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O principal tema da obra de John Le Carré sempre foi a sede de poder e a indiferença do Estado pelo indivíduo.
O principal tema da obra de John Le Carré sempre foi a sede de poder e a indiferença do Estado pelo indivíduo.| Foto: John MACDOUGALL / AFP

David Cornwell, mundialmente conhecido por seu pseudônimo John le Carré, morreu no sábado (12), aos 89 anos. Sua carreira de mais de 60 anos redefiniu todo um gênero e estabeleceu padrões de análise de todos os romances políticos da Guerra Fria e posteriores a ela. Ele criou intrincados quebra-cabeças literários sem sucumbir a maneirismo ou aos truques pós-modernos, e sua bússola moral apontava sempre para o mesmo lugar.

Agente do serviço britânico de inteligência no começo dos anos 1960, Le Carré foi exposto pelo famoso espião Kim Philby, o que pôs fim ao seu trabalho de agente infiltrado. Já consagrado como escritor de sucesso – função que assumiu para ajudar nas despesas com sua jovem família – ele conseguiu se tornar escritor em tempo integral depois que seu segredo foi revelado.

A partir de 1963, com “O Espião que Veio do Frio” – seu terceiro romance, mas o primeiro a romper com a tradição da literatura de mistério inglesa - Le Carré escreveu uma série de livros que registram de uma forma mordas e impiedosa o papel menor da Grã-Bretanha no mundo pós-guerra e seus esforços desesperados para compensar as perdas territoriais e de poder usando de força, esperteza e mentira. Patriota à moda antiga, Le Carré desprezava o que via como postura servil do seu país em relação aos Estados Unidos. Ele também odiava o imperialismo, a exploração dos pobres e as aventuras internacionais por vaidade.

A maior invenção de Le Carré foi seu incrível protagonista George Smiley, que ele criou como uma espécie de anti-James Bond. Enquanto Bond era elegante, Smiley era atrapalhado; enquanto Bond era um amante prodigioso, Smiley era um notório “corno manso”. “Pequeno, gorducho e, na melhor das hipóteses, exibindo os sinais da meia-idade”, lemos no começo de “O Espião que Sabia Demais”, Smiley “tinha a aparência de um dócil londrino que não herdou a Terra. Suas pernas eram curtas, seus gestos qualquer coisa, menos ágeis, sua roupa cara, mas de péssimo caimento”. Mas Smiley, ainda que absurdamente escolhido para interpretar um espião, surgiu como um ícone da ficção do pós-guerra como o investigador brilhante de planos intrincados que acabam por relevar o conspirador.

Os melhores romances de Le Carré conjugam forma e conteúdo ao se revelarem, na superfície, histórias sobre tramas e conluios complexos, mas que expõem ao leitor o processo de descoberta, de envolvimento e de conclusão pelo que passam seus personagens. Em “O Espião que Sabia Demais”, Smiley explica a seu protegido como seu contraespião soviético, o misterioso Karla, infiltrou um espião na inteligência britânica, criando uma série de armadilhas e obstáculos que surpreenderão todos os que tentarem se antecipar a eles:

“Olha, eu mesmo não estou exatamente lá, Peter”, disse Smiley tranquilamente. “Mas quase estou. Karla virou o circo de pernas pro ar; isso eu entendi e você também. Mas na trama há um último nó que não consigo desatar. Mas quero. E, se você quer ouvir um sermão, Karla não é à prova de fogo porque ele é um fanático. E, um dia, se eu tiver algo a ver com isso, a falta de comedimento será a queda dele”.

Essa sensação de desatar “o último nó” está na essência da obra de Le Carré e é o que nos dá prazer ao lê-lo. Assim como quando lemos Agatha Christie ou Conan Doyle, sentimos que estamos nas mãos de um grande mestre do mistério ao entramos no mundo descrito nos romances dele. Mas ele também tinha uma sensibilidade moral e um peso político que o aproximam de Joseph Conrad ou Graham Greene, e uma sensibilidade para o funcionamento e a reflexão da consciência humana que o aproxima de Henry James. Seus romances merecem ser relidos repetidas vezes.

Um dos temas centrais da obra de Le Carré é aquela pessoa que transita por vários mundos, sempre interpretando um papel e sem jamais se sentir em casa. Do faz-tudo na embaixada e sobrevivente do Holocausto Leo Harting em “Uma Pequena Cidade na Alemanha” (1968) que rouba arquivos britânicos e imediatamente monta um caso contra um proeminente criminoso de guerra nazista até o semicongolês, semi-irlandês católico e intérprete poliglota Bruno Salvador em “O Canto da Missão” (2006) que recebe ordens para usar seu conhecimento de idiomas obscuros numa conferência para facilitar um golpe de estado com apoio britânico na África, os muitos personagens complexos de Le Carré representam o caráter ambíguo do mundo da espionagem. A espionagem sempre implica traição e contamina as relações humanas, desde os memorandos interdepartamentais até o casamento.

O fim da Guerra Fria não prejudicou Le Carré porque seu principal tema sempre foi a sede de poder e a indiferença do Estado pelo indivíduo, temas eternos que não desaparecem só porque um lado saiu vitorioso. Ele não era relativista: Le Carré dizia que certos valores liberais – tolerância, liberdade de expressão e ação, democracia – eram fundamentais e dignos de luta, ainda que seu desprezo pelo poder norte-americano e pela xenofobia da direita europeia irritasse os críticos que diziam que ele passava a mão na cabeça dos militantes islâmicos. Mas a solidariedade dele pelos azarões e pelas causas perdidas era constante. Suas dezenas de livros sobreviverão a nós.

Seth Barron é editor do City Journal.

© 2020 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês
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