Com capacidade para 20 mil pessoas, a O2 Arena é o local de shows preferido de alguns dos maiores astros da música mundial em Londres. Para se ter uma ideia, a programação do espaço nos próximos meses inclui de Madonna a Tom Jones, passando pelo cantor e guitarrista John Mayer, o rapper 50 Cent, o grupo Depeche Mode e revelações dos últimos anos como Olivia Rodrigo e Morgan Wallen.
No último dia 1º, no entanto, o espaço foi quase tomado por espectadores dispostos a ver a um senhor canadense de 61 anos que não canta, dança ou toca instrumentos. Trata-se do psicólogo e escritor Jordan Peterson, uma das personalidades mais influentes da cultura conservadora contemporânea, autor do best-seller ‘12 Regras para a Vida’ – e se você não está ligando o nome à pessoa, pode ter certeza de que já viu seus discursos na internet.
Acompanhado de outros comentaristas e intelectuais anti-woke (Douglas Murray, Jonathan Pageau e Bjorn Lomborg, além do convidado especial Ben Shapiro), Peterson discutiu temas como coragem, casamento, criação de filhos, religião e mudanças climáticas. Foram duas horas e meia de uma conversa propositiva, mais focada na busca por soluções do que em apontar o dedo para as contradições da esquerda.
Mas o evento na O2 Arena foi apenas o ápice de um projeto maior: o primeiro encontro da Alliance for Responsible Citzenship (“Aliança para a Cidadania Responsável”), ou apenas ARC, uma comunidade internacional “com a visão de criar um mundo melhor, onde cada cidadão possa prosperar, contribuir e florescer”.
Liderada por Jordan Peterson, o político John Anderson (ex-vice-primeiro-ministro da Austrália) e a baronesa Philippa Stroud (integrante da Câmara dos Lordes britânica e figura de proa de vários institutos conservadores), a rede reuniu, entre 30 de outubro e 1º de novembro, personalidades de diversas nacionalidades para compor um grande painel sobre questões sociais, econômicas, filosóficas e culturais.
Cerca de 1,5 mil pessoas, também de diferentes países, esgotaram os ingressos e viajaram até Londres para assistir às palestras e discussões oferecidas. Tudo financiado pelo Legatum, um fundo bilionário de investimentos com sede em Dubai.
O foco das conversas pode ser sintetizado numa fala do próprio Peterson – “Não acreditamos que a humanidade esteja necessariamente e inevitavelmente à beira de um desastre apocalíptico”. Ou no discurso de abertura, em que a Baronesa Stroud afirmou: “Há uma história melhor, é uma história de otimismo, que vê um futuro de abundância e oportunidades, não de escassez e declínio”.
Para a ARC (a sigla certamente faz referência à palavra arca, um símbolo da salvação), em um momento de crescimento estagnado no Ocidente, polarização política e ansiedade climática, a sociedade deve aproveitar suas conquistas e fundamentos (morais, espirituais, culturais, econômicos) para construir comunidades melhores e mais justas.
Para escritor brasileiro, encontro da ARC não foi apenas uma “versão anti-woke” de Davos
Desde sua divulgação, a conferência da Alliance for Responsible Citzenship foi imediatamente taxada pela imprensa como uma versão anti-woke de iniciativas como Davos e o Fórum Econômico Mundial. Mas, para o diplomata e escritor brasileiro Gustavo Maultasch, que participou dos três dias de painéis em Londres, o evento foi muito além disso.
“É até mesquinho classificar dessa forma, diminui muito a proposta da ARC. As discussões foram totalmente construtivas, o contrário da agenda vitimista da esquerda progressista”, afirma Maultasch, convidado para o encontro por sua atuação na área da liberdade de expressão. “Inclusive os moderadores sempre faziam questão de trazer as discussões de volta para o campo propositivo quando os convidados perdiam esse foco.”
Segundo o autor do livro ‘Contra Toda a Censura’ (2022), a política, no sentido mais partidário, ficou praticamente de fora dos debates, mesmo com a presença de governantes e parlamentares – que dividiam espaço na plateia com acadêmicos, jornalistas, empresários e influencers. Já no evento da O2 Arena, ele conta, o público predominante era formado por jovens e famílias.
Maultasch ainda destaca que as discussões sobre alterações climáticas e recursos energéticos foram bastante aprofundadas. “Os convidados mostraram que não estamos diante de um apocalipse. Mesmo com o aumento das temperaturas, a humanidade tem tecnologia e pode se adaptar”, diz.
A imprensa progressista, no entanto, usou justamente esse tema como gancho para criticar o rumo dos debates organizados pela ARC. O jornal trabalhista inglês The Guardian foi irônico: “Em um ano que provavelmente será o mais quente registrado e assolado por inundações, os palestrantes caracterizaram as mudanças climáticas como um obstáculo menor em direção ao ‘florescimento humano’”.
Já o site DeSmog, especializado em sustentabilidade e que alega desmentir fake news sobre o clima, chamou a atenção para a defesa generalizada dos recursos naturais não renováveis por parte dos convidados. E apontou a ligação entre a Aliança de Peterson e o milionário investidor britânico Paul Marshall – apoiador e palestrante do evento realizado em Londres, Marshall possui US$ 2,2 bilhões [R$ 10,8 bilhões, na cotação atual] em ações de empresas de combustíveis fósseis.
“Os palestrantes usaram a conferência para minimizar a escala da crise climática e minar a necessidade de políticas governamentais para reduzir as emissões de gases de efeito estufa”, afirmou o DeSmog, em um texto republicado por diversos outros sites, de diferentes tendências ideológicas.
Convidados discutiram temas como arte, cultura, infância, Estado, energia e tecnologia
Veja a seguir alguns destaques dos painéis apresentados durante a primeira conferência da Alliance for Responsible Citzenship. Os registros de todas as palestras e debates estão disponíveis no canal da ARC no YouTube.
“Os gases de efeito estufa permaneceram estáveis e diminuíram ligeiramente na última década. É uma notícia extraordinária que as pessoas não lerão nos principais jornais” – Michael Shellenberger, ativista climático norte-americano e defensor do uso da energia nuclear contra o aquecimento global.
“Há pessoas cujos cérebros foram danificados. Para eles, nosso passado é abominável e nosso futuro é de declínio gerenciado. Minha mensagem é simples. Como você se atreve?! Você não roubará o futuro do meu filho com palavras vazias” – Konstantin Kisin, humorista russo-britânico, comentarista político e criador do podcast Triggernometry.
“Não deveríamos desligar nada até que estejamos prontos para ligar outra coisa. E não estamos prontos para ligar as tecnologias para as quais estamos fazendo a transição” – Gerard Holland, empresário australiano do setor de tecnologia e diretor de Divulgação e Parcerias Estratégicas da ARC.
“A civilização ocidental é uma flor cortada, e as flores cortadas morrem. Mas temos os restos, os símbolos da herança ocidental e as suas sementes. Tudo o que temos que fazer, aqueles de nós que a herdamos, é ver, cultivar, alimentar e regar” – Ayaan Hirsi Ali, ativista e escritora somali-holandesa-americana, conhecida por seus posicionamentos críticos com relação ao Islã.
“O objetivo do Estado é certamente ajudar as associações civis espontâneas a florescerem para que elas, por sua vez, possam ajudar os cidadãos a florescerem. E não o contrário” – John Anderson, ex-vice-primeiro-ministro da Austrália e um dos criadores da ARC.
“Quando deixamos de nos assustar, podemos ser incrivelmente inteligentes” – Bjørn Lomborg, cientista político dinamarquês, autor de ‘Alarme Falso: Como o Pânico das Alterações Climáticas nos Custa Bilhões, Prejudica os Pobres e Não Consegue Consertar o Planeta’ e ‘Como Gastar US$ 75 milhões para Tornar o Mundo um Lugar Melhor’, entre outros livros.
“Reagan nos alertou: diante do mal, o tempo da timidez acabou. Vamos recorrer à nossa força. Vamos oferecer esperança. Vamos dizer ao mundo que uma nova era não é apenas possível, mas provável” – Kevin McCarthy, ex-presidente da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos.
“Os vencedores da revolução sexual não foram as mulheres. E os grandes perdedores da revolução sexual foram as crianças” – Louise Perry, jornalista, escritora inglesa e diretora da entidade We Can’t Consent to This, voltada para o combate de homicídios sexuais violentos.
“As crianças precisam de uma infância em que o uso da tecnologia seja regulamentado. Cuidados institucionais não são e nunca serão uma boa opção para crianças menores de três anos” – Erika Komisar, psicanalista e terapeuta norte-americana, autora dos livros ‘Estar Presente: Por que Priorizar a Maternidade nos Primeiros Três Anos É Importante’ e ‘Chicken Little, o Céu Não Está Caindo: Criando Adolescentes Resilientes na Nova Era da Ansiedade’.
“Temos essa arte perdida de contemplar. Para passarmos do lamento à glória, precisamos ser capazes de contemplar. Devemos começar contemplando o que está quebrado” – Makoto Fujimura, premiado artista visual norte-americano, autor de obras que integram o acervo de importantes galerias e museus internacionais.
“Os bens devem dançar juntos. Jogam uns contra os outros. Foram colocados em hierarquias adequadas, onde os bens mais abrangentes, como as virtudes, orientam os bens inferiores, como as coisas” – Jonathan Pageau, escultor franco-canadense, especialista em padrões simbólicos e suas manifestações na religião, na arte e na cultura popular.
"Nossas mentes mais brilhantes costumavam descobrir como nos levar à Lua. Agora esquecemos o que é uma mulher" – Douglas Murray, jornalista britânico, autor de ‘A Loucura das Massas: Gênero, Raça e Identidade’, ‘A Estranha Morte da Europa: Imigração, Identidade, Islã’ e ‘A Guerra Contra o Ocidente’, entre outras obras.
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