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Integrantes de movimentos sociais e de defesa dos direitos da comunidade negra reuniram-se na capital paulista na 13ª Marcha da Consciência Negra | Rovena Rosa/Agência Brasil
Integrantes de movimentos sociais e de defesa dos direitos da comunidade negra reuniram-se na capital paulista na 13ª Marcha da Consciência Negra| Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Miscigenação e genocídio. É quase impossível juntar essas duas palavras em uma única frase sem levantar polêmica. E foi isso o que aconteceu no último dia 20/11, Dia Nacional da Consciência Negra, quando cerca de 20 mil manifestantes, segundo estimativa dos organizadores, participaram da 14ª Marcha de Consciência Negra, em São Paulo (SP).

Com o tema Contra o Racismo e o Genocídio: Por um Projeto Político de Vida para o Povo Negro, militantes de diversos coletivos e entidades defenderam, entre outras pautas, a luta contra a violência policial, a tolerância religiosa e a valorização da mulher negra na sociedade; gritaram palavras de ordem, como “Juntos Somos Fortes!”, e carregaram faixas e cartazes, com os dizeres “Zumbi Somos Nós”, “Basta de Extermínio da Juventude Negra” e “A Escravidão Não Acabou. Não Temos O Que Comemorar”. Uma delas, porém, se sobressaiu às demais: “Miscigenação Também é Genocídio”. Denúncia, argumentariam uns. Retrocesso, rebateriam outros. 

Na opinião do filósofo e articulista da Gazeta do Povo Paulo Cruz, trata-se de uma contradição. Segundo ele, as mesmas pessoas que levantam cartazes contra a miscigenação adoram dizer que, no Brasil, há mais de 50% de negros. Mas nunca dizem que, desses 50%, 43% são pardos ou mestiços. Ou seja, os pretos – aqueles mais visivelmente negros – são apenas 7%.

“Isso mostra que a miscigenação – vista com bons olhos pelos republicanos do início do século 20 e com maus olhos pelo movimento negro que se formava – foi e é fundamental para a tese da maioria negra, que os movimentos atuais utilizam o tempo todo, para o bem e para o mal”, diz. 

Luiz Felipe Pondé, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é direto. E rebate a tese de que miscigenação é genocídio. “A menos que você violente mulheres para impor biologicamente certos caracteres”, ressalva. “Mas se pessoas de raízes diferentes transam numa relação livremente escolhida, claro que não é”. 

Integrante da Frente Alternativa Preta (FAP), uma das entidades organizadoras da Marcha de Consciência Negra, a professora Adriana Moreira explica que a passeata é uma ação coletiva e, por essa razão, as pautas, muitas vezes, não convergem.

Sobre a faixa em questão, acrescenta que é de um grupo específico que não construiu a marcha e não representa a ideia central do movimento. “O debate da mestiçagem está superado porque a própria ideia de raça está superada. Somos todos seres humanos”, afirma Adriana. “O que buscamos hoje é construir um projeto político que garanta a vida das pessoas”. 

A diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), Elisa Larkin Nascimento, salienta que, longe de ser a única, a tal faixa fazia parte de um conjunto de denúncias dos vários aspectos do genocídio do negro brasileiro, como assassinato de jovens negros e negras, violação de direitos no atendimento à saúde e exclusão no mercado de trabalho, só para citar alguns. “A grande mídia, que fez pouquíssima cobertura da marcha no dia, vem agora com certo atraso focalizar esse assunto como se fosse a única bandeira levantada no Dia Nacional da Consciência Negra. O efeito é distorcer a imagem da marcha e desqualificar o movimento negro”, reclama. 

O “branqueamento” do Brasil 

Elisa lembra que a miscigenação como instrumento de engenharia social não é novidade no Brasil. Em 1911, o médico e antropólogo João Baptista de Lacerda, então diretor do Museu Nacional, participou do I Congresso Internacional das Raças, em Londres, e apresentou a teoria do “branqueamento do povo brasileiro”. Graças ao processo de miscigenação, acreditava-se que, a cada nova geração, os descendentes de negros tenderiam a ficar “mais brancos”.

“A população mista do Brasil deverá ter, no intervalo de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os elementos nos quais poderia persistir ainda alguns traços do negro”, escreveu ele no artigo Sur Les Métis au Brésil (Sobre os Mestiços do Brasil, em livre tradução). 

Para defender seu ponto de vista, João Baptista exibiu uma cópia do quadro A Redenção de Cam (1895), do pintor espanhol Modesto Brocos y Gómez, que ele classificava como “a representação do futuro nacional”. Na pintura, uma senhora negra agradece “aos céus” pela pele clara do neto, sentado no colo da filha mestiça, ao lado do marido branco. “Resquícios da teoria da eugenia continuam vivos na sociedade brasileira, mascarados pela ideia de uma ‘democracia racial’ que não corresponde à expectativa vivida pela população negra. É essa vivência que leva os militantes a tal posicionamento”, esclarece Elisa. 

Racismo reverso? 

A 14ª Marcha de Consciência Negra terminou por volta das 19h, em frente ao prédio do Theatro Municipal de São Paulo, no centro da capital. Mas a polêmica, não. Uma semana depois, o vereador Fernando Holiday postou em seu perfil no Facebook: “Seria o movimento negro tão racista quanto um supremacista branco?”.

A pergunta não ficou sem resposta. “Os negros não estão no mesmo lugar social e histórico dos brancos. Logo não se pode dizer que esses militantes negros são iguais politicamente aos supremacistas brancos. Mas, sim, pode-se dizer que gostam de odiar tanto quanto os supremacistas brancos”, afirma Pondé. 

Depois de ganhar as redes sociais, o debate chegou à imprensa. No último sábado, dia 16/12, o antropólogo Antônio Risério publicou na Folha de S. Paulo o artigo Movimentos Negros Repetem Lógica do Racismo Científico. Nele, sustenta que “os racialistas repetem o dogma que se revelou um fracasso histórico espetacular”. E afirma que o slogan “Miscigenação Também É Genocídio” “descende diretamente do velho guru Abdias do Nascimento”. 

Autor de O Genocídio do Negro Brasileiro (1978), Abdias do Nascimento é considerado um dos maiores símbolos de resistência na luta antirracista no Brasil e no mundo. Em sua dissertação de Mestrado, André Luis Pereira, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), investigou a produção do ativista em O Pensamento Social e Político na Obra de Abdias do Nascimento.

O sociólogo acredita que, se vivo estivesse, Abdias, que morreu em 2011, aos 97 anos, colocaria em xeque a forma como negras e negros têm sido tratados política e socialmente pelo Estado brasileiro. E seria mais uma voz a se insurgir contra esse status quo. “Mesmo às vésperas de se completar 130 anos da abolição da escravatura, a população negra ainda apresenta os piores índices para acesso à educação, saúde e moradia de qualidade”, alerta André Luis. “Se a luta antirracista tomou um corpo político consistente no Brasil, isso se deve à militância deste ‘negro revoltado’”. 

Se há solução para esse impasse? Elisa Larkin, viúva de Abdias, acredita que sim. Desde que ambas as partes se disponham a ouvir. “Neste caso, o primeiro passo cabe à sociedade branca, que precisa superar sua indiferença e escutar com atenção a vivência, a experiência e as demandas de quem ficou relegado ao outro lado das muralhas da desigualdade”, afirma.

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