube”. Quão fundo no buraco do coelho canhoto vai o canal do Moreira, ICL Notícias? Para dar uma ideia, foi lá que o radialista judeu Marcos Susskind se ofendeu ao vivo porque os apresentadores, após o ataque do 7 de outubro do Hamas, estavam insistindo que Israel era a parte com intenções genocidas — Susskind é neto de vítimas do Holocausto. A cena da resposta dele à narrativa simpática a terroristas foi apagada do canal.
O tema que aproximou Moreira de Janones foi a reforma da previdência, à qual o primeiro se opôs e ajudou a convencer o segundo na mesma direção. Modesto, o ex-banqueiro se declara “um dos principais personagens na defesa dos direitos dos trabalhadores” e elogia o colega como “um dos maiores responsáveis pela derrota do fascismo no Brasil, escrevendo para sempre seu nome na história”. Uma ironia que merece menção é que a única coisa explicitamente fascista nessa história é que a CLT, que Moreira queria manter intacta, foi “de inspiração mussoliniana”, como diz Roberto Campos em sua autobiografia.
Derretendo diante de Lula, mas fingindo firmeza
Janones diz que cresceu admirando Lula por sua biografia, sem saber direito qual é a ideologia que o Partido dos Trabalhadores defende (alguém sabe?). Enquanto eu e (possivelmente) você fazíamos bigodinhos e chifres com caneta nos santinhos dos políticos, Janones diz que colecionava esses panfletos quando criança. Enquanto desligávamos a TV ou assistíamos ao horário eleitoral gratuito para colecionar os candidatos mais bizarros, ele “assistia atentamente e sempre batia à porta do comitê de algum candidato pedindo santinhos para entregar de casa em casa”. De todos os candidatos da propaganda, Lula “era o único que me transmitia verdade, me tocava, me emocionava e, principalmente, me inspirava”. O publicitário Duda Mendonça não ganha crédito.
O deputado descreve a cena de quando encontrou o presidente pela primeira vez, em julho de 2022, para iniciar as conversas que culminaram no apoio. Janones era então um presidenciável com 3% de intenção de voto no Datafolha. Ele cita o que ouviu de sua própria assessoria: “Se você for, sua candidatura já era. É impossível resistir ao poder sedutor dele”. Segundo o mineiro, ele colocou esse conselho “em prática, pelo menos em parte” para “não me deixar levar pela emoção e lembrar a mim mesmo que estava ali como presidenciável”.
Pode ser que em sua própria cabeça ele pense que resistiu à sedução, mas não é o que os fatos que ele próprio narra evidenciam. Janones topou ver Lula meras duas horas depois de se reunir com a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, para as primeiras tratativas da aproximação formal. O encontro com o então candidato foi em uma suíte de hotel. Ele menciona que Lula estava sério no começo. A sisudez inspirou no deputado a gana de interromper a quebra de gelo de Gleisi: “peço perdão por interromper, mas não posso iniciar esta reunião sem antes dizer o significado que tem para mim estar frente a frente com o maior líder político vivo deste país e um dos maiores estadistas da história da política mundial. (...) Se hoje estou dando os primeiros passos nessa luta pra acabar com a fome e diminuir a desigualdade neste país, é porque o senhor me inspirou”. Soa como um seduzido relutante para alguém? Teve até foto do Ricardo Stuckert e uma selfie.
“Bolsonaro me bloqueou” e a insistência nas lives
Foi no Twitter que Janones anunciou seu apoio, se dizendo ostracizado pelos outros candidatos: “Bolsonaro me bloqueou, Ciro não aceitou encontrar comigo, Tebet ignorou por completo a minha existência”. Abnegado, o deputado garante que “não tinha qualquer intenção de ganhar cargo no governo”.
“Seguir com meu mandato como deputado, cargo para o qual fui eleito pelo povo, sempre foi prioridade para mim”, ele afirma no segundo capítulo do livro. Bem diferente do que disse em outro áudio vazado após a publicação: “não tô fazendo nenhuma questão desse mandato, renunciar hoje seria uma coisa tão natural, você sabe o que é eu não me entristecer um milímetro?”.
Janones enfrentou o derrotismo na campanha de Lula, vindo daqueles que acreditavam que não poderiam vencer os apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais. “Sei como as redes funcionam”, asseverou, “é no Facebook que está nosso povo”. Ele menciona o poder das lives, também utilizadas pelo adversário, mas, se é na ferramenta que está o poder de comunicação, isso não explica a falta de audiência das lives de Lula, já no governo. O cabo eleitoral do petista confessa que nunca leu nada sobre comunicação, aprendeu tudo na prática, e dá dicas como “quanto menor a produção de uma imagem, maior o impacto que ela causa”. Vídeo de estúdio também é má ideia, o visual tem que ser de improvisação: “quanto mais natural soar, melhor”. Realmente, Duda Mendonça não ganha nenhum crédito.
Lula estava relutante no começo, mas cedeu às lives. Talvez seja Janones o responsável, em alguma medida, pelo problema observado este ano no governo, do qual reclamou outro ex-marqueteiro das campanhas do PT, João Santana: “Não se pode deixar o Lula livre, leve e solto para cometer os erros sem advertência, sem críticas”. As gafes e escorregadas na banana, como disseram os eufemismos recorrentes, estavam ficando numerosas demais.
Antiquado, Lula não entendia os comícios esvaziados durante a campanha. “Como você explica isso, Janones?” O deputado apontou para o celular: “o senhor não coloca mais 100 mil pessoas num comício, mas pode colocar dezenas de milhões lhe assistindo simultaneamente pela Internet”. A hipótese que Janones não ousaria mencionar: talvez a vitória do presidente se devesse mais a uma rejeição ao outro candidato do que a uma aprovação à sua imagem, desgastada com mais de um ano de prisão e anos de revelações da Lava Jato.
O celular de Bebianno: outra sabida inverdade
Janones dedica um capítulo inteiro a contar que “vinha ameaçando o bolsonarismo com uma história manjada: o celular de Gustavo Bebianno, amigo de Jair Bolsonaro e ministro da Secretaria-Geral da Presidência nos dois primeiros meses de 2019”. O aparelho teria informações que comprometeriam toda a família Bolsonaro. O deputado confessa que jamais chegou perto “desse mítico aparelho”, mas usou a notícia falsa “só para atormentá-los mais um pouco. (...) Até eu me impressionava com minha capacidade de mexer com eles”. Mais uma vez, como se tentasse convencer a si mesmo, o cabo eleitoral de Lula interpreta a reação da campanha adversária como uma espécie de confirmação do conteúdo da lorota.
Esta foi uma notícia falsa final, para fechar a campanha do segundo turno. Janones, que acompanhou a apuração na casa de Lula, dá mais uma mostra de sua resistência principiológica diante da figura do petista: “me perguntou se eu aceitava uma cervejinha. Não bebo, mas resolvi abrir uma exceção. Naquele dia ia beber uma”. Contando sobre o momento da vitória, o deputado insiste que não pediu cargo. “O que nos diferencia de Jair Bolsonaro é que agimos com amor e ele, com ódio”, reflete.
Qual é a solução para a política sob os ventos instabilizantes das redes sociais? Janones diz que não gosta de usar a palavra regulação, “porque lembra censura”. Ele votou a favor da apreciação de urgência do PL 2630/2020, o projeto das fake news. “Mas” — recua logo após alegar que não quer censura — “é preciso criar uma legislação extremamente punitiva para quem produz fake news e quem ataca a democracia”.
Muitos cidadãos, de todas as visões políticas, desenvolvem um cinismo para com a política porque votam em representantes pensando que eles defenderão seus valores, mas depois observam um desmoronamento desse compromisso. Alguma corrosão é inevitável, já que a democracia exige que as partes façam concessões. Janones representa um cinismo orgulhoso de si mesmo. Seu livro é uma ilustração das razões pelas quais “maquiavelismo” se tornou uma palavra maldita e até parte de teorizações na psiquiatria sobre os fatores que formam uma “personalidade sombria”, não apenas uma descrição de conselhos de estratégia política eficaz de um filósofo observador. Talvez seja uma soberba de se achar um novo Nicolau Maquiavel, uma nova mente afiada para ser usada eficazmente como parte do arsenal de um político, o que explica as confissões do livro.
André Janones diz que antes da eleição estava tão imerso na “bolha do Facebook” que nem conseguia ver o valor de ler jornais tradicionais como este. Este antielitismo é a marca dos revolucionários. O problema dos revolucionários é que jamais podem garantir que as mudanças que prometem serão para melhor. Alguém se dispõe a afirmar que o “janonismo cultural”, a nova roupagem do velho boato sujo e do maquiavelismo sem escrúpulos, veio para o bem? Nem mesmo Janones é capaz de afirmar isso, no próprio livro. Tudo o que ele tem é a esperança de que os fins justificaram os meios.
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