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Ludwig von Mises, o Adam Smith do século XX

Ludwig von Mises (1881-1973): suas ideias arrebataram legiões de seguidores, inclusive no Brasil
Ludwig von Mises (1881-1973): suas ideias arrebataram legiões de seguidores, inclusive no Brasil (Foto: Reprodução)

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Ludwig von Mises foi, durante muito tempo, amado e odiado com o mesmo furor por seguidores e críticos, e isso se deu, pois, ao mesmo tempo, sua filosofia econômica era presunçosa e assertiva, seu método dedutivo era, ao mesmo tempo, abrangente e definidor. Em suma, quem entendia e absorvia suas ideias encontrava nelas uma motivação ativista.

Mises, assim, apesar de seu altivo caráter intelectual e jeito moroso de levar a vida, arrebatou legiões de seguidores em todo mundo – inclusive no Brasil. Pode-se dizer, hoje, que seus seguidores são mais barulhentos e perspicazes no debate público nacional do que seus críticos mais aguerridos. Hoje, quase todos que se envolvem, em alguma medida, no debate político-econômico brasileiro já ouviram falar dele ou do instituto brasileiro que leva seu nome. Como explicar esse sucesso?

Só para termos uma noção exata, em 2013, nas manifestações que levaram à queda de Dilma Rousseff e à popularização de termos como conservadorismo e liberalismo, e, por que não dizer, à eleição de Jair Bolsonaro sob um discurso liberal-conservador, nas faixas que circundavam os manifestantes não raro se lia os dizeres “Menos Marx, Mais Mises”. Quem foi esse homem dos cartazes e das teses que cada dia mais angaria seguidores e apoiadores?

O começo como socialista

Ludwig von Mises é o filho mais velho de Arthur Edler von Mises e Adele von Mises. Sua família, de origem judaica do Império Autro-Húngaro, pôde dar a ele e a seu irmão (Richard Edler von Mises) uma infância tranquila na atual Leópolis (Lviv), oeste da Ucrânia. Seus pais tiveram um terceiro filho, Karl von Mises, que viria morrer, ainda bebê, de escarlatina.

Devido à profissão de engenheiro do pai – função que seu irmão Richard também exerceria –, financeiramente, os Mises eram independentes e reconhecidamente intelectuais. O ambiente de alta cultura do próprio Império Autro-Húngaro, aliado à confortável situação financeira da família, possibilitou a Mises o foco quase integral aos estudos. Segundo teórico político Erik Ritter von Kuehnelt-Leddihn, Mises, aos 12 anos,  já falava fluentemente alemão, francês, polonês e ucraniano.

Não fica claro o porquê, mas, ainda na juventude, sua família volta para a capital da Áustria, Viena. O mais provável talvez seja por suas raízes familiares e oportunidades de trabalho  a Arthur von Mises. Fato é que ali, ante o ambiente intelectual que cercava a sociedade quase como um todo, Ludwig von Mises se vê impulsionado a se dedicar ainda mais à erudição, e é com tais pensamentos que, em 1900, ele efetivamente começa a participar das aulas de Direito na universidade de Viena – cabe salientar que não havia curso de economia na universidade de Viena, sendo tal matéria desenvolvida como parte dos estudos de Direito.

Segundo Murray Rothbard, Mises entra na universidade como um socialista convicto, porém não demora para que ele se veja influenciado e absorto pelas ideias econômicas ainda em desenvolvimento de Carl Menger, principalmente por seu livro 'Princípios de Economia Política'. Menger acabaria sendo a grande influência de Mises na academia, além de fundador clássico da Escola Austríaca de economia, que posteriormente se tornaria uma espécie de casulo intelectual e referência popular ao próprio Mises.

Outra grande influência de Mises foi o economista Eugen von Böhm-Bawerk. De acordo com a biógrafa de Mises, Bettina Bien Greaves, em 'Mises: An Annotated Bibliography', ele frequentou assiduamente, durante dez anos, de 1904 a 1914, os seminários de Böhm-Bawerk. Sua tese sobre o socialismo e a sua impossibilidade empírica de funcionar como modelo socioeconômico acaba apagando de vez quaisquer fagulhas de ideias socialistas nele.

A Teoria da Moeda e do Crédito

De 1907 a 1908, divide suas horas de estudos com um trabalho na Câmara Austríaca do Comércio, o que lhe dá experiência prática e política dos meandros econômicos de Estado. Porém somente em 1912 que ele publica o primeiro grande trabalho teórico, isto é: doze anos após ingressar na Universidade de Viena. O trabalho é 'Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel' (A Teoria da Moeda e do Crédito). Após esse texto, Mises começa a ser visto não somente como um estudante promissor, mas um estudante prodígio, vindo a se tornar palestrante oficial – embora não-assalariado – da Universidade de Viena com relação às teses de Menger, que estavam em pleno desenvolvimento.

De 1918 a 1914, ele atua como capitão de artilharia no Leste da Ucrânia e na Crimeia, anos em que sua produção acaba por diminuir muito apesar de seus esforços para continuar sua vida intelectual. Em 1919, Mises escreve uma das obras mais importantes, tanto quanto negligenciadas, 'Nation, Staat und Wirtschaft: Beiträge zur Politik and Geschichte der Zeit' (Nação, Estado, e a Economia: Contribuições para a Política e a História de Nosso Tempo); livro no qual ele expõe seu conceito de nação, Estado e o que necessariamente é preciso para defini-los, um dos livros de política mais geniais daqueles dias produzido por um liberal austríaco.

De 1920 a 1934, ele conduz, às sextas-feiras, um seminário que contava com a presença desde estudantes que recentemente haviam iniciado seus cursos a PhDs. Um dos participantes memoráveis desse círculo foi Friedrich August von Hayek, Nobel de economia de 1974. Dos frutos imediatos desse seminário, pode-se citar  o livro 'Socialismo: Uma Análise Econômica e Sociológica', no qual Mises clareia as bases sociológicas da Escola Austríaca em contraposição às ideias socialistas. Até o advento de 'O Caminho da Servidão', essa obra era considerada o texto mais elementar de análise do socialismo daquela escola econômica. Socialismo recebeu uma tradução americana em 1936 e logo ganhou um admirador importante, o economista Henry Hazlitt, autor do influente 'Economia numa Única Lição', além de Hazlitt, destaca Rothbard, Socialismo acabou por converter ao liberalismo miseniano um dos jornalistas marxistas mais duros dos EUA, J.B. Matthews.

Daí em diante, sua vida se resume em três frentes: 1) a atuação na Câmara Austríaca do Comércio, 2) as aulas que ministrava, por vezes em forma de palestra, na Universidade de Viena e em seu seminário supracitado, 3) além dos mais recorrentes e profundos livros que seriam lançados.

Em 1923, lançou 'Die geldtheoretische Seite des Stabilisierungsproblems' (Estabilização da Unidade Monetária, do Ponto de Vista da Teoria), e, em 1924, a segunda edição alemã de 'A Teoria da Moeda e do Crédito'. Nesse livro, Mises fez o que muitos à época consideravam impossível: integrou os entendimentos de microeconomia e macroeconomia, ou a teoria da moeda e a utilidade marginal.

Para termos uma ideia de como isso foi revolucionário, nem seus pares de Escola Austríaca, como Böhm-Bawerk, aceitaram a tese de Mises, evento que marca o que, para muitos, seria o ponto de ruptura entre a Escola Austríaca clássica e a Neo-Escola Austríaca.

Em 1926, foi para os Estados Unidos dar palestras em diversas universidades, financiado pela Fundação Laura Spelman, um dos grupos da Fundação Rockfeller. Em 1927, fundou o The Oesterreichisches Institut für Konjunkturforschung (Instituto Austríaco para a Pesquisa dos Ciclos Econômicos), nele atuou como vice-presidente e teve, durante alguns anos, Hayek como gerente e pesquisador; no mesmo ano, ele lança uma das suas obras mais populares até então: 'Liberalismo'.

Mudança para os EUA

Em 1933, lançou uma das suas obras mais complexas e pouco conhecida 'Grundprobleme der Nationalökonomie' (Problemas Epistemológicos da Economia). Em 1938, Mises se casa com Margit Sereny, em Genebra, desde então começa a se preparar para migrar para os Estados Unidos. Nesse ínterim, de 1939 a 1940, atua como professor convidado de Relações Internacionais no Institut Universitaire des Hautes Études Internationales (Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais) em Genebra. Em 1940, porém, vai em definitivo para os EUA, onde viverá sua fase mais produtiva e madura.

Sob o patrocínio do Fundo Willian Volker – um dos pouquíssimos fundos de investimento privado a financiar intelectuais liberais naqueles dias –, Mises se estabelece no país e consegue posição acadêmica de referência. Sua primeira parada universitária foi a Universidade de Nova York. Lá ele se estabelece e produz de forma abundante, de 1945 até a sua aposentadoria em 1969.

Mas devemos destacar as suas produções intelectuais e localizá-las em seu devido patamar de importância antes de finalizarmos essa exposição da vida do biografado. Em 1947, o austríaco lançou 'Caos Planejado', quase ao mesmo tempo que participava da fundação da Mont Pelerin Society, com seu amigo Heyek, em 10 de abril daquele mesmo ano – até hoje, a sociedade reúne os mais célebres intelectuais e influenciadores liberais do mundo.

'Ação Humana'

Mas é somente em 1949 que ele lança a sua obra máxima, 'Ação Humana', livro no qual Mises buscou trabalhar, além da economia, uma epistemologia fundamental para explicar como sua teoria se encaixa na compreensão multifacetada dos conhecimentos humanos.

Na realidade, seu método praxiológico de economia gerava internamente um desafio ao próprio autor: como correlacionar os demais aspectos da vida humana à sua teoria dedutiva. Baseando-se na indeterminação intrínseca das escolhas individuais, a teoria econômica austríaca construía sua estrutura ativa nas livres interações individuais e nas leis do mercado como base estruturante da vida em sociedade, dispensando assim quaisquer teses intervencionistas que tivessem por base a programação ou captação profética das ações dos indivíduos em busca de um fim determinado.

Para Mises, as leis da sociedade giravam em torno das leis naturais e do livre mercado, as ações ideológicas e estatais, que tentavam coordenar as escolhas individuais, não passavam de tiranias e autoritarismos que, no fim, descambariam em ditaduras puras e simples – tese central do seu livro, de 1944, 'Governo Onipotente'. É em 'Ação Humana', por fim, que ele conecta os elos filosóficos e sociológicos necessários para sustentar sua metodologia praxiológica. Sem dúvida, um dos livros mais primorosos de economia do pós-primeira guerra.

Após a década de 1950, principalmente com trabalhos do professor Irving Kristol e do historiador Richard M. Weaver, o livre-mercado e o conservadorismo político se aproximaram muito, especialmente nos Estados Unidos – movimento parelho ocorreria na Grã-Bretanha somente após a vitória de Margaret Thatcher em 1979. Para termos uma exata dimensão da aproximação das pautas liberais e conservadoras nos EUA, Mises foi pago por seus trabalhos de docência, de 1945 a 1962, pela já citada Fundo William Volker, instituição de matriz liberal-conservadora. Apesar disso, diz Rothbard, Mises jamais se denominou “conservador”, mas sim como um liberal de matriz clássica – o que muitos, hoje, denominam de fato “conservador”, apesar das reais diferenças sistemáticas entre as visões.

'A Mentalidade Anticapitalista'

Em 1956, Mises lança um dos livros mais populares da Escola Austríaca na apologia do capitalismo e na contra-argumentação aos progressistas americanos: 'A Mentalidade Anticapitalista'. Rapidamente a obra tornou-se um de seus livros mais apreciados, vagando do debate estético à psicologia, trata-se de um texto de estilo mais livre, ensaístico.

No ano seguinte, 1957, o acadêmico lança 'Teoria e História', no qual ele olha com toda desenvoltura para o problema do avanço econômico e civilizacional da humanidade, mostrando, com rara capacidade, como a descentralização das ações econômicas e políticas são o motivo primário do sucesso relativo do Ocidente nos último 500 anos.

Do dia 2 de junho a 15 de junho de 1959, Mises vai à Argentina pelo Centro de Difusión de la Economia Libre. Logo em seguida, também convidado, palestra no Centro de Estudios sobre la Libertad. Das palestras ali ministradas, sai o seu livro mais popular aqui no Brasil: 'As seis lições'. As palestras foram gravadas e anotadas, posteriormente transcritas com ajuda da esposa e de amigos secretários. O livro é o mais didático, ao mesmo tempo sintético, da leva produtiva de Mises. Com uma linguagem acessível, argumentos coesos e diretos, pode-se dizer que o livro se tornou um dos mais sintéticos na defesa da ótica liberal de sociedade até os dias atuais.

Em 5 de junho de 1963, o acadêmico é laureado com um Diploma Honorário pela Universidade de Nova York pela defesa da filosofia liberal e da sociedade livre. E em 1969, ele se torna membro distinto da Associação Americana de Economia.

Ludwig von Mises morre em Nova York, em 10 de outubro de 1973, aos 92 anos. Seu legado ainda é inestimável, pois influenciou muitos conhecidos intelectuais, como Karl Popper, Friedrich Hayek e Eric Voegelin, mas também porque ainda hoje vem convertendo silenciosamente muitos defensores do Estado intervencionista, educando os curiosos estudiosos caseiros, bem como encantando diversos estudantes universitários por sua metodologia clara e assertiva com relação à liberdade individual e descentralização do mercado.

Mises é, sem dúvida, um segundo Adam Smith, só que de nossos tempos, pois assim como o escocês que teorizou uma filosofia profunda para fundamentar a liberdade individual e de mercado, Mises seguiu o mesmo caminho com sua epistemologia e teses econômicas, reascendendo nas universidades pelas quais passou a dúvida sincera nos coletivistas, a ira espalhafatosa nos intervencionistas e a paixão pública dos economistas que não se prendiam às suas calculadoras, mas olhavam com profundo interesse para a economia a partir de um panorama mais profundo e, paradoxalmente, também elevado, dos conhecimentos humanos.

Talvez tenha sido um dos pouquíssimos economistas que tenham conscientemente extrapolado suas funções doutrinais pré-estabelecidas. Um dos raros economistas que soberbamente deixou em seu espólio intelectual uma trilha de compreensão do homem na sociedade, e não somente da economia que os homens em sociedade costumam embalar. Foi um economista completo, pois ousou se questionar e teorizar sobre aquilo que vem antes da economia, sobre os fundamentos, e por isso – principalmente por isso – merece ser lido com distinção e intelectual devoção.

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