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Na nova doutrina política, a democracia, ao invés de ser o regime do povo (demo + cracia), passa a ser visualizada como um sistema em que quem dita as regras é uma pequena elite qualificada
Na nova doutrina política, a democracia, ao invés de ser o regime do povo (demo + cracia), passa a ser visualizada como um sistema em que quem dita as regras é uma pequena elite qualificada| Foto: Eli Vieira com Midjourney

Em 2022, a Justiça Eleitoral ordenou a derrubada de um vídeo de campanha do então candidato a deputado Deltan Dallagnol. O motivo foi ele ter dito no vídeo que, embora o STF fosse “uma casa essencial para a democracia”, tinha “infelizmente” se tornado “a casa da mãe Joana, uma mãe para os corruptos do nosso país, com a honrosa resistência de parte dos seus integrantes”, listando em seguida decisões do tribunal que considerava exemplos disso.

Esta crítica dura não se diferenciou em nada dos discursos hiperbólicos e exaltados que sempre caracterizaram as campanhas eleitorais em democracias (exceto, talvez, por ter feito questão de comprimir, dentro dos poucos segundos alocados para o candidato, muito mais parênteses e ressalvas para deixar claro que a crítica não era ao Tribunal como instituição, nem a todos os seus integrantes; propagandas eleitorais não costumam trazer tantas nuances). E, à semelhança de toda invectiva em propagandas eleitorais, esta não veio sem propósito: o candidato emendou logo em seguida um pedido de voto, com a promessa de que, se o eleitor lhe concedesse mandato, ele o usaria para reformar legislativamente os critérios de seleção de futuros ministros do STF, o que vendia como remédio. Tudo típico de uma campanha eleitoral em democracias: denúncia hiperbólica da situação presente, voto no candidato como solução, aurora prometida como consequência. Nada de novo.

No entanto, a Justiça Eleitoral não enxergou desta forma. Citou uma resolução instituída pelo TSE (a de n.º 23.610, de 2019) que proibia qualquer propaganda eleitoral de “atingir órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública”. Norma esta que (instituída, a meu ver, extrapolando os limites da lei a ser regulamentada) causa (ou deveria causar) choque a qualquer um que entenda a ideia de democracia.

Ocorre que há uma nova concepção de democracia em cena.

O que a democracia era 

Antes de, aproximadamente, 2016, havia um consenso: a democracia é justamente, por definição, o lugar onde quem “exerce autoridade pública” pode ser legitimamente “atingido”, para usar o termo empregado pelo TSE na resolução (e idêntico ao usado pelo STF para definir o objeto do Inquérito das Fake News, que investiga críticos do Tribunal). Em democracias, aquele que exerce autoridade pública pode não só ser atingido moralmente em sua reputação, o que é o meio empregado (sendo nisto que consiste o debate público e campanha eleitoral), mas também atingido de forma ainda mais grave como objetivo disto, sendo apeado do poder, com os enormes danos que isso acarreta. A democracia é o regime onde o cidadão pode pretender livremente “atingir” os sistemas estabelecidos, com a esperança de que ruam e sejam substituídos por novos.

O fato de certos órgãos de Estado não serem eleitos não os torna imunes a isso, pois mesmo o funcionamento deles deriva das leis vigentes e está sujeito a reformas. Numerosos candidatos do PSOL, por exemplo, sempre defenderam a extinção da Polícia Militar no Brasil, denunciando-a e a seus integrantes como estruturalmente violentos – e deveriam ter toda a liberdade democrática de continuar a fazê-lo, mesmo “atingindo” e ofendendo órgãos e indivíduos que “exercem autoridade pública”, nas temerárias palavras do TSE. Ou o PSOL deveria ser proibido de “atingir” a Polícia Militar em suas propagandas?

O que agora dizem que a democracia é 

No entanto, em data recente, o antigo consenso parece ter sido abandonado subitamente pelo consenso inverso. Um dos marcos desta mudança é o livro “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, publicado em 2018, embora haja outros expoentes. Por esta nova doutrina política, a democracia, ao invés de ser o regime do povo (demo + cracia), passa a ser visualizada como um sistema em que quem dita as regras é uma pequena elite qualificada, sistema este que se preserva graças à louvável ação de gatekeepers (guarda-portões ou guardiães de entrada) que filtram os inputs da plebe para que só as medidas desejáveis pela elite sejam implantadas.

Um exemplo disto seriam as elites dirigentes partidárias, que, segundo os autores, deveriam ter o poder para vetar candidatos a presidente desejados pelo povo, mas que não fossem do seu agrado; ou a imprensa profissional, que deveria restringir a entrada, no debate de ideias, apenas às ideias adequadas.

Ainda conforme esta doutrina, um novo agente político que conseguir trespassar os portões e penetrar-se na estrutura (facilitado por novos meios de comunicação diretos com o povo e alheios ao controle pelos gatekeepers, como a internet, os smartphones e as redes sociais, popularizados justamente em meados da década de 2010) e invectivar verbalmente contra os demais agentes de tal sistema (isto é, tentar “atingi-los”) é, tendencialmente, antidemocrático e deve ser removido. A situação justificaria que a competição democrática usual fosse suspensa, e toda divergência, abandonada, em nome da formação de um grande cartel atravessando o espectro político – uma “frente ampla”, como se passou a chamar no Brasil –, com o objetivo de expulsar o intruso e obter um retorno ao status quo ante.

Criminalização da crítica 

Quaisquer que sejam os méritos deste modelo teórico, o fato é que o livro de Levitsky e Ziblatt foi mais uma lenha numa grande fogueira teórica contemporânea – que inclui também a teoria do “discurso de ódio” – voltada aos perigos da palavra. Ao afirmarem um distante nexo causal entre a palavra proferida e um dano futuro, estas teorias têm legitimado, na prática, a repressão da fala em vários âmbitos.

Ziblatt e Levitsky, em seu livro, ressalvaram que a reação à força intrusa deveria agir sempre dentro da legalidade. No entanto, aconteceu o que sói acontecer com as bíblias, que é terem algumas de suas prescrições sumamente ignoradas pelos que se dizem seus maiores devotos. Assim sendo, no Brasil, inquéritos ilegais preexistentes contra falas, os quais, até então, não tinham sido justificados à luz desta doutrina (mas sim por alegações muito mais prosaicas, como defender a honra de ministros do STF), passaram a receber apoio efusivo dos setores letrados do Brasil – os antigos gatekeepers – produzindo muitas vítimas, tudo justificado em nome da democracia.

A própria resolução já mencionada do TSE pode ser citada como exemplo pontual de inúmeras iniciativas desde então em torno de uma mesma tendência: a de criminalizar a crítica. O exemplo mais recente é a ordem de oitiva de representantes do Telegram em delegacia, em razão de uma mensagem crítica da empresa contra o PL 2.630, de 2020 (PL da Censura). O ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou sumariamente a remoção da mensagem, sob pena de suspensão das atividades do Telegram em território nacional. Uma de suas justificativas foi de que a crítica veiculada representava “agravamento dos riscos à segurança [...] do próprio Estado Democrático de Direito”.

O ministro não esclareceu o suposto nexo causal. Em contraste, é bastante fácil enxergar nexo causal entre censurar conteúdos críticos a atos do Estado, submetendo em seguida os responsáveis a persecução penal, e uma redução da capacidade do povo de se manifestar e influir nos rumos do país.

Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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