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O escritor português José Rodrigues dos Santos
José Rodrigues dos Santos: o “anti-Dan Brown” português| Foto: Divulgação

Durante mais de duas décadas, o italiano Umberto Eco se dedicou ao estudo crítico da Cultura de Massa, reservando boa parte de sua artilharia para a crítica e o desmascaramento do kitsch – um incômodo vocábulo que tantas pessoas mais citam do que compreendem. Talvez cansado de tentar compreender o mundo da cultura de massa, o fato é que Eco preferiu partir para transformar seu próprio mundo pessoal, marcado àquela época por uma popularidade discreta e um saldo bancário acanhado. Usando todo o seu conhecimento sobre a indústria cultural e as receitas de bolo barato que ela preparava e servia, optou por se tornar parte do fenômeno, publicando romances que afinal lhe trouxeram celebridade e fortuna.

Com O Nome da Rosa, Eco inaugurou uma carreira de sucesso formada por sete romances, com os quais angariou também (além de grama e prestígio junto ao vasto público) a gratidão de seus pares do meio acadêmico: agora, não mais precisariam se esconder para se deleitarem com a ficção barata de sempre. Eco, de certa forma, inaugurou uma “nova corrente” no universo paralelo dos best sellers, marcado até ali por Harold Robbins, Arthur Hailey, Morris West e Ken Follett. Com O Nome da Rosa, nascia o best seller universitário.

Como nenhum caldo é tão inconsistente que não possa ser ainda mais diluído, não muitos anos se passaram até o aparecimento de um novo fenômeno editorial: o americano Dan Brown, com seus famigerados O Código Da Vinci, Inferno e Anjos e Demônios, que também obedecem à fórmula de misturar suspense com algumas porções de informações históricas e estéticas. E eis que, de diluição em diluição, o assombro popular chegou ao universo linguístico lusitano, mais especificamente a Portugal, pelas mãos do jornalista e escritor José Rodrigues dos Santos – o Dan Brown português.

A literatura como cópia da cópia

Em vários de seus ensaios, Umberto Eco definiu o kitsch (traço marcante da ficção best seller) como uma “quase nulidade”, um padrão “incapaz de produzir um contexto novo”. Como corolário, demonstrou também que o fenômeno ultrapassa a mera questão da quantidade – mesmo porque o “livro mais vendido em todo o mundo” é nenhum menos do que a Bíblia Sagrada.

O fato é que a própria experiência do Eco-romancista colocou em outro patamar a questão ociosa sobre “quem nasceu primeiro” – se galinha da receita de bolo ou o ovo dos livros campeões de vendas. Assim, de acordo com o Eco-ensaísta, todo livro que se encaixa nesta definição é fruto da aplicação de um receituário específico, já bastante testado. Por isso, para garantir sucesso, Dan Brown seguiu as prescrições e imitou os “melhores”. E, para assegurar seu quinhão, José Rodrigues dos Santos imitou Dan Brown. No caso, literalmente.

Natural da cidade de Beira, na ex-colônia portuguesa Moçambique, José Rodrigues dos Santos fez uma carreira bem-sucedida como jornalista e correspondente de guerra. Com doutorado em Ciências da Comunicação, tornou-se também professor da Universidade Nova de Lisboa, embora tenha se tornado mais conhecido como apresentador do Telejornal da emissora portuguesa de televisão RTP1. Em matéria de sucesso, no entanto, nada se comparou à notoriedade e ao faturamento atingidos como escritor de romances de ação e suspense – em suma, como o “Dan Brown português”.

A rigor, José Rodrigues dos Santos não foi pioneiro no quesito vendagens elevadas, em terras lusitanas: o mercado editorial português já conhecia nomes como José Saramago, António Lobo Antunes e Miguel de Sousa Tavares (com o excelente Equador). A novidade é que, à maneira de Umberto Eco, José Rodrigues parece ter querido usar a seu favor toda a experiência acumulada como homem de comunicação de massas. Trocando em miúdos, tratou de unir o útil (um bom faturamento) ao agradável (tornar-se uma celebridade), bastando para isso abrir mão de um punhado de escrúpulos e estar atento aos algoritmos da indústria cultural.

O principal estopim do sucesso ficcional de José Rodrigues foi O Códex 362 (2005), romance que introduz o personagem que lhe renderia outros livros: o professor de História Tomás Noronha, dividido entre as dificuldades domésticas de praxe (pagar contas, sustentar a família com um salário modesto, etc.) e as aventuras inesperadas de decifrar manuscritos, conhecer mulheres atraentes e se envolver em teorias da conspiração e perseguições nada teóricas.

(Não é apenas impressão, leitor: você já leu esse livro. Várias vezes!)

Em Códex, Rodrigues conta as peripécias de Tomás ao ser contratado para decifrar documentos que revelariam facetas inesperadas de Cristóvão Colombo – o que é mero pretexto para oferecer ao leitor pinceladas de História de Portugal, misturadas a alguns bocados de erudição filosófica e extravagâncias geográficas (numa abordagem que não ultrapassa os limites do turístico).

A este romance, seguiu-se o consagrado A Fórmula de Deus, que repete a receita: dessa vez, o fictício Tomás divide a atenção do leitor com ninguém menos do que Albert Einstein, personagem real que desencadeia a aventura do livro. O enredo, mais do que histórico, é calculadamente filosófico e religioso: Tomás é contratado para decifrar um manuscrito de Einstein recém-descoberto, onde o ilustre cientista supostamente apresenta a prova científica da existência de Deus – e no qual os Estados Unidos e o Irã estão igualmente interessados, por imaginarem que na verdade o documento expõe a fórmula para fabricar (de modo fácil e rápido) uma bomba atômica! Nesta saga, Tomás Noronha faz dupla com Ariana Pakravan, belíssima física nuclear que trabalha para o Ministério da Ciência iraniano.

Perseguições, intrigas amorosas, pinceladas de ciência nuclear e um pouco de religião – os romances de José Rodrigues dos Santos seguem o bem-sucedido modelo comercial (“o máximo possível pelo seu dinheiro”) que vem garantindo o êxito de toda uma linhagem que vem de Morris West e Ken Follett até o contemporâneo Dan Brown, passando pelo próprio Umberto Eco, entre tantos outros. Com a diferença de que, com A Fórmula de Deus, nem é preciso muito esforço para estabelecer o gráfico de influências, pois que se trata de uma imitação explícita e assumida dos livros de Dan Brown. Uma cópia da cópia.

Assim, temos:

Tomás Noronha, professor de História e cripto-analista da Universidade Nova de Lisboa, é – praticamente ipsis litteris – o professor de iconografia religiosa e simbologia da Universidade de Harvard Robert Langdon. Da mesma forma, a cientista nuclear Ariana Pakravan é um arremedo de Sophie Neveu, criptóloga da Polícia Francesa e co-protagonista de O Código Da Vinci. Enquanto Sophie se envolve numa frenética perseguição para ajudar Langdon, a Dra. Pakravan ajuda Tomás a decifrar o manuscrito de Einstein e chega a trair o seu país para salvar o português, por quem afinal se apaixona.

Se compararmos também outros romances do escritor português com os de seu colega e modelo americano, veremos que não se trata de mera coincidência – da mesma forma que o sucesso de vendas de ambos vai muito além da proverbial “sorte de principiantes”. Citemos então Inferno, Anjos e Demônios e Origem, de Dan Brown, e O Mágico de Auschwitz e O Manuscrito de Birkenau, de José Rodrigues dos Santos. Em cada um, a mesma advertência de que “todos os dados científicos apresentados são verdadeiros e as teorias científicas expostas são defendidas por físicos e matemáticos”.

Certamente, este enciclopedismo, tão típico de nossa época, é uma entre as várias facetas da modernidade, anunciada ao longo dos tempos por numerosos pensadores-profetas. De apocalípticos a integrados (outra fórmula de Umberto Eco), a maioria tem acertado ao sugerir que o futuro se caracterizaria (e ele já se caracteriza) como o “Reino da Quantidade”, onde a prática das virtudes cederia espaço (e ela já vem cedendo) a uma busca difusa por felicidade e prazer.

Mais útil, no entanto, do que traçar o previsível gráfico que aproxima – e até justapõe – as estruturas narrativas, o enredo e até os personagens de livros como O Código Da Vinci e A Fórmula de Deus, é estabelecer a divisa entre os dois universos.

Brown X Santos: o copo ‘meio cheio’ ou ‘meio vazio’?

Em seus estudos sobre estética, o filósofo conservador inglês Roger Scruton definia o kitsch como um índice de deficiência moral, uma estética cruel que “transforma o seres humanos em bonecos de manipulação”. De fato, o exagero sentimentalista de O Código Da Vinci encontra seu par perfeito nas falácias com que o Dan Brown trata de denegrir o catolicismo (ainda) predominante na cultura ocidental, “denunciando” o viés esotérico da doutrina e a prática criminosa de seus mandatários. Por trás da aparência de entretenimento barato (e, supostamente, inofensivo), o Código é na verdade um panfleto progressista bastante nefasto.

(Quem não se lembra? Enquanto o livro se manteve no topo das listas de mais vendidos em todo o mundo, não foram poucos os que usaram seus argumentos blasfemos em debates públicos ou particulares, sempre empenhados em “desmascarar o Catolicismo machista e opressor”.)

Em José Rodrigues dos Santos, o copo dos valores estéticos também está pela metade,  pois a prosa oferecida não se abre para nenhuma experiência espiritual transformadora, como nas grandes obras. Mesmo assim, é lícito arriscar, numa visão otimista, que o recipiente está “meio cheio”: embora siga os ditames da literatura barata (sob o risco, portanto, de ser também “moralmente deficiente”), A Fórmula de Deus ainda se mantém fiel (a seu modo) a uma tradição que remonta a Aristóteles e preconiza o conhecimento como a busca da Beleza, do Bem e da Verdade. Sem roubar ao leitor o prazer de desfrutar algumas pequenas surpresas, pode-se adiantar que o romance não destrói nem recusa a “hipótese de Deus” – e, em lugar de oposição enganosa, defende a união benéfica entre Fé e Razão, Religião e Ciência.

Bem outra, aliás, é a posição de Dan Brown. Fiel à agenda progressista em andamento, defende o ateísmo explícito em vários outros romance – em particular, Inferno e Origem, em que a crença e a prática religiosas são reduzidas a sinônimos de obscurantismo.

Em breve síntese, e sempre correndo algum risco da simplificação falseadora, Dan Brown e José Rodrigues dos Santos parece que se encontram em posições antípodas dentro do espectro ideológico-político. Não é à toa que, para além da aceitação de seus livros (e disso as cifras e as tiragens são sinais indiscutíveis), os dois despertem reações bem diferentes nas redes sociais.

Enquanto Brown só recebe críticas pontuais e acanhadas de segmentos mais conservadores, incomodados com suas posturas anticlericais e abertamente ateístas (mais recentemente, durante o lançamento do romance Origem, chegou a prognosticar o fim de Deus e o encerramento das “atividades religiosas”), Santos está sempre às voltas com ataques e até mesmo ações jurídicas contra seu posicionamento mais independente e tradicionalista (“reacionário”, no dizer de muitos). Mais de uma vez, já foi acusado de homofobia – como quando fez um comentário irônico sobre Alexandre Quintanilha, deputado homossexual do Partido Socialista, e acabou sendo ameaçado de processo pela classe política e pela seção portuguesa da Associação Internacional de Gays e Lésbicas.

Em outra ocasião – mais especificamente, em 2015 – José Rodrigues dos Santos aproveitou a cobertura das eleições na Grécia para fazer uma série de críticas ao modelo “progressista” grego, responsável (segundo ele) por corrupção, atraso e desmandos. Apoiava-se em fatos – e um dos pontos em que concentrou munição foi o programa estatal grego de pagar férias aos pobres em hotéis de três e quatro estrelas, financiado previsivelmente pelos impostos de toda a sociedade. A reação da imprensa e do Bloco de Esquerda português foi quase unânime, acusando-o de intolerante, reacionário e elitista.

A mão que afaga, quase sempre, é a mesma que apedreja. Não custa repetir, antes de encerrar: no caso de José Rodrigues dos Santos, tanto o sucesso de vendas quanto os ataques a suas posições expressam uma só tendência – o espírito-síntese de nossa época, marcada por um duplo esforço de constrangimento.

De um lado, testemunhamos o combate à Grande Arte, perpetrado pela democratização da literatura barata e de fácil digestão; de outro, assiste-se a uma intimidação política sistemática, com uma mesma agenda comportamental e ideológica sendo imposta globalmente nos quatro cantos do planeta.

Às vezes, paga-se um preço bastante alto pelo sucesso.

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