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No Brasil, a Coronavac é produzida pelo Instituto Butantan, em parceria com a Sinovac.
No Brasil, a Coronavac é produzida pelo Instituto Butantan, em parceria com a Sinovac.| Foto: Governo do Estado de São Paulo

O Twitter é o único lugar em que consensos veementes sobre todo tipo de questão se formam num piscar de olhos, e depois fica todo mundo dando ataque histérico. O último consenso do Twitter é que a vacinação da mulher negra enfermeira com a Coronavac foi um evento histórico a ser comemorado com lágrimas nos olhos por todo ser humano digno. O Twitter é mais histérico, mas no Facebook, se você escrever que duvida da eficácia da vacina chinesa fabricada pelo Butantan, uma turba vai atolar os comentários.

Então fiz um monte de postagens manifestando desconfiança quanto à vacina em ambas as redes sociais para dar uma olhada no que diziam os comentários raivosos depois. Estes apresentavam uma uniformidade surpreendente, pois eram repetidos por pessoas que nunca se viram na vida. A crença é delas a seguinte: a vacina “do Butantan” tem, com certeza absoluta, uma eficácia de 50%, de modo que toda a população tem que tomá-la para que metade fique imune; o respeitabilíssimo Butantan é a entidade responsável pela coronavac (não a chinesa Sinovac); somente os bolsonaristas são canalhas a ponto de levantarem dúvidas sobre a maravilhosa coronavac; até mesmo quem já teve covid deve tomar a vacina, porque existem casos de reinfecção; fazer uma vacina com vírus atenuado é algo banalíssimo, de segurança absoluta, de modo que a coronavac é tão segura quanto qualquer outra com décadas de uso.

Há algumas bobagens óbvias nessas opiniões. Se é tão fácil fazer vacinas a partir de vírus atenuados, e se há mutações nacionais, por que o mundo todo não está fazendo vacinas de vírus atenuados, e cada país com base na sua mutação local? Do jeito que falam, atenuar um vírus parece tão elementar quanto cortar as unhas de um gato brabo, que ficará então sem dar arranhões. Mas HIV e HPV são dois vírus, e só há vacina para um deles. Mas a bobagem mais importante, a ser elucidada aqui, é a de que a baixa eficácia obriga à vacinação de “quase 100% da população”. O raciocínio subjacente é esse: se a cada 100 que tomam, só 50 ficam imunes, é preciso que 100% da população tome a vacina, para que se chegue ao teto da eficácia que é de meros 50%. Isso é fruto de uma confusão entre duas metodologias de verificar eficácia de vacina. Uma é a clássica, cujo resultado foi tachado pelas famigeradas agências de checagem como fake news, e outra é novidade, a tal odds ratio, que foi usada pelo Butantan.

Entender as porcentagens 

Um cientista não é um sujeito divino que nasceu com uma estrela na testa. É alguém racional como você ou eu, que se diferencia de nós por ter se empenhado na ciência. O que eles fazem muitas vezes é passível de ser compreendido por bons alunos com ensino fundamental completo.

A informação oficial da vacina de Oxford é, como diz esta Gazeta, de uma eficácia de 70,4%. É um único número propagandeado, e o entendemos com clareza: se você tomar, a expectativa de Oxford é que você tem 70% de chances de estar mesmo imunizado contra a covid. Se fossem 100%, isso significaria que, com toda certeza, estava imunizado. Se fosse 0%, queria dizer que você com certeza não está imunizado por ela. E não estar imunizado pela vacina significa apenas que ela não exerceu nenhuma influência positiva, e não que você vai inevitavelmente pegar a covid. Se eu disser que misturar leite com manga tem 0% de eficácia na imunização de covid, isso não quer dizer que você vai morrer, senão que tanto faz misturar ou não misturar leite com manga, pois a covid vai vir ou deixar de vir do mesmo jeito. Existem mil outras razões que podem fazer alguém deixar de ter a covid: desde o fato de morar isolado num iglu a ter alguma imunização natural para outro vírus que sirva para este. (Pesquisadores andaram investigando a possibilidade de algo chamado “imunização cruzada” para explicar por que algumas pessoas não pegam covid.)

E que significaria, em princípio, uma eficácia de 50%? Que tomar a vacina é como jogar cara ou coroa: se você tomar, tem 50% de chances de estar imunizado e outras 50% de não estar imunizado. Sem dúvida é melhor, para quem recebe uma injeção, ter 50% do que 0% de chances ali. Mas se coloque no lugar do cientista que quer saber das coisas: uma eficácia de 0% é uma informação muito mais segura. Saber que uma vacina é tão eficaz quanto leite com manga é saber que ela não vale nada. Já uma eficácia de 50% é admitir que não sabe patavinas de certo ainda. Pode ser placebo. Por isso, a Anvisa põe 50% como um mínimo para ser aprovada como emergencial.

Como os cientistas sempre fizeram esse cálculo? Com dois grupos de voluntários: um que recebe placebo e outro que recebe a vacina. Nenhum dos dois sabe se está recebendo a vacina ou o placebo. Para determinar a eficácia, o cientista conta quantos adoeceram em cada grupo, faz a conta doentes não vacinados (chamemos de x) menos doentes vacinados (chamemos de y), pega o resultado dessa subtração e divide pelo número de doentes não vacinados. Depois multiplica isso por 100%. A fórmula fica assim: [(x − y) ÷ y] × 100% = Eficácia da vacina.

Esta fórmula é a do chamado método clássico.

O artigo do Dr. Reinach 

No dia 14 deste mês, o PhD em biologia celular e molecular Fernando Reinach escreveu no Estadão um pedido de desculpa aos seus leitores por ter confiado nas estatísticas divulgadas pelo Dr. Dimas Covas do Butantan.

Ele dera vazão a um quiproquó de gente das biológicas que pôs os números do Butantan na fórmula supramencionada e encontrou não os 50,38% de “eficácia geral” anunciados pelo Butantan, senão 49,69%, um tiquinho abaixo do mínimo necessário para ser autorizada pela Anvisa. E acrescentara outras coisas: “O primeiro que chama a atenção é que, se somarmos o total de pessoas que recebeu a vacina (4.653) com o número dos que receberam placebo (4.599), obtemos 9.252. Esse número, por razões não explicadas, é maior que o total de participantes do estudo citado no mesmo slide (9.242). Essa diferença de dez aparece em vários outros slides.”

Ao contrário da de Oxford, a divulgação da vacina chinesa do Butantan reparte em três: 50,38% seria a “eficácia geral”, 78% em “casos leves”, e incríveis 100% em “casos graves e moderados”. Os 78% seriam fruto de recorte de dados. Fernando Reinach deu uma explicação didática do que é um mau recorte de dados: “Imagine que uma revista automotiva faça uma pesquisa sobre o aparecimento de defeitos em um modelo de carro. Para tanto, pergunta para todos que compraram o modelo nos últimos 12 meses que defeitos foram observados. Imagine agora que ao apresentar os resultados ela afirme que o resultado da pesquisa é que o carro não apresenta defeitos no 1.º ano de uso. Se compradores reclamam de defeitos nos carros, ela explica que apresentou só um ‘recorte’ dos dados: compradores com mais de 80 anos que dirigiram menos de 150 km no 1.º ano, e nesse recorte não foram observados defeitos. Se o recorte incluísse só taxistas que rodaram mais de 20 mil km, o total de defeitos seria enorme.” Reinach explica que recortes podem ser úteis, mas é preciso avisar quando está sendo feito um recorte, bem como qual é ele. O grupo de onde saiu esse número de 78% é de velhinhos ou de jovens? Gordos ou magros?

Quanto ao número de 100%, comenta: “Além disso, no slide apresentado apareceram várias linhas que indicavam 100% de eficácia da vacina em evitar mortes e internações em UTIs. Uma afirmação impossível de fazer com os poucos dados coletados.” Dos 4.653 voluntários que  participaram do estudo tomando a vacina (em vez do placebo), não aconteceu de ninguém ir para a UTI. Os 100% de eficácia são isso: 0 num universo de 4.653. Agora, é razoável crer que se 220 milhões de brasileiros (incluídos velhos, diabéticos, obesos, fumantes) tomarem essa vacina (cuja eficácia pode ser um cara ou coroa), 220 milhões ficarão livres de casos graves e morte por covid?

49,69% é fake news, segundo agências de checagem 

O Butantan respondeu ao Estadão. Nas questões do recorte, da eficácia de 100% e da exclusão de 10 participantes no somatório, o Butantan não tocou. Falou apenas dos 50,34% em vez  de 49,69%, e esclareceu que usou uma metodologia nova, diferente da clássica, chamada “odds ratio” (que significa razão de chances). Eis a explicação de Ricardo Palacios, do Butantan, ao Estadão: “Em estatística, o método que considera também a variável tempo de exposição ao risco é chamado de análise de sobrevivência e tem como principal medida o hazard ratio (HR). Há também, na estatística, a análise clássica, que leva em conta só o número de infecções em cada grupo, sem considerar o tempo de exposição. Ela tem como medidas o odds ratio (OR) ou risco relativo (RR). Nenhum método é superior ou inferior. A opção por utilizar um ou outro depende do desenho e do objetivo do estudo. O mais importante é que a metodologia fique clara antes do início dos testes clínicos, para que não haja nenhum desvio dos objetivos iniciais.” (Ênfase minha.)

Ainda assim, se o leitor digitar no buscador “eficácia de  49,69%”, vai achar um monte de ministro da verdade, digo, de agência de checagem, garantindo que se trata de fake news.

Ao cabo, os 50,36% não tem mais nada a ver com cara ou coroa, mas sim que você vai ter 50,36% de chances a mais de não pegar covid. Nesse método da odd ratio, também se compara um grupo vacinado a outro de placebo. Se o grupo dos vacinados teve 50% a mais de gente sadia, conclui-se que a eficácia é de 50%. [Pra isto eu olhei a BBC, que expôs com ais clareza.]

O tuiteiro, o divulgador, o jornalista e o senador pedem prisão 

Vamos voltar então às opiniões coletadas por mim em rede social. Se tem doutor divulgador científico e jornalista dizendo que é preciso mais gente tomar uma vacina de 50% de eficácia para ter impacto na sociedade, é porque não junta lé com cré. Os 50% do Butantan dizem respeito às chances dos indivíduos; e não que, se 100% da sociedade tomarem, 50% ficarão imunizados. Inclusive, os dados do Butantan são absolutamente inacreditáveis caso consideremos pensemos que eles foram obtidos pelo método clássico. Não faz nenhum sentido que a vacina seja ineficaz para 49,64% da população, e ainda assim seja capaz de impedir casos graves em 100% da população.

Ainda assim, os bumbos rufam nas redes sociais e na imprensa. Um Átila é o “consenso científico” em pessoa, mas os números de Reinach são fake news. Por isso, o tuiteiro, o jornalista e o divulgador  estão prontos para considerar cidadãos comuns gente indigna de viver em sociedade, criminosa e sub-humana, caso não vá correndo em euforia tomar a vacina “do Butantan”. O radicalismo os levaria fácil a aceitar medidas extremas contra qualquer um que não queira tomar vacina experimental. Projeto de lei prevendo prisão para quem não tomar vacinas experimentais, já há. Foi feito pelo senador baiano Ângelo Coronel, aliado dos petistas locais, e – junto com Tabata Amaral – nobre campeão da luta contra as “fake news”.

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