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Entrevista

O “fim da história” acabou, diz autor que popularizou termo “brazilianization”

Alex Hochuli: "Brazilianization" é crítica a liberalismo de direita e de esquerda.
Alex Hochuli: "Brazilianization" é crítica a liberalismo de direita e de esquerda. (Foto: Arquivo pessoal)

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"Talvez estejamos testemunhando não apenas o fim da Guerra Fria ou o fim de um período específico do pós-guerra, mas o fim da história como tal: isto é, o fim da evolução ideológica da humanidade e da universalização da democracia liberal ocidental como o produto final do governo humano".

A declaração consagrou Francis Fukuyama, o economista e filósofo segundo quem as democracias liberais e o capitalismo se tornariam o novo padrão que encerraria o ciclo iniciado pela Revolução Francesa de 1789. Seria o fim da história.

A previsão foi feita em 1992, no contexto do fim da União Soviética. Por algum tempo, ela fez sentido. Mas o cenário mudou radicalmente desde 1989, quando o Muro de Berlim veio abaixo. Em parte, o novo momento é marcado pela desigualdade social profunda, sintetizada pelo termo “brazilianization”, forjado em 1991 e, vinte anos depois, resgatado pelo analista político Alex Hochuli.

Em um livro que será lançado no final de janeiro, Hochuli (suíço-brasileiro que vive em São Paulo) reúne, ao lado de  George Hoare e Philip Cunliffe, uma série de insights produzidos pelo podcast Aufhebunga Bunga, que analisa a política global.

Hochuli, que estudou Relações Internacionais pelo King’s College de Londres e Sociologia na Universidade de Kent, explica os impactos de um mundo “brasilianizado”, analisa o cenário político atual e apresenta as principais teses da nova obra, que se chama "O Fim do Fim da História" – um fenômeno que, em sua avaliação, se consolidou em 2016. É uma análise de um marxista que, nas próprias palavras, se opõe às "formas degeneradas do estalinismo" e à "nova esquerda da década de 60".

Seu artigo sobre a “brazilification” do mundo, de 2021, gerou uma ampla repercussão. Algo mudou, quatro anos depois? Hoje você mudaria ou acrescentaria algo ao artigo
O conceito continua sendo cada vez mais relevante, porque trata de uma questão central: a decadência. A esquerda, particularmente a esquerda progressista, tem dificuldade de lidar com essa noção. Não entendo “decadência” como o declínio que vem depois de um momento de excesso de liberdade sexual, nem o fruto de uma queda moral. Decadência eu entendo como estagnação política, econômica, social, moral, é o fechamento de novos horizontes, a falta de ambição, o empobrecimento.

É uma cultura que se engana em dizer que as coisas estão avançando, quando não estão. Uma parte da decadência é não se deparar com a própria decadência, é viver numa cultura que só repete formas anteriores. A incapacidade da indústria cultural, de Hollywood, de inventar novas histórias, é sintoma dessa doença.

O que eu acrescentaria ao artigo é, primeiro, tentar incorporar o fim da mundialização. A posse do segundo mandato do Trump é um marco importante, simbólico, do fim do neoliberalismo mundial. Esse é um elemento que tem que ser incorporado à brasilianização. Uma das questões que se debate é se esse mundo apresenta novas oportunidades para os países como o Brasil, ou se representa uma ausência de autonomia nacional. Estou escrevendo um livro sobre a brasilianização, e periferização, para debater essas questões.

Outro elemento que quero trabalhar são as questões ideológicas. Eu quero entender melhor os reflexos ideológicos da precarização das relações de trabalho. Um deles me parece ser o fundamentalismo religioso, um movimento ambivalente, contracultural e conservador.

Como as elites poderiam ajustar a postura e as atitudes para reduzir os impactos da brazilianization?
Eu não tenho confiança alguma nas elites atuais. Elas foram formadas num período pós-político. As elites do século 21 têm como objetivo a repressão da política, da contestação. A solução é sempre uma guinada à tecnocracia, a tomada de decisões submetidas a negociações em portas fechadas. Não acho que uma mudança vai vir das elites.

Uma renovação seria necessária, e isso só acontece quando aparecem pressões vindas de baixo. Só assim vai se criar uma elite comprometida com o desenvolvimento – uma palavra esquecida nos nossos dias. E isso vale para todos os países. Há três ou quatro décadas, as elites pararam de fazer promessas, e o povo não espera nada delas.

Esse é um processo de declínio. O mundo se torna cínico, todos buscam avançar de forma individual, sem expectativas de aumento da liberdade individual e coletiva. Temos que abandonar as falsas ideias de progresso. Precisamos pensar no longo prazo, mas o nosso capitalismo atual é muito focado no curto prazo. O crucial é militar a favor da criação das condições para a política. Entender a profunda crise da política implica que paremos de se imaginar no século 20. O século 20 acabou faz 35 anos.

Quando começou a produção do livro "O Fim do Fim da História"? Quais são os principais objetivos da obra?
Começamos a escrever em 2019. O podcast do qual surgiu o livro surgiu em 2017. Nos deparamos com os eventos de 2016, a eleição do Trump e o voto do Reino Unido pela saída da União Europeia. Foram momentos marcantes, que identificamos como o fim do fim da história. Eu e os coautores já éramos amigos há muito tempo, fazíamos parte dos mesmos grupos políticos. Crescemos numa época, a década de 1990 e 2000, que era pós-política. O socialismo tinha sido derrotado, o movimento operário mundial tinha sofrido uma derrota história e não iria voltar. Essa mudança levou a uma transformação, a uma derrota da política em si.

Todo esse período tem seus correlatos brasileiros, que traçamos no livro e que resumem bem essas tendências mundiais. O movimento de junho de 2013, o movimento a favor do impeachment da Dilma em 2015 e a eleição de Bolsonaro, que representou a volta de uma política alternativa, mas de uma forma totalmente apocalíptica.

O fim da história, de 1989 até 2016, representava o fim do dilema entre esquerda e direita como uma forma de enquadrar a política. Esse dicotomia passou a tratar apenas de formas diferentes de gestão. O mundo sem política foi um momento lamentável da história. Depois do plano Real, o Brasil também apresentava um momento pós-histórico. A gente podia se contentar com um crescimento do consumo individual, um progresso lento em questões raciais, de sexualidade e de gênero. Parecia que não havia mais grandes ambições.

O nosso objetivo com o livro é taxar a esquerda liberal e progressista de histérica. Apesar de eles se dizerem a favor da militância, da luta, a nova imprevisibilidade da política levou a um surto coletivo, algo que denominamos do colapso da ordem neoliberal.

O que você entende por liberalismo?
De forma geral, podemos usar o termo liberal para descrever toda uma gama de posições políticas, tanto à esquerda quanto à direita. Isso inclui tanto os progressistas de centro-esquerda que colocam questões de diversidade, tolerância e inclusão em primeiro lugar, quanto — do outro lado do espectro — a centro-direita pró-mercado, pró-negócios. Ou seja, o que define essas posições à centro-esquerda e centro-direita é uma relação conservadora com as instituições. É uma tentativa de manter ou defender as instituições — em contraste com uma direita radical que quer destruir as instituições, ou algumas delas, e uma posição radical com a qual eu me identificaria, que tem como proposta programática a reconstrução de instituições. Quando eu digo liberal, eu digo um centro amplo que quer defender as instituições.

O que é a “síndrome do colapso da ordem neoliberal”?
Concebemos esse conceito em 2018. Nós o definimos como uma coleção de sintomas que surgem em reação a essas mudanças políticas. O conceito trata da incapacidade da elite liberal de entender e aceitar a mudança política como uma realidade, e de reagir a ela.

A elite liberal pensava que o mundo nunca mais ia mudar, e o que restava era a gestão tecnocrática, e talvez o avanço gradual de minorias na forma de políticas de identidade. Essa visão se acreditava não política, não ideológica. Acreditava-se que a ideologia dominante era a não-ideologia. O que se viu agora foi a volta da política, que é cada vez mais confusa, ideologicamente recombinada. A direita se traveste de esquerda e vice-versa. Quando a ideologia da não-ideologia começou a sofrer ataques diretos, sobretudo o populismo, os defensores da ordem sofreram um surto, uma explosão histérica.

Para dar um exemplo, no Reino Unido houve uma revolta contra a estrutura antidemocrática da União Europeia e contra a mundialização. Foi um voto democrático, 52% das pessoas votaram pela saída. Todas as forças do centro não só perderam como não aceitaram o escrutínio popular e abraçaram teorias da conspiração. Como se não houvesse nada de errado com a União Europeia, sua falta de crescimento, a falta de poder popular, a falta de controle sobre a imigração. A reação contra essas estruturas foi entendida como irracional. Foi assim nos Estados Unidos, com a eleição do Trump, e agora a Alemanha passa pela mesma coisa.

Em todos os casos, fala-se como se a Rússia de Vladimir Putin estivesse manipulando o mundo. Essa é uma forma de a elite se isentar da responsabilidade de ter criado o mundo atual, com todas as suas desigualdades, suas injustiças. Como se a elite não aceitasse que as pessoas se revoltem contra a bela ordem social criada por ela. Daí a argumentação de que o Brasil deveria voltar ao período anterior a 2013, como se no passado tudo fosse uma maravilha. 

Em algum momento o conceito de "fim da história" fez sentido? Caso tenha feito, quando ele deixou de ser válido?
Fukuyama estava certo, houve um momento em que a democracia liberal era a única opção legítima, a única visão que apresentava uma promessa universal baseada na liberdade. As outras alternativas que existiam na época, como o islamismo radical, não atendiam a esses critérios. O socialismo do século 21 não representava nenhuma novidade, era uma forma de nacionalismo de esquerda que sempre existiu, mas que não representava uma ideia de uma revolução mundial. Mas o Fukuyama superestimou a capacidade do liberalismo de se sustentar e se renovar. O liberalismo então caiu em decadência. Esse é um fato com o qual nos deparamos todos os dias.

A liberdade foi resumida ao poder de consumo. O liberalismo se torna defensor da ordem estabelecida. Tantos liberais de direita quanto a esquerda progressista, se tornaram defensores do establishment. Não sou defensor da direita populista, mas hoje em dia ela é a única forma de contestação da ordem atual.

Como você definiria o cenário político global atual? Ele tem paralelo com outros momentos da história?
Vivemos uma era história única, sem paralelos. Estamos ainda dentro da modernidade, no sentido de ter uma sociedade de mercado, com alta tecnologia. Mas, ao mesmo tempo, nunca se viveu um momento em que a política de massas estava no passado, e não no futuro. O período da modernidade política surgiu em 1789, com a Revolução Francesa, e se encerrou em 1989, com a queda do Muro de Berlim. Foi uma era marcada por revoluções e por processo de ruptura constante, ao longo de aproximadamente 100 anos, quando surgiu o socialismo, o movimento operário e a política de massa. Desde 1989, sofremos um processo de atomização, de desmoronamento de instituições políticas, principalmente o partido político, orgânico, enraizado, das massas, popular.

O que temos com o fim do fim da história é uma volta da política, de uma forma hiper midiática. Não é a política através de partidos, sindicados, movimentos orgânicos e presenciais. Hoje a política acontece com mídias sociais, pronunciamentos políticos feitos pelo TikTok. Há uma espetacularização. Neste sentido, é um momento único na história. Vivemos na modernidade, mas o que conhecíamos como modernidade está no retrovisor.

Vivemos uma lenta decaída do império americano, ao mesmo tempo que não existe um opositor que possa dominar o mundo – a China está longe disso. Pela primeira vez, vivemos um período sem um país dominante e um movimento de questionamento a ele. Durante o auge do Império Britânico, havia pelo menos uma contestação interna, que foi o socialismo, hoje derrotado. E, durante o auge do império americano, até meados do século 20, havia a União Soviética e seus aliados, que apresentavam, pelo menos teoricamente, uma alternativa, mesmo que, na prática, exercessem apenas uma forma de capitalismo de estado. Hoje o capitalismo é total. Tudo isso faz com que nossa era seja única. Nenhum paralelo histórico cabe.

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