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República da Irlanda, Leo Varadkar
Leo Varadkar, primeiro-ministro da República da Irlanda, defende o projeto de lei de criminalização do “discurso de ódio”, e diz que consulta pública não é representativa da população.| Foto: EFE/ Zipi

Uma profusão de projetos de lei contra “fake news”, “desinformação” e “discurso de ódio” tramitam neste período de pós-pandemia em países ocidentais como o Brasil, Canadá e Reino Unido, desafiando o entendimento amplo de liberdade de expressão de países como os Estados Unidos. A República da Irlanda chama a atenção por ter duas pressões por esse tipo de expansão do controle estatal sobre a expressão: uma interna e outra da União Europeia, da qual é membro desde 1973.

Avança no parlamento bicameral irlandês, conhecido como Oireachtas, o Projeto de Lei 105/2022, que visa “emendar a lei de proibição da incitação à violência ou ódio contra uma pessoa ou grupo de pessoas por causa de certas características protegidas” — que incluem idade, deficiência, etnicidade, religião, nacionalidade, orientação sexual e (identidade de) gênero. Ele torna crime “endossar, negar ou trivializar com agravo o genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes contra a paz”, consagrando uma norma já em vigor que “combate certas formas e expressões de racismo e xenofobia”, além de outros preconceitos. Se aprovado, ele substituirá a Lei de Proibição à Incitação do Ódio de 1989.

O PL 105 já passou pela Câmara irlandesa (Dáil) e se encontra em segundo estágio de avaliação no Senado (Seanad). Se aprovado, também tornará mais fáceis condenações por crimes de ódio, permitindo que promotores usem como prova xingamentos, gestos e símbolos.

A deputada desde 2013 e ministra da Justiça desde 2020, Helen McEntee, que introduziu o projeto, alega que discurso de ódio não está contido na liberdade de expressão pois faz com que pessoas se calem pelo medo. “Ficamos horrorizados quando ouvimos falar de incidentes homofóbicos, racistas e odiosos de outras formas neste país”, disse ela em outubro. “Sabemos que algumas pessoas vivem em medo constante de abuso simplesmente por serem quem são”, acrescentou. “Abuso”, no caso, também pode ser traduzido como “insulto”.

Falando ao jornal Euronews, o Conselho Irlandês de Liberdades Civis (ICCL), organização de direitos humanos fundada em 1976, disse que apoia de forma geral as mudanças propostas na legislação do país, mas que “defesas mais explícitas da liberdade de expressão no projeto” são necessárias. Além disso, o ICCL é contra um dispositivo que tornaria crime a “posse e preparação de material que poderia incitar o ódio”, e propõe que “outras formas de discurso de ódio que podem causar ofensa profunda, mas não atingem um limiar criminal, devem ser combatidas de outras formas, incluindo a educação e o monitoramento”.

A empresa mãe do jornal The Irish Independent, a INM, manifestou apoio ao PL 105, dizendo que “o direito à liberdade de expressão não é absoluto”. Falando ao Departamento de Justiça da Irlanda, a empresa acrescentou que a legislação proposta é especialmente relevante para conteúdo online e material disseminado nas redes sociais.

Rejeição popular

Elon Musk, bilionário que prometeu restaurar a liberdade de expressão ao Twitter ao comprar a rede social no ano passado, condenou o projeto de lei irlandês: “um ataque enorme à liberdade de expressão”, disse. Donald Trump Jr., um dos filhos do ex-presidente americano, disse que o PL é “insano”.

A ministra McEntee disse que o projeto foi criado após “ampla consulta ao público e pesquisa”. Contudo, como indicou o site de notícias irlandês Gript, uma consulta feita em 2019 pelo Departamento de Justiça indicou que a maioria dos irlandeses desaprovam a criminalização do “discurso de ódio”. Os cidadãos podiam submeter respostas em texto. “Um total de 73% dos respondentes não apoiou o plano do governo de banir o discurso de ódio”, informa o Gript. “Muitos argumentaram que a única restrição válida à livre expressão devem ser ameaças ou incitações credíveis à violência, e que expressão ofensiva simples não deve ser criminalizada” — a posição liberal clássica por trás da Primeira Emenda da Constituição americana.

O site levou a questão ao primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar, que ocupa o cargo desde dezembro passado. “Mais de 70% não apoiam esse tipo de lei, mas o senhor está continuando com ela mesmo assim. Por que o seu governo fez uma consulta pública, se tinha a intenção de ignorar os resultados?”, perguntou o repórter do Gript.

“Fazemos consultas públicas porque achamos que é uma boa prática”, respondeu Varadkar. “A vasta maioria das pessoas não responde a essas consultas públicas, é importante lembrar, somente uma pequena porção da população participa, então não refletem a opinião pública”. O repórter insistiu em perguntar por que as consultas são realizadas, se seu resultado pode ser dispensado. O mandatário irlandês respondeu que o governo não é feito de enquetes. “Então é só pelas aparências?”, provocou o repórter. “Não”, respondeu Varadkar. Pesquisas de opinião alternativas à consulta pública não parecem ter sido realizadas na Irlanda.

Paralelo histórico

Como contou a Gazeta do Povo em texto de Rafael Azevedo em 2021, a República de Weimar, regime democrático anterior a Adolf Hitler na Alemanha, tinha leis que criminalizavam “discurso de ódio”. Como a história demonstrou, não adiantaram. Flemming Rose, editor do jornal dinamarquês Jyllands-Posten, que atraiu protestos globais de muçulmanos por publicar charges de Maomé em 2005, disse à revista New Yorker em 2015 que, ao fazer pesquisa para um livro, descobriu que “ao contrário do que a maioria das pessoas pensam, a Alemanha de Weimar de fato tinha leis de discurso de ódio, e elas eram aplicadas com grande frequência”.

“Alegar que o Holocausto poderia ter sido impedido se a expressão antissemita e a propaganda nazista tivessem sido banidas tem pouca base na realidade”, explicou Rose. “Líderes nazistas tais como Joseph Goebbels, Theodor Fritsch e Julius Streicher foram todos processados por discurso antissemita. Streicher cumpriu duas penas na prisão. Em vez de deter os nazistas e enfrentar o antissemitismo, os muitos processos judiciais serviram como um maquinário de relações públicas eficaz, dando a Streicher o tipo de atenção que ele nunca teria encontrado em um clima de debate livre e aberto”. O jornal de Streicher, Der Stürmer, foi confiscado ou teve seus editores levados a tribunal “no mínimo 66 vezes”. Isso só aumentava o fervor de seus apoiadores. “Nunca me apresentaram evidências para a proposição de que leis contra discurso de ódio são um instrumento eficaz para prevenir a violência”, concluiu Rose.

Foi justamente o Estado, entidade eleita pelos defensores de novos limites à expressão hoje para controlar a expressão em nome de proteger grupos vulneráveis do “ódio” ou o cidadão comum de desinformação, o maior perpetrador de “fake news” na época. Famosamente, os nazistas abusaram de desinformação estatal para fabricar consenso entre os alemães. No infame “Incidente de Geiwitz”, por exemplo, na época da invasão da Polônia em 1939, os soldados da SS alemã se vestiram de soldados poloneses e forjaram um ataque a uma estação de rádio alemã perto da fronteira. A fraude foi usada pela ditadura nazista como desculpa para justificar a invasão, que marcou o começo da II Guerra Mundial. Se todos os alemães concordassem com os nazistas, nenhuma fraude teria sido necessária. Uma lição da história é que poderes dados ao Estado sob um governo, por mais bem-intencionado que este governo seja, podem ser facilmente abusados por um próximo governo com intenções menos nobres.

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