Existem dezenas de medicamentos feitos a partir de veneno. Da peçonha da jararaca-da-mata, por exemplo, é extraído o peptídeo potencializador da bradicinina, desde os anos 1960 utilizado para desenvolver remédios para hipertensão e insuficiência cardíaca. Da saliva do lagarto Monstro de Gila, nativo dos Estados Unidos, sai a substância exenatida, utilizada no tratamento de diabetes.
Mas ninguém fala em “veneno de cobra medicinal”, ou” saliva de lagarto medicinal”. Nem se submete a uma picada de jararaca para tratar hipertensão. Por que é que, quando se extrai o canabidiol da folha da maconha, as pessoas (e a imprensa em geral) se referem ao remédio como maconha medicinal? Afinal, o canabidiol é potencialmente útil para uma série de doenças, quando consumido na forma de óleo ou de cápsulas. Não é tragado, nem provoca alterações de consciência. Por que então essa nomenclatura enganosa?
“Existe um objetivo claro por trás do uso desse nome”, responde Marcelo von der Heyde, vice-presidente da Associação Paranaense de Psiquiatria (APPSIQ). “A confusão é proposital, porque sugere que a maconha, em si, é medicinal. Confunde-se, assim, o uso clínico com o uso recreativo, que demanda da sociedade uma outra discussão, completamente diferente”, explica. “Esse termo – maconha medicinal – foi escolhido a dedo porque dá a ideia de que fumar maconha faz bem para o corpo. A ideia de que a maconha pode ser medicinal estimula o consumo recreativo”.
Confusão proposital
O psiquiatra explica que o canabidiol é alvo, sim, de pesquisas sérias que não têm a menor relação com todo o debate sobre a liberação do consumo recreativo. “São produtos diferentes, sujeitos a legislações diferentes”, diz. Com o agravante de que maconha, no uso recreativo, vicia. “Especialistas em dependência química têm tido cada vez dificuldade em engajar os dependentes em maconha, pois eles não reconhecem os prejuízos do uso da substância”, afirma Marcelo von der Heyde.
Para que serve, afinal, o canabidiol? Seus usos estão sendo pesquisados com mais afinco nos últimos anos, mas já se sabe que ele atua junto ao chamado sistema endocanabinóide, que regula a formação de conexões cerebrais, principalmente na adolescência. O medicamento tem impacto na regulagem desse sistema, com resultados iniciais positivos para o tratamento de epilepsia, por exemplo. Mas o canabidiol também não é o elixir milagroso que os ativistas apregoam, e tem alcance limitado em alguns casos. Num primeiro momento, o tratamento reduz a frequência e a intensidade das crises. Mas, para um terço dos pacientes que o ingerem na forma líquida, sua eficácia diminui com o passar do tempo, e os ataques voltam.
Em portadores de síndrome de Dravet, uma doença rara e incapacitante que se manifesta logo nos primeiros meses de vida, o canabidiol é eficaz na redução de convulsões. Pesquisadores do Hospital Sírio Libanês e da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo confirmaram também que cápsulas de canabidiol (CBD) e flores vaporizadas com tetrahidrocannabinol (THC) são úteis para reduzir dor, náusea e fadiga de pacientes com câncer.
Para todos esses casos, existem outros medicamentos que alcançam resultados semelhantes, mas o canabidiol surge como mais uma alternativa. “É apenas mais um remédio que estatisticamente tem a mesma chance de dar ou não dar certo do que os outros remédios. Mas virou uma panaceia”, afirma o vice-presidente da APPSIQ. Já para os usos de outra substância encontrada na maconha, o THC, as pesquisas em geral estão em estágio menos avançado. Ainda não está comprovado, por exemplo, que o remédio seja eficaz para tratar mal de Parkinson.
Risco alto
Quando se ingere maconha de forma recreativa, o canabidiol também atua, mas em dosagens descontroladas. “Um canabinoide externo pode alterar essa regulação e causar um controle aberrante das conexões, com danos duradouros em funções cognitivas, como a atenção e a memória, e aumento da possibilidade de desenvolver psicoses”, explica o psiquiatra. “Em indivíduos com alta vulnerabilidade genética e ambiental, às vezes um único cigarro de maconha é suficiente para gerar prejuízo”.
Por enquanto a substância é extraída principalmente de forma artesanal, e por isso a Justiça brasileira já concedeu três habeas corpus a famílias do Rio de Janeiro e de São Paulo autorizando o plantio com objetivos medicinais. Mas já existem laboratórios extraindo derivados de maconha com sucesso e também remédios distribuídos prontos, como o britânico Mevatyl, que é inteiramente produzido em laboratório.
Enquanto isso, desde junho a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) debate a comercialização, em solo nacional, de medicamentos produzidos à base de maconha — a importação, com receita médica e autorização por escrito da Anvisa, está liberada desde 2015. A agência abriu duas consultas públicas sobre o tema.
Projetos de lei
Para a liberação do consumo recreativo, ainda não existem no Congresso iniciativas em fase adiantada de tramitação. O que há são projetos de lei recentes, como o apresentado pelo deputado Paulo Teixeira (PT), que prevê a liberação para o plantio e o porte de até 40 gramas não prensadas de maconha, tanto para uso medicinal quanto recreativo.
Já os projetos exclusivos para o uso medicinal de derivados da maconha são mais numerosos, e estão mais adiantados. Uma iniciativa, apresentada pelo deputado General Peternelli (PSL), tornaria automática a liberação de medicamentos já liberados no exterior, sem mediação da Anvisa.
Já um texto que autoriza o plantio para produção de medicamento tramita na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado e tem relatoria do senador Carlos Viana (PSD). Tudo indica que a liberação dos medicamentos, via Anvisa ou Congresso, é uma questão de tempo. E isso não tem nada a ver com a liberação da maconha para uso recreativo.
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