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Em “A Vida Intelectual” (1921), o filósofo francês Sertillanges um apresenta guia para quem busca se dedicar aos estudos e à erudição.
Em “A Vida Intelectual” (1921), o filósofo francês Sertillanges apresenta um guia para quem busca se dedicar aos estudos e à erudição.| Foto: Reprodução/Bibliothèque Nationale de France

O texto a seguir é um trecho do livro “A Vida Intelectual(1921), escrito pelo filósofo, teólogo e sacerdote dominicano francês Antonin-Dalmace Sertillanges (1863-1948), também conhecido como Antonin-Gilbert Sertillanges. Além de apresentar um guia para quem busca se dedicar aos estudos e à erudição, o autor desmonta as normas estabelecidas do que é ser um erudito e combate o estereótipo do intelectual como um sujeito alheio ao convívio social. Olavo de Carvalho, cuja morte completou dois anos nesta semana, afirmou em várias entrevistas que esta foi a obra que “decidiu sua vida”. Ainda atual, o livro ganhou uma nova edição brasileira em 2023, lançada pela editora Edipro.

Não é sábio, não é fecundo – dizem – perseguir uma especialidade muito determinada, nela encerrar-se de imediato. Isso corresponde a usar antolhos. Nenhuma ciência é autossuficiente; nenhuma disciplina considerada isoladamente detém luz suficiente para trilhar suas próprias vias. Isolada, ela se limita, se contrai, se estiola e, na primeira oportunidade, perde o rumo.

Uma cultura parcial é sempre indigente e precária. Sem se deter, a mente se ressente; não sei qual liberdade de movimento, qual segurança no olhar lhe faltam e paralisam seus gestos. Um “fruto seco” significa alguém que nada sabe, mas também alguém que foi reduzido e desidratado por haver prematuramente confinado a si mesmo o cultivo de sua terra exclusiva.

É possível assegurar sem incorrer em um paradoxo que cada ciência firmemente impulsionada conduziria às outras ciências, estas à poesia, esta e as ciências à ética, em seguida à política e mesmo à religião naquilo que esta tem de humana. Tudo está em tudo e somente por abstração é possível um sistema de divisórias. Abstrair não é mentir, diz o provérbio: abstrahere non est mentiri. Mas isso com a condição de a abstração que distingue, que isola metodicamente, que concentra sua luz em um ponto, não vir a separar daquilo que ela estuda o que mais ou menos diretamente a ela diz respeito. Cortar assim um objeto de suas comunicações é falseá-lo, já que seus vínculos fazem parte dele mesmo.

Será possível estudar uma peça do relógio sem atentar para a peça vizinha? Será possível estudar um órgão do corpo sem preocupar-se com o corpo como um todo? Tampouco se pode progredir em física ou em química sem as matemáticas, em astronomia sem a mecânica e sem a geologia, em ética sem psicologia, em psicologia sem as ciências naturais, em nada sem história. Tudo se liga. As luzes se entrecruzam e um tratado inteligente de cada uma das ciências faz alusão, mais ou menos, a todas as outras.

Se, portanto, desejas preparar-te com uma mente aberta, clara, verdadeiramente poderosa, começa por desconfiar da especialidade. Estabelece tuas bases em conformidade com a altura a que queres ascender; alarga o orifício da escavação de acordo com a profundidade que ela deve atingir. Compreende, de resto, que o conhecimento não é nem uma torre nem um poço, mas uma habitação humana. Um especialista, se não for um homem, é um burocrata; sua ignorância esplêndida faz dele um desorientado entre os seres humanos; ele é desajustado, anormal e tolo. O intelectual católico não copiará esse modelo. Pertencente ao gênero humano por sua vocação, deseja, em primeiro lugar, ser humano; caminhará sobre o solo resolutamente apoiando-se em uma base de sustentação, não saltando nas pontas dos pés.

Nosso conhecimento tentou sondar a noite em todos os sentidos; nossos cientistas nela mergulham a mão para reconduzir as estrelas; esse nobre esforço não deixa indiferente nenhum verdadeiro pensador. Acompanhar até certo ponto as explorações de cada pesquisador constitui para ti uma obrigação que resultará, ao fim, em uma capacidade decuplicada em favor de tuas próprias pesquisas. Quando retornares a tua especialidade após haver, assim, experimentado culturas diversas, após haver ampliado tua visão, captado o sentimento das conexões que ocorrem em profundidade, serás um outro homem, distinto daquele confinado em uma disciplina estreita.

Toda ciência, cultivada à parte, não só não é autossuficiente, como também apresenta perigos que todos os homens sensatos reconheceram. Os matemáticos isolados falseiam o juízo ao habituá-lo a um rigor que não comporta nenhuma outra ciência e menos ainda a vida real. A física, a química se tornam obsessivas devido a sua complexidade e não proporcionam à mente nenhuma amplitude. A fisiologia promove o materialismo; a astronomia, a divagação; a geologia faz de ti um cão de caça que se limita a farejar; a literatura te torna vazio; a filosofia, envaidecido; a teologia te entrega a uma falsa sublimidade e a um orgulho doutoral. É necessário passar de um espírito a outro a fim de corrigi-los, um por meio do outro; impõe-se entrecruzar as culturas para não arruinar o solo.

E não penses que, pelo fato de impulsionar até certo ponto esse estudo comparado, significa sobrecarregar-te e atrasar-te no que se refere a um estudo especial. Não irás te sobrecarregar, pois as luzes descobertas na comparação, pelo contrário, aliviarão todas as coisas; ao captar a amplitude, tua mente tornar-se-á com isso mais apta a receber sem se sobrecarregar.

Quando se tem acesso ao centro das ideias, tudo se torna mais fácil. E que melhor meio de ter acesso a esse centro do que tentar diferentes vias quando todas, tal como os raios de um círculo, proporcionam o sentimento de um encontro e de uma encruzilhada comum?

Conheço um linguista que em 15 dias desenreda uma língua nova. Por quê? Porque ele conhece muitas outras línguas. Basta um olhar de sua parte para apreender o espírito de seu novo idioma, seus caracteres fundamentais, sua constituição inteira. As ciências são as línguas diversas nas quais a natureza inefável é balbuciada com dificuldade pelos seres humanos; decifrar muitas delas significa favorecer cada uma delas, pois no fundo são apenas uma.

Ademais, o instinto poderoso e o entusiasmo despertados em todo indivíduo bem-dotado desse modo de viajar por intermédio da ciência, de explorar esses magníficos domínios como se visitam sucessivamente os fiordes da Noruega, o Corno de Ouro, os hipogeus do Egito, os pampas da América do Sul e os palácios chineses, esse ardor de alguma forma épico, ao qual está presa uma inteligência vigorosa ao contato das grandezas do espírito, comunica ao estudo uma eloquência e facilidades maravilhosas.

Um rabino a que se censurava de sobrecarregar a lei respondeu: “Quando um alqueire está cheio de nozes, pode-se ainda nele verter muitas medidas de azeite”. Essa pessoa tinha o zelo que, no que se refere à capacidade espiritual, corresponde ao calor que dilata os corpos. Uma taça exposta ao sol tem maior capacidade do que à sombra. Uma mente embriagada ante o espetáculo do verdadeiro, por ele expandida como um arco-íris, torna-se capaz de adquirir sem fadiga, jubilosamente, conhecimentos que fatigariam aquele tristemente circunscrito a uma única ciência.

Os grandes homens sempre se mostraram mais ou menos universais. Atingindo a excelência em alguma parte, foram nas demais ao menos curiosos, com frequência cientistas, por vezes até especialistas. Não circunscreverias a uma só cultura homens como Aristóteles, Bacon, Leonardo da Vinci, Leibniz ou Goethe. [O matemático francês] Henri Poincaré suscitava imensa admiração em todos os seus colegas de todos os departamentos da Academia de Ciências por seus pareceres geniais; consultá-lo era o mesmo que se situar de imediato no centro do conhecimento, ali onde não há mais ciências diversas.

Tu não tens tais pretensões? Que seja! Mas para cada um proporcionalmente aquilo que foi praticado pelos grandes permanece uma indicação fecunda. Realiza um projeto amplo que gradualmente diminuirá do prisma do tempo devotado a cada estudo secundário, jamais do prisma da amplitude do olhar e do espírito de trabalho.

Escolhe bem teus conselheiros. Um único tomado entre mil para o conjunto de tua atividade, outros para cada uma de suas partes, se for necessário. Reparte o tempo; regula a sucessão dos objetos de estudo: isso não é aleatório.

Em cada coisa, vai direto ao essencial; não te permitas o atraso devido às minúcias: não é por meio de suas minúcias que as ciências se unem; com frequência, é por meio de seu detalhe, mas o detalhe característico, isto é, ainda assim a essência.

Ademais, não podes encontrar uma diretriz em tudo isso antes de ter penetrado no que nos resta dizer.

Do mesmo modo que nenhuma ciência particular não se basta, também o conjunto das ciências não se basta na ausência da rainha das ciências: a filosofia, nem o conjunto dos conhecimentos humanos na ausência da sabedoria egressa da própria ciência divina: a teologia.

O padre [e filósofo francês Alphonse] Gratry se pronunciou acerca desse ponto das verdades capitais e Santo Tomás, muito mais profundamente ainda, marcou o lugar, o posto dessas duas rainhas do duplo reino. As ciências, sem a filosofia, abrem mão de sua soberania e se desorientam. As ciências e a filosofia sem a teologia abrem mão mais ainda da soberania, pois a coroa que repudiam é uma coroa celeste e se desorientam de uma forma mais irremediável, pois a Terra sem o céu não encontra mais nem a trajetória de sua órbita nem as influências que a tornam fecunda.

Agora que a filosofia cedeu, as ciências declinam e se dispersam; agora que a teologia é ignorada, a filosofia é estéril; nada conclui; faz a crítica sem critério e ainda sem critério faz história; com frequência é sectária e destrutiva; às vezes é abrangente e eclética; nunca é tranquilizadora e realmente esclarecedora; ela não ensina. E, para seus mestres, detentores da dupla infelicidade de ignorar e ignorar que ignoram, a teologia é uma coisa do outro mundo.

Sim, certamente, a teologia é, com efeito, do outro mundo quanto a seu objeto; mas o outro mundo carrega este, dá-lhe continuidade em todos os sentidos, na retaguarda, na dianteira e acima, e não é de surpreender que o ilumina.

Se o intelectual católico pertence a seu tempo, nada pode fazer de melhor senão trabalhar dando sua contribuição para nos restituir a ordem de que carecemos. O que faz falta nesta época do ponto de vista da doutrina não é a dose de conhecimento, é a harmonia deste, harmonia somente obtenível recorrendo-se aos primeiros princípios.

A ordem da mente deve corresponder à ordem das coisas e, visto que a mente somente se instrui verdadeiramente pela investigação das causalidades, a ordem da mente deve corresponder à ordem das causas. Se, portanto, há um Ser primordial e uma Causa primeira, é nesse âmbito que se consuma e se esclarece em última instância o conhecimento. Primeiro, para o filósofo por meio da razão; a seguir, para o teólogo a empregar a luz vinda do alto; o homem de verdade deve centrar sua pesquisa naquilo que é ponto de partida, regra e meta suprema; no que é tudo para todas as coisas, como para todos.

A ordem somente surge, em qualquer gênero de objetos ou de disciplinas, no momento em que os princípios, hierarquicamente classificados até o princípio primeiro, desempenham seus papéis de princípios, de líderes, como em um exército, como em uma residência organizada, como em um povo. Hoje, repudiamos os primeiros princípios, e o conhecimento dissolveu-se. Tudo que temos são migalhas, trajes velhos que ainda guardam algum brilho, mas nenhuma roupa; capítulos magníficos, mas nenhum livro acabado, nenhuma Bíblia.

As bíblias do conhecimento foram outrora as sumas: não possuímos mais sumas e ninguém entre nós está em condições de escrever uma. Tudo é caótico. Mas, ao menos, se uma suma coletiva é prematura, cada homem que pensa e que deseja verdadeiramente saber pode tentar constituir sua suma pessoal, isto é, introduzir a ordem em seu conhecimento recorrendo aos princípios dessa ordem, isto é, filosofando e coroando sua filosofia por meio de uma teologia sumária, mas profunda.

Os cientistas cristãos, do começo ao fim do século XVII, eram todos teólogos, e os cientistas, cristãos ou não, até o século XIX, eram todos filósofos. A partir de então, o conhecimento declinou; ganhou em superfície e perdeu em altura e, portanto, também em profundidade, uma vez que a terceira dimensão tem dois sentidos que se correspondem. Que o católico consciente dessa aberração e de suas consequências não sucumba a ela; vindo a ser intelectual ou desejoso de tornar-se um, que tenha como alvo a intelectualidade completa, que conceda a si todas as dimensões dela.

Dizia o padre Gratry que a teologia veio inserir na árvore da ciência um enxerto divino, graças ao qual essa árvore pode produzir frutos que não são seus. Nada se subtrai de sua seiva; pelo contrário, a ela se concede uma circulação gloriosa. Em razão desse novo impulso impresso ao saber, desse recorrer do cientista cristão, após coligir seus próprios dados, à colaboração celeste, todos os conhecimentos são vivificados e todas as disciplinas, ampliadas. A unidade da fé confere ao trabalho intelectual o caráter de uma cooperação imensa. É a obra coletiva dos seres humanos unidos em Deus. E é por isso que a ciência cristã, tal como é, e muito mais ainda quando for escrita a suma dos tempos modernos, só pode superar em amplitude e inspiração todos os monumentos da antiguidade e do neopaganismo. As enciclopédias têm com ela uma proximidade muito semelhante àquela que tem Babel com as catedrais.

Na procura da verdade, deveria ser proibido ignorar um tal tesouro. Espero que a próxima geração, posta na estrada por esta que supera tão notoriamente seus ancestrais, venha a abordar com seriedade e sem temor do julgamento alheio a ciência das ciências, o cântico dos cânticos do saber, a teologia inspiradora e única capaz de uma conclusão final. Nela encontrar-se-ão ao mesmo tempo a maturidade e o arrebatamento, o lirismo vigoroso e calmo que constitui a vida completa da mente.

Conteúdo editado por:Omar Godoy
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