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Sessão do Conselho de Estado, pintura de Georgina de Alburquerque, 1922, retrata a reunião na qual influentes líderes políticos entregam a Leopoldina uma carta destinada a Dom Pedro I, na qual pediam que ele declarasse a independência do Brasil e assumisse o trono. A obra está em exposição no Museu Histórico Nacional,  Rio de Janeiro.
Sessão do Conselho de Estado, pintura de Georgina de Alburquerque, 1922, retrata a reunião na qual influentes líderes políticos entregam a Leopoldina uma carta destinada a Dom Pedro I, na qual pediam que ele declarasse a independência do Brasil e assumisse o trono. A obra está em exposição no Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.| Foto: Domínio público

Atenta à importância de comemorar e discutir o aniversário de dois séculos da Independência do Brasil, um marco fundador da nacionalidade, a Gazeta do Povo inicia nesta segunda-feira a publicação de uma série de oito artigos escolhidos entre as dezenas de reflexões políticas impressas nos vinte periódicos editados no país ao longo de 1822. Os ensaios que serão publicados, todos assinados por destacados atores políticos do período, tiveram um significativo impacto sobre a opinião pública nascente e, indiretamente, sobre os rumos do próprio processo de Independência. Em linhas gerais, são escritos que dão a conhecer não somente como a ideia de separação de Portugal, que a princípio não era tão óbvia e nem popular, ganhou as ruas do país e a atenção de grande parte da população, mas também de que modo, gradativamente, três personagens, até então desconhecidas por aqui, tornaram-se familiares à sociedade brasileira: a imprensa, a opinião pública e os jornalistas – os denominados “formadores de opinião”.

José Clemente Pereira e o “Dia do Fico”[1]

José Clemente Pereira, o autor do ensaio que publicamos nesta segunda-feira, nasceu na vila de Trancoso (Portugal), em 17 de fevereiro de 1787, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 10 de março de 1854. O português veio para o Brasil em 1815, após integrar o Corpo Voluntário Acadêmico da Universidade de Coimbra, organizado por José Bonifácio de Andrada e Silva para lutar contra as tropas francesas de Napoleão. Formado em Direito em Coimbra, atuou alguns anos como advogado no Brasil, mas logo foi nomeado por D. João VI para ocupar o cargo de juiz de fora na Vila Real da Praia Grande (atual Niterói). Em 1821, assumiu a presidência do Senado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro. Aí, Clemente Pereira encabeçou um movimento patriótico brasileiro contrário à exigência das Cortes Portuguesas, que determinavam o retorno do Príncipe Regente para Portugal.

Tal movimento, como o leitor poderá constatar, defendia que somente com D. Pedro no trono e uma monarquia constitucional o Brasil não mergulharia na anarquia ou não perderia o status alcançado em 1815 – quando se criou o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O escrito que se segue foi lido diante de D. Pedro, na sessão solene da câmara municipal de 9 de janeiro de 1822, depois de Clemente Pereira ter entregado ao Príncipe Regente a manifestação pelo “Fico” dos cariocas, manifestação redigida pelo conhecido sermonista frei Francisco de Santa Teresa Jesus Sampaio.

Fala que o Juiz de Fora desta cidade, José Clemente Pereira, Presidente do Senado da Câmara, dirigiu à Sua Alteza Real no ato em que este apresentou ao mesmo Senhor as representações do Povo da mesma cidade. [2]

Senhor, a saída de Vossa Alteza Real dos estados do Brasil será o fatal decreto que sanciona a independência deste Reino! Exige, portanto, a salvação da pátria, que Vossa Alteza Real suspenda a sua ida, até nova determinação do soberano congresso. [3]

Tal é, Senhor, a importante verdade que o Senado da Câmara desta cidade, impelido pela vontade do povo que representa, tem a honra de vir apresentar à muita alta consideração de Vossa Alteza Real; cumpre demonstrá-la.

O Brasil, que em 1808 viu nascer nos vastos horizontes do Novo Mundo a primeira aurora da sua liberdade; o Brasil, que em 1815 obteve a carta da sua emancipação política, preciosa dádiva de um rei benigno; o Brasil, finalmente, que em 1821, unido à mãe pátria, filho tão valente como fiel, quebrou com ela os ferros do proscrito despotismo, recorda sempre com horror os dias da sua escravidão recém passada. Teme perder a liberdade mal segura, que tem principiado a gostar e receia que um futuro envenenado o precipite no estado antigo de suas desgraças.

É filho daquela recordação odiosa, daquele temor e deste receio, o veneno que a opinião pública se apressou a lançar na carta de Lei do 1º de outubro de 1821, porque se lhe antojou que o novo sistema de governos de juntas provisórias, com generais das armas independentes delas, sujeitos ao governo do Reino, a este só responsáveis e às Cortes, tende a dividir o Brasil e a desarmá-lo, para o reduzir ao antigo estado de colônia, que só vis escravos podem tolerar, e nunca um povo livre, que se pugna pôr o ser, nenhuma força existe capaz de o suplantar.

É filho das mesmas causas o veneno que a opinião pública derramou sobre a carta de Lei do mesmo dia, mês e ano, que decretou a saída de Vossa Alteza Real; porque entendeu que este decreto tem por vistas roubar ao Brasil o centro da sua unidade e política, única garantia da sua liberdade e ventura.

São filhos das mesmas causas o dissabor e o descontentamento com que o povo constitucional e fiel ouviu a moção da extinção dos tribunais deste Reino; porque desconfiou que Portugal aspira a reedificar o império da sua superioridade antiga, impondo-lhe a dura lei da dependência e arrogando-se todas as prerrogativas de mãe, como se durasse ainda o tempo da sua curatela extinta; sem se lembrar que este filho, emancipado já, não pode ser privado com justiça da posse de direitos e prerrogativas que por legítima partilha lhe pertencem.

São filhos das mesmas causas o reparo e o susto com que o desconfiado brasileiro viu que no soberano congresso se principiaram a determinar negócios do Brasil sem que estivessem reunidos todos os seus deputados, contra a declaração solene do mesmo soberano congresso, tantas vezes ouvida com exaltado aplauso do povo brasileiro; porque julgou acabada de uma vez a consideração até então politicamente usada com esta importante parte da monarquia.

Tal é, Senhor, o grito da opinião pública nesta província. Corramos a vista ligeiramente sobre as outras; o que se pode esperar da sua conduta?

Pernambuco, guardando as matérias primas da independência que proclamou um dia [4] malograda por imatura, mas não extinta, quem duvida que a levantará de novo, se um centro próximo de união política a não prender?

Minas principiou por atribuir-se um poder deliberativo, que tem por fim examinar os decretos das Cortes Soberanas e negar obediência àqueles que julgar opostos aos seus interesses; já deu acessos militares; trata de alterar a lei dos dízimos; tem entrado, segundo dizem, no projeto de cunhar moeda. E o que mais faria uma província que se tivesse proclamado independente?

São Paulo sobejamente manifestou os sentimentos livres que possui nas políticas instruções que ditou aos seus ilustres deputados. Ela aí corre a expressá-los mais positivamente pela voz de uma deputação que se apressa em apresentar a V. A. R. uma representação igual à deste Povo!

O Rio Grande de São Pedro do Sul vai significar a V. A. R. que vive possuído de sentimentos idênticos pelo protesto desse honrado cidadão que vedes incorporado a nós!

Ah! Senhor, e será possível que estas verdades, sendo tão públicas, estejam fora do conhecimento de V. A. R.? Será possível que V. A. R. ignore que um partido republicano, mais ou menos forte, existe semeado aqui e ali em muitas das províncias do Brasil, para não dizer em todas elas? Acaso os cabeças que intervieram na explosão de 1817 expiraram já? E se existem e são espíritos fortes e poderosos, como se crê que tenham mudado de opinião? Qual outra lhes parecerá mais bem fundada que a sua? E não diz uma fama pública, ao parecer segura, que nesta cidade mesma um ramo deste partido reverdeceu com a esperança da saída de V. A. R., que fez tentativas para crescer e ganhar forças, e que só desanimou à vista da opinião dominante, de que V. A. R. se deve demorar aqui para sustentar a união da Pátria?

Não é notório e constante que vasos de guerra estrangeiros visitam, em número que se faz notável, todos os Portos do Brasil? E não se diz que grande parte desses pertence a uma nação livre, que protege aquele partido, e que outros são observadores vigilantes de nações empreendedoras?

Não foi, finalmente, quando preparavam a sua constituição política, que a Polônia se viu talada pelas armas dos êmulos da sua futura glória e a Espanha, por falta de política, perdeu a riqueza das suas Américas?

E se de tudo é resultado certo, a Pátria está em perigo!!! Qual será o remédio também achado que a salve? A opinião pública, essa rainha do mundo poderosa, que todos os negócios políticos governa com acerto, o ensina.

Dê-se ao Brasil um centro próximo de união e atividade, dê-lhe uma parte do corpo legislativo e um ramo do poder executivo, com poderes competentes, amplos, fortes e liberais, e tão bem ordenados que, formando um só corpo legislativo e um só poder executivo, só umas Cortes e só um Rei, possa Portugal e o Brasil fazer sempre uma família irmã, um só povo, uma só nação e um só império. E não oferecem os governos liberais da Europa exemplos semelhantes? Não é por este sistema divino que a Inglaterra conserva unida a si a sua Irlanda?

Mas enquanto não chega este remédio tão desejado como necessário, exige a salvação da Pátria que V. A. R. viva no Brasil para o conservar unido a Portugal. Ah! Senhor, se V. A. R. nos deixa, a desunião é certa. O partido da independência, que não dorme, levantará o seu império; e em tal desgraça, oh!, que horrores de sangue, que terrível cena aos olhos de todos se levanta!

Demorai-vos, Senhor, entre nós, até dar tempo que o soberano congresso seja informado do último estado das coisas neste Reino e da opinião que nele reina. Dai tempo para que receba as representações humildes deste povo constitucional e fiel, unidas às das mais províncias. Dai tempo para que todas corram para este centro de unidade; que, se elas vierem, a pátria será salva, aliás, sempre estará em perigo. Dai afago aos votos dos seus filhos do Brasil.

Façamos justiça à sua boa-fé e veremos que as cartas de Lei do lº de outubro de 1821, que a tantas desconfianças têm dado causa, foram ditadas sobre o estado da opinião que a este tempo dominava neste Reino. Quase todas as províncias declararam muito positivamente que nada queriam do governo do Rio de Janeiro e que só reconheciam o de Lisboa. V. A. R. o sabe, e V. A. R. mesmo foi obrigado a escrever para lá, que não podia conservar-se aqui por falta de representação política, mais limitada que a de qualquer capitão general do governo antigo. Apareceram, além disto, nesta cidade, dias aziagos! Correram vozes envenenadoras, que nem a pureza da conduta de V. A. R., a todas as luzes conhecidamente constitucional, perdoaram. Desejou-se (sou homem de verdade, ei de dizê-lo), desejou-se aqui e escreveu-se para lá que V. A. R. saísse do Brasil.

Dado esses fatos, que são positivos e indubitáveis, que outra ideia se podia então apresentar ao soberano congresso que não fosse a de mandar retirar do Brasil a augusta pessoa de V. A. R.?

Mas hoje, que a opinião dominante tem mudado e tem principiado a manifestar-se com sentimentos que os verdadeiros políticos possuíram sempre; hoje que todos querem o governo de V. A. R. como remédio único de salvação contra os partidos da independência; hoje que se tem descoberto que aquelas declarações ou nasceram de cálculos precipitados, filhos da ocasião e do ódio necessário que todas as Províncias tinham ao Governo do Rio de Janeiro pelos males que de cá lhes foram, ou tiveram talvez por verdadeiro fim abrir os primeiros passos para uma premeditada independência absoluta; hoje, finalmente, que todas vão caminhando para ela, mais ou menos, é sem dúvida de esperar que o soberano congresso, que só quer a salvação da Pátria, conceda sem hesitar, aos honrados brasileiros, o remédio de um centro próximo de unidade e atividade que com justiça lhe requerem.

E como se poderá negar ao Brasil tão justa pretensão? Se Portugal acaba de manifestar aos soberanos e povos da Europa que, entre as ponderosas e justificadas causas que produziram os memoráveis acontecimentos que ali tiveram lugar nos regeneradores dias 24 de agosto e 15 de setembro de 1820, [5] foi principal a da orfandade em que se achava pela ausência de Sua Majestade, o Senhor Rei D. João VI, por ser conhecida por todos a impossibilidade de pôr em marcha regular os negócios públicos e particulares da monarquia, achando-se colocado a duas mil léguas o centro de seus movimentos. Que razão de diferença existe para esperar que o Brasil, padecendo os mesmos males, não busque mais tarde ou mais cedo os mesmos remédios? E não será mais acertado conceder-lhe já o que por força se lhe há de dar?

Tais são, Senhor, os votos deste povo; e, protestando que vive animado da mais sincera e ardente vontade de permanecer unido a Portugal pelos vínculos de um pacto social que, fazendo o bem geral de toda a nação, faça o do Brasil por anéis de condições em tudo iguais, roga a Vossa Alteza Real que se digne de os acolher benigno e anuir a eles, para que aqueles vínculos mais e mais se estreitem e se não quebrem... Por outra forma, o ameaçado rompimento de independência e anarquia parece certo e inevitável.

Amanda Peruchi é doutora em História e autora do livro “Saborear e Curar: a chegada do café no mundo luso-brasileiro” (Coleção Memória Atlântica – Cultura Acadêmica, 2021).

Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1999), “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII” (José Olympio/Editora da UNESP, 2012), “Piratas no Brasil” (Editora Globo, 2016, com Sheila Hue) e Franceses o Brasil (Chão Editora, 2021).

Referências no texto:

[1] 09 de janeiro de 1822.

[2] 2º Suplemento ao número 7 da Gazeta do Rio Janeiro, de 15 de janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, n. 7, p. 42-43, 15 jan. 1822.

[3] Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, instaladas em 24 de janeiro de 1821.

[4] Revolução Pernambucana, em 1817.

[5] Revolução do Porto (24 de agosto de 1820) e convocação das Cortes para a elaboração de uma Constituição (15 de setembro de 1820).

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