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Lidia Maksymowicz se encontra com o Papa Francisco no Vaticano, em maio de 2021.
Lidia Maksymowicz se encontra com o Papa Francisco no Vaticano, em maio de 2021.| Foto: Reprodução/Vatican News

Em 2021, correu o mundo a imagem do Papa Francisco beijando o número tatuado no braço de Lidia Maksymowicz, uma das sobreviventes do campo de concentração nazista de Auschwitz-Birkenau. Polonesa de origem Bielorussa, ela foi uma das várias crianças utilizadas como cobaias nas experiências doentias praticadas pelo médico Josef Menguele.

Um ano depois, o pontífice assinaria a introdução de 'A Menina que Não Sabia Odiar: A Comovente História de uma Criança que Sobreviveu ao Holocausto', livro em que Lidia relata seu sofrimento e conta como aprendeu a esconder suas emoções para se manter viva. Leia a seguir um trecho da obra, lançada no Brasil em 2023 pela editora Objetiva.

É claro que não são poucos os dias de desespero. Dias em que ela vem ao barracão e não me encontra. Não estou nos beliches de madeira.

Desliza pelo chão de tijolos, único luxo que os de­tentos adultos conseguiram obter da SS para o nosso barracão. Como os outros, o nosso não tem alicerces, mas tem o luxo de um chão de verdade.

Minha mãe desliza pelos desenhos que al­guns de nós fizeram nas paredes úmidas e cinzentas. Não estou em lugar algum. Pareço estar desaparecida.

Depois lhe dizem que Mengele me levou no dia anterior. Ela sai desesperada. Volta no dia seguinte. Nada. Ainda não me encontra.

No terceiro dia me acha sobre um estrado aparentemente desmaiada. Estou quase em coma, estendida, o corpo transparente como vidro. Mengele deve ter forçado a mão, não morri por milagre.

Minha mãe me acaricia, tenta me reanimar. Não pode fazer muito por mim. Mas consigo sobreviver. Consigo acordar, ape­sar de tudo. Um milagre de vida em dias de morte e desolação.

Treze meses em Birkenau significam passar duas vezes pelo frio do inverno. E pelo calor sufocante dos verões da Europa continen­tal.

E também pelas primaveras, que, apesar das flores crescendo em volta do campo, entre o mato e as cinzas dos mortos cremados, não conseguem trazer esperança. E por fim o outono, que tem cheiro de fim e de morte, do frio que volta, dos dias sem futuro.

Nunca perguntei de onde vinham as cebolas, mas hoje consigo ter uma ideia. Nenhum alimento é cultivado em Birkenau.

No entanto, minha mãe é uma mulher jovem e saudável e todos os dias é levada para fora do campo, além dos fornos crematórios, para escavar o leito do rio. Mulheres e homens em péssimas con­dições físicas são obrigados a consertar diques ao longo do rio, a limpar pântanos, a cortar juncos e caniços que crescem nas pro­ximidades.

O vilarejo de Harmęże, não longe dali, foi evacuado pelos nazistas. Construíram uma fazenda dedicada à avicultura que produz alimentos para a SS.

Alguns prisioneiros conseguem roubar uma coisa ou outra. Mas eu achava que as poucas cebolas da minha mãe não vinham desses furtos — tão pequenos e, ao mesmo tempo, tão importantes —, mas da generosidade de alguns poloneses que moram perto do campo.

No entanto, ela não me dá muitas explicações. “Toma”, diz, me oferecendo o produto do roubo. E eu obedeço sem perguntar nada.

À medida que a guerra se torna mais dura, os encontros com ela ficam cada vez mais raros, assim como suas palavras, que me sussurra ao ouvido fazendo de tudo para que não ouçam, para não chamar a atenção. Insiste sempre que eu repita meu nome, diga a minha idade, de onde venho.

Quer que eu aprenda essas coisas para que, se ela não sobreviver, eu não me esqueça de quem sou, das minhas origens, não me esqueça dela, minha mãe, que me pôs no mundo, que foi a primeira a me beijar, a me ninar, a me amar.

E para que eu possa dizer tudo isso a quem encontrar ao longo do meu caminho. “Meu nome é Ljudmila, Luda para minha família, tenho cinco anos, venho da Bielorrússia, da região de Vitebsk, na fronteira com a Polônia”, repito para ela, perto do fim de nossa reclusão.

Ela promete que mais cedo ou mais tarde vai me tirar de lá. Promete que logo tudo vai acabar e que voltaremos para as nossas florestas, para a nossa terra, para o nosso querido vilarejo.

Mas os dias passam. E nada muda. A cena que vivemos se repe­te, os deportados divididos em duas filas, a maioria indo morrer, uma minoria sobrevivendo.

Quem tenta se rebelar é executado imediatamente. São animais, é o que pensamos dos alemães. São apenas animais.

Às vezes nos deixam nus na frente deles. Crianças, mulheres, homens, todos nus. Não sabem que não temos vergo­nha deles.

Não há por que se envergonhar na frente de animais. Nus ou vestidos, para nós tanto faz.

Quando minha mãe volta a seu barracão, me fecho no meu mundo. Um mundo feito de silêncio, só meu, que logo compreendo ser a única resposta possível aos torturadores.

O silêncio é minha única possibilidade de sobreviver. Aprendo isso instinti­vamente, sem que ninguém me diga nem me explique nada.

Não tenho professores dentro do campo, não tenho amigos, não tenho nada. Estou sozinha com meu instinto.

Fico em silêncio quando um rato sobe pelas minhas pernas em busca de alimento. Quan­do uma criança ao meu lado ofega na escuridão da noite e de re­pente morre.

Quando as pulgas e os carrapatos grudam no meu corpo. Quando a SS vem me buscar para me levar para Mengele.

É um silêncio no qual tento sumir para não morrer. Um silêncio que mantenho mesmo diante do olhar da minha mãe, do seu rosto desesperado tentando se mostrar sereno e tranquilo, me dizendo para ser forte.

Não quero me mostrar fraca, nem mesmo a seus olhos. Não quero que ela sofra. E também não quero sofrer.

Não choro, não grito, não peço nada. Aprendo a sufocar to­dos os meus sentimentos. Estão vivos dentro de mim, mas não têm direito de existir nem de se expressar.

Quem vive um grande trauma tem duas opções: ou se deixa dominar pela loucura ou aprende a apatia. Eu escolhi a segunda.

O mundo passa ao meu lado e, aconteça o que acontecer, só preciso continuar viva. So­breviver à espera de tempos melhores.

Quando tenho saudade da minha mãe, do meu pai que ficou na Bielorrússia, dos meus avós que já não existem, eu a sufoco. Não posso chorar, não posso rir, não posso sentir nada.

Meu rosto virou mármore. Rígido. Como o meu espírito.

Não compreendo bem o que é Birkenau, não sei exatamente por que estou aqui, por que alguns de nós são mortos, por que não há brincadeiras, sorrisos, abraços.

Por que de vez em quando nos colocam em fila fora do barracão. Por que algumas crianças são selecionadas, separadas e levadas para Mengele. Não compreendo a maioria das coisas que acontecem, mas dentro de mim está bem plantada a intuição de que minha missão é viver, é não morrer.

Anos depois de Birkenau, um jornalista me perguntou se eu odiava a SS. Se odiava os alemães, suas palavras, seus uniformes, sua maldade e violência. Se odiava quem roubou a minha infância.

Respondi que não. Luda, na verdade, era uma menina que não sabia odiar porque nem sequer sabia amar. Não conseguia sentir nada.

Eu me anestesiei para sobreviver a tanta dor, a tanto desa­lento, a um mundo absurdo no qual de repente me afundaram.

Em Birkenau não odeio, não amo, não tenho amigos nem co­legas de brincadeira. Não tenho nada.

Procuro me manter longe dos problemas. Fujo de tudo, fujo da dor que me cerca e, por força das circunstâncias, fujo também de mim mesma. E até hoje essa menina às vezes volta a viver em mim.

Tanto que, até hoje, é difícil para Luda aceitar ter sentimentos. Ainda tende a escondê­-los. Ainda tende a pensar que só deve sobreviver, que não deve mostrar o que sente, o que deseja, porque sua tarefa é resistir e sobreviver.

Mesmo assim, preciso admitir que dar meu testemunho me ajuda. Contar é, certamente, ajudar os outros a entender o que aconteceu, ajudar o mundo a não esquecer, mas para mim também significa reviver aquela época.

E ao mesmo tempo compreender que não é minha culpa se no campo eu não tinha sentimentos. Foi uma forma de defesa necessária, a única possível. Isto, então, é o que Luda era: a menina que não sabia — e não conseguia — odiar. Tampouco amar.

Acredito na minha mãe. Acredito nas suas últimas palavras an­tes de partir para a marcha da morte rumo a Bergen-Belsen: lem­bre-se de como você se chama e de onde vem, porque vou voltar e levar você para longe daqui.

É o fim do ano de 1944. Depois descobrirei que, naquele momento, as forças soviéticas estão avan­çando na Polônia rumo a Birkenau e Auschwitz. A libertação está próxima.

Os alemães compreenderam que tudo estava acabado para eles e decidiram transferir os deportados para outros campos no interior da Alemanha. Chegam trens.

Muitas pessoas são leva­das, primeiro para Wodzisław Śląski, depois para mais longe, para o centro da Alemanha. O destino da minha mãe é Bergen-Belsen.

Ela entra no meu barracão para se despedir. Está agitada. Tem medo de nunca mais me ver. Não existem certezas sobre o seu futuro. Nem sobre o meu.

De alguma forma sobrevivemos, ainda que rodeadas de inimigos. Por meses, poderíamos ter sido mor­tas de uma hora para outra pelos motivos mais fúteis. Isso não aconteceu por milagre.

Um destino incompreensível e ao mesmo tempo cego, injusto na sua casualidade, nos salvou. Sem nenhum mérito especial, fomos poupadas. Mas o equilíbrio ainda é pre­cário. Tudo pode acontecer.

Daquele último encontro me lembro dos seus olhos. Olham para mim com amor e desespero. Ela segura minha cabeça com as duas mãos enquanto me olha nos olhos e me beija.

Sou sua filha, sou seu coração, sou seu amor. Lembro de suas palavras. Repito-as para mim mesma durante dias depois de sua partida. “Lembre-se de como se chama e de onde você vem”.

Sou Luda Boczarowa, tenho cinco anos, venho da Bielorrússia. Meus avós maternos chegaram a Birkenau junto comigo, transportados na­quele grande vagão vermelho-púrpura.

Na estação, foram ime­diatamente retirados e levados para as câmaras de gás. Morreram em poucos minutos.

Meu pai foi levado pelo exército russo antes da deportação. Minha mãe foi conduzida comigo para Birkenau e depois enviada para Bergen-Belsen.

Ainda na plataforma, o dr. Mengele me escolheu. Eu era pequena, mas tinha a saúde per­feita. Aparentava ter mais idade. Fiquei sozinha no campo.

Mi­nha mãe não está mais ali. Partiu antes da libertação. Agora os alemães também foram embora.

Fiquei sozinha, mas juro para mim mesma e para Deus: enquanto eu viver, vou procurá-la, vou tentar me juntar a ela novamente, vou abraçá-la com força, como fizemos na última vez.

E vou lhe dizer a única coisa que importa: “eu te amo, mamãe”.

Conteúdo editado por:Omar Godoy
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