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Nicarágua, Igreja, Ortega
Fiéis oram na Catedral de Matagalpa, Nicarágua, pelo bispo Rolando Álvarez na semana em que ele foi preso pelo regime ditatorial de Daniel Ortega, agosto de 2022.| Foto: EFE/Str

Um padre nicaraguense chega de Roma à sua terra natal para visitar seus pais. São tempos difíceis para usar uma gola clerical no país centro-americano: o regime de Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, ataca ferozmente a Igreja, e o jovem clérigo, rigorosamente vigiado durante sua estadia, percebe isso até o último minuto de sua partida, quando pega do chão o passaporte que um funcionário jogou nele: "Se você voltar à Nicarágua, sairá daqui da Imigração envolto em um saco preto, rumo ao cemitério".

Seu testemunho é registrado por Martha Patricia Molina, uma jovem advogada que, por suas investigações sobre casos de corrupção na administração, tornou-se incômoda para a ditadura. O regime também mostrou muito pouco entusiasmo com seu relatório "38 mecanismos de tortura, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes usados nas prisões da Nicarágua", bem como com outro mais recente e — infelizmente — em constante atualização: "Nicarágua: uma Igreja perseguida?".

Neste último, Martha Patricia documentou até agora 529 ações hostis do governo contra a Igreja entre abril de 2018 e março de 2023; arbitrariedades e abusos que incluem ataques a templos — com destruição de objetos sagrados e profanações —, pichações ameaçadoras — "fora golpistas! Chumbo [neles]!" —, agressões físicas diretas a membros do clero e fiéis, proibição de procissões, confiscos, exílios...

Entende-se que, com essas ameaças, a advogada não esteja na Nicarágua: ela partiu para os EUA em julho de 2021. Inicialmente, viajou apenas para receber um tratamento médico programado, após o qual retornaria a Manágua, mas o aviso de sua mãe pesou mais: "Ela me disse: se você voltar, me ligue para comprar o caixão, porque você sabe que eu não vou suportar te ver presa. Por obediência a ela, fiquei aqui".

Ela também deixou seus dois filhos — um deles menor de idade —, vigiados por agentes do orteguismo. E claro, há ameaças contra ela e seus entes queridos, tanto diretas quanto veladas, "mas eu não posso ficar calada por muito tempo; sempre tenho que me expressar, porque senão, acredito que outros decidirão por mim".

Aceprensa: Até abril de 2018, pouco se falava sobre as arbitrariedades do regime. Mas aquele momento foi um divisor de águas...

Molina: As coisas explodiram naquele ano, mas eles já eram assassinos antes. Daniel Ortega chegou ao poder em 2007, após uma eleição que ele não ganhou de forma limpa, e desde o primeiro dia lembrou à polícia e ao exército que eles nasceram do sandinismo e, portanto, deveriam respeitar e assumir suas posições. Antes de 2018, houve o caso do camponês Juan Lanzas, que foi jogado em um banheiro depois de ser tão torturado que tiveram que amputar suas duas pernas. Ou o caso de Elea Valle, que perdeu seus dois filhos menores porque o exército os estuprou, os matou, os enterrou e não disse onde. Esses eram casos anteriores. Podemos passar dias falando sobre todos os casos.

A panela explodiu em abril de 2018 por causa de uma reforma do Instituto Nicaraguense de Segurança Social que prejudicava as pessoas da terceira idade. Eles pegaram os idosos [que protestavam] e os espancaram, os arrastaram. Tudo isso irritou a população, que saiu às ruas, e foi então que começaram a nos matar. Segundo o MESENI (Mecanismo Especial de Monitoramento para a Nicarágua), foram 355 mortos, mas a verdade é que foram mais de 600. O MESENI foi expulso em 2018 e não teve tempo de continuar coletando informações e denúncias. Provavelmente nunca conheceremos os números reais.

Em 2018, o regime já não se importava com nada: começou a matar, reprimir, fazer desaparecer. Muitas pessoas contam histórias sobre casos de jovens que foram lançados dentro do vulcão Masaya. O governo colocou membros do exército nas ruas e trouxe franco-atiradores de outros países. Todos os tiros nos reprimidos eram certeiros, na cabeça ou na garganta. As armas relatadas pelas organizações de direitos humanos não eram as que qualquer pessoa tem, mas apenas o exército.

Aceprensa: Também desde então aumentaram a hostilidade contra a Igreja, conforme você documenta em seu relatório...

Molina: Sim. Eu comecei a documentar os cercos à Igreja, porque a todo momento saía na mídia uma profanação, um roubo, um caso diferente, e eu comecei a sistematizar, a levar os números. No dia em que publiquei o primeiro relatório, pedi a Deus que protegesse minha família na Nicarágua, porque eu sentia a necessidade de que esse relatório viesse a público para que a comunidade internacional aos poucos percebesse que a Igreja estava sendo totalmente perseguida na Nicarágua. Não é a mesma coisa dizer "houve uma profanação na semana passada" do que dizer "a ditadura sandinista atacou a Igreja em x número de ocasiões". O relatório, graças a Deus, teve o impacto que eu propus, e minha família ainda está viva. Cercada, mas viva. Algumas pessoas sempre têm que dar a cara a tapa pelos outros.

Um bispo em El Chipote

Aceprensa: Pode-se dizer que, até 2018, o regime respeitava a Igreja?

Molina: Acredito que o que havia antes era uma paz disfarçada, fictícia. Nunca houve paz entre a Igreja e o governo. De fato, em 2011 assassinaram o padre Marlon Pupiro, e os planos eram matar o bispo Silvio Báez, hoje exilado porque o Papa mandou tirá-lo de lá.

Em 2014, a Conferência Episcopal entregou um documento a Ortega e sua esposa: "Em busca de novos horizontes", um texto profético que antecipou o que aconteceria em 2018. A Conferência se perguntava o que iria acontecer na Nicarágua quando as ONGs fossem fechadas, pois o Estado não tem presença em todo o país. A ditadura acredita que a Nicarágua é Manágua, e não é assim. Há mais áreas onde não há presença do Estado com políticas públicas. Os projetos sociais da Igreja sim, chegavam a essas pessoas. Mas agora foram cancelados, assim como os de outras organizações sem fins lucrativos. Eram mais de 3.000 iniciativas.

A carta dos bispos incomodou a ditadura, porque ela não quer que lhe digam a verdade na cara. O governo acredita que a Igreja deve fazer como certos pastores evangélicos, que lhe prestam culto e vassalagem.

Aceprensa: O governo é mais tolerante com o setor evangélico?

Molina: Há um grupo de pastores evangélicos que fazem o jogo do governo e, por isso, por essa bênção de suas malfeitorias, obtêm algumas coisas. Recentemente, Cash Luna, um pastor guatemalteco, chegou para fazer um retiro de avivamento e foi permitido. O retiro foi no mesmo dia em que se completava um ano do sequestro do Monsenhor Rolando José Álvarez, bispo de Matagalpa.

Também a essas igrejas evangélicas são entregues terrenos, propriedades; é-lhes permitido fazer praticamente de tudo. Mas apenas a certo grupo, como eu disse. Há outro, maior, de pastores desconhecidos, do povo, e esses sim têm sido reprimidos. Agora mesmo estão sendo cobrados com o Imposto sobre Bens Imóveis, algo ilegal, pois a lei estabelece que as igrejas estão isentas. É uma forma de repressão.

Assim que o ditador soube que o Mons. Rolando Álvarez se recusou a ir para o exílio, decidiu enviá-lo para a pior prisão do país, sem que houvesse intervenção de um juiz.

Aceprensa: Você tem notícias do Mons. Rolando?

Molina: Dele não sabemos absolutamente nada. Só que está sequestrado; que uma vez permitiram que a família o visse... Agora mesmo não sabemos se está vivo, morto ou hospitalizado. Nas prisões da Nicarágua, foram praticados mais de 40 métodos de tortura e tratamentos cruéis e desumanos, e com ele certamente não estão sendo gentis.

Os últimos padres que estiveram presos e que conseguiram sair da prisão para o exílio, nos EUA, relataram tudo o que viram, e é horrível como foram tratados. Desde a transferência da sede episcopal para a prisão de El Chipote, de Matagalpa a Manágua, que é mais de uma hora, levavam-nos ajoelhados e com as mãos atrás da cabeça, batendo neles. Nessa prisão, onde a tortura é mais praticada, eles foram despidos e fotografados. Um tratamento totalmente degradante, ainda mais para um padre.

Não acredito que estejam tratando bem o Mons. Rolando. A única coisa que o regime publica é o que lhe convém. Nunca vão mostrar uma imagem do Monsenhor doente ou espancado. Por outro lado, não se importariam em dizer: "Mons. Rolando morreu de morte natural", entregá-lo em cinzas à sua família, e pronto. Não acontece nada.

Por isso a urgência de tirá-lo de lá; porque o odeiam, principalmente a esposa de Daniel Ortega. Ela tem um ódio visceral por ele. A vida desse homem depende dessa senhora e de Ortega, que assim que soube que ele se recusava a embarcar no avião para o exílio nos EUA, disse: "Vai para El Chipote". Nem mesmo um juiz determinou que ele fosse transferido de casa para a prisão, e rapidamente saiu sua condenação de 26 anos. Não respeitaram nem mesmo as formas inconstitucionais que eles próprios aprovaram.

O caso da UCA

Aceprensa: Fale-me sobre o caso da Universidade Centro-Americana (UCA), dos jesuítas, agora confiscada pelo regime.

Molina: Um dos principais objetivos da ditadura nicaraguense é eliminar completamente a Igreja Católica, e as agressões estão aumentando. Já não se trata apenas da profanação de um cálice, por exemplo, que para os evangélicos possivelmente não signifique nada. Confiscar uma universidade vai prejudicar toda a sociedade, e o regime está indo cada vez mais longe nisso, fechando todos os espaços para a Igreja. Já fechou 27 universidades, quatro delas católicas.

Com isso, pretendem nacionalizar a educação. O sandinismo precisa que no país não haja seres pensantes, pessoas críticas que estejam exigindo prestação de contas a todo momento.

Aceprensa: Quais motivos eles usaram para expropriar a UCA?

Molina: Eu fiz minha graduação em Direito lá, e conheço os jesuítas. Sei que mantêm muita ordem em suas instituições. Agora, a ditadura argumenta que eles não cumpriram o requisito de apresentar seus estados financeiros e a renovação de suas diretorias. É totalmente ilógico. Você pode entrar na UCA, e desde que põe o pé, pode dizer: aqui há ordem, disciplina e excelência. Não estive lá apenas um ano, mas cinco, e vi qual era a dinâmica dos jesuítas. É impossível que uma das universidades mais prestigiadas da Nicarágua não cumpra essas coisas mínimas.

Ao funcionário público que se opõe ao sandinismo ou ao seu projeto, aplica-se que a traição se paga com morte ou prisão.

O que acontece? Que os jesuítas não vão dizer: "Aqui está o documento, assinado pelo Ministério do Interior, que diz que apresentamos o relatório e eles o receberam". Não. As organizações sem fins lucrativos e a UCA vão apresentar seus estados financeiros e outras coisas exigidas pela lei, e eles não as recebem. Nem sequer colocam um selo que diz: "Não o recebemos em tal data". Por quê? Porque os sandinistas são tão perversos que não deixam provas das maldades que fazem. Várias organizações denunciaram isso: disseram que foram e o Ministério nem sequer as deixou passar do limiar. É o que está acontecendo.

Aceprensa: Existe alguma mínima possibilidade de parar esse atropelo nos tribunais?

(Molina não responde imediatamente: faz uma pausa para ler no celular uma notificação que acabou de chegar e que vem muito a calhar...)

Molina: Acabaram de cancelar a Companhia de Jesus. Estava sob a figura de organização sem fins lucrativos. Acabaram de cancelar sua personalidade jurídica. Ontem confiscaram a casa dos jesuítas, e hoje cancelam a personalidade jurídica... Isso é para dar um enfoque jurídico ao assunto, mas não o tem.

Na Nicarágua, não existe divisão de poderes nem institucionalidade. Tudo o que se faz é anti-jurídico. Nem suas próprias leis estão sendo respeitadas: não respeitam em nenhum momento as garantias do devido processo, nem as constitucionais. Parece, e estou certa, que quem redige toda essa informação é a primeira-dama, que está metida em tudo. Doña Rosario é onipresente. Não se move uma única folha no país sem a vontade dela. E se um juiz ousar fazer algo de acordo com a lei, imediatamente é destituído, julgado, anulado ou desaparecido. A quem se opõe ao sandinismo ou ao seu projeto, sendo funcionário público, aplica-se que a traição se paga com morte. Com morte ou com prisão. Os juízes não podem agir de forma contrária. Têm que seguir sempre suas diretrizes.

Ortega, pior que Somoza

Aceprensa: Ao contrário do que acontece, por exemplo, em Cuba, onde o governo comunista, embora hostil à Igreja, evita o confronto aberto com ela, o regime de Ortega é frontal, mesmo quando vai contra seus próprios interesses. Por quê?

Molina: É uma estratégia. Primeiro, liquidaram os protestos cidadãos. Depois, foram contra os meios de comunicação (a maioria dos jornalistas opositores ao regime estão exilados). Em seguida, aniquilaram os partidos políticos. Depois, as organizações sem fins lucrativos. Dos que permanecem na Nicarágua, muitos não dizem nem um pio.

Restava apenas a Igreja, que denuncia as arbitrariedades. Os padres falam do Evangelho, e este é uma denúncia dos abusos. Os padres estão permanentemente vigiados e suas homilias são gravadas. Imagine você: se um padre começa a falar de justiça, os paramilitares já dizem: 'Ele está tentando desestabilizar a paz do bom governo do presidente Ortega'. O regime vê a Igreja como seu principal inimigo, porque os padres não podem fazer algo diferente de anunciar o evangelho. Sem mais ninguém contra quem investir, a ditadura vai contra a igreja.

Aceprensa: O regime ainda conta com algum apoio?

Molina: A ditadura se mantém no poder graças a vários protetores: o exército, a Polícia Nacional, os paramilitares e os do CPC (Conselho do Poder Cidadão). Os três primeiros têm luz verde para assassinar, torturar e fazer desaparecer pessoas com impunidade; a mesma que se seguiu ao assassinato do P. Pumpiro. Pegaram um sujeito, colocaram a culpa nele, ele se declarou culpado, e pouco tempo depois foi libertado.

É assim que está acontecendo. Membros do exército te assassinam e ninguém diz nada. Nem em Medicina Legal, nem nos tribunais. As pessoas têm medo — e é razoável — de que, se saírem para protestar, serão mortas.

Recentemente, por exemplo, um ex-preso político saiu às ruas, com rosário na mão, para suplicar pelo Mons. Rolando. Meia hora depois, escreveu nas redes sociais que estava naquela jornada de oração, e o levaram. Não sabemos nada dele. Algumas garotas que publicaram em suas redes o que aconteceu na UCA acabaram na prisão... Quem ousa falar, imediatamente vai preso.

Por outro lado, o governo tem o apoio de outros países: Cuba, Venezuela, Rússia, China e alguns Estados árabes terroristas. Quanto à comunidade internacional em geral, estamos enfrentando crimes contra a humanidade, e a OEA e a ONU condenam o regime diariamente, mas têm um discurso duplo, pois financiam a ditadura com empréstimos milionários. Pagamos para que nos reprimam e assassinem.

Aceprensa: E quanto aos mais velhos, aqueles que viveram o somocismo [ditadura de Anastasio Somoza García e seu filho, de 1937 a 1979], fazem a comparação?

Molina: Toda ditadura é nefasta. Nossos pais e avós, que viveram aquela época, nos dizem que foi muito cruel, mas que, ao compará-la com a de Ortega, esta é mais sanguinária. Somoza respeitava a Igreja; assediava os padres, mas a Guarda Nacional permanecia a duas ou três quadras de cada paróquia, e não tocavam nos padres, muito menos nos bispos. Tinham respeito por eles.

Aquela ditadura foi brutal, mas existe uma diferença com a de agora: naquela época havia uma guerra entre dois lados armados, enquanto atualmente é um governo armado que está assassinando um povo desarmado. Não temos armas para responder; apenas valores éticos, morais, cristãos, pelos quais sabemos que é errado matar. A única coisa que os jovens e os outros manifestantes têm nas mãos são seus celulares.

©2023 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.

Conteúdo editado por:Eli Vieira
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