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Algumas palavras parecem ter mudado de sentido da noite para o dia. Na prática jurídica do STF atual, termos antes consolidados ganharam novas interpretações.
Esta lista de verbetes busca traduzir com leveza o denso cenário político e judicial do país. Por vezes é preciso legenda para entender como o STF interpreta a lei.
Atenção: o texto é carregado de ironia.
Ataques às instituições democráticas
Antes, seria fechar o Congresso e derrubar a ordem constitucional. Hoje, basta um meme ou um tweet irônico para configurar o ataque.
Atos antidemocráticos
Censura? Perseguição de opositores políticos? Fechamento do Congresso? Não. Antidemocrático é rezar o Pai-Nosso ou o hino nacional em praça pública com camiseta verde e amarela. Cumpridos os três requisitos, então, é ato antidemocrático na certa.
Atos preparatórios
Na velha doutrina, são planejamentos ou ações iniciais sem força de crime consumado. Raramente geram punição. No Brasil reinventado, “ato preparatório” já rende indiciamento, prisão preventiva e manchete no jornal. Se você já tem uma bandeira do Brasil no armário ou pesquisou passagem para Brasília, cuidado: já entrou na fase de conspiração.
Acesso aos autos
Um direito elementar da defesa que no novo dicionário jurídico é privilégio da imprensa. Agora é “justiça surpresa”: descubra do que está sendo acusado pela TV ou só no dia da sentença.
Batom
O cosmético em forma de bastão não é mais instrumento de maquiagem feminina. É arma perigosa. Sobretudo se usada para escrever em uma superfície lavável. Assim como a presunção de uso de arma para quem tem porte, uma mulher que porta um batom também tem a alta periculosidade presumida. Vide o caso de Débora Rodrigues.
Bolsonarismo
No novo dicionário, deixou de ser movimento político para virar sinônimo universal de crime. Serve para qualquer coisa: golpe, fake news, organização criminosa, atentado contra a democracia. Até vendedor de algodão doce em manifestação já pode ser acusado de “bolsonarismo”. Está quase entrando no Código Penal como crime tipificado.

Censura
Nos livros de história, era um regime autoritário proibindo jornais e artistas de se manifestarem. Hoje, foi rebatizada de “moderação de conteúdo”. Não é censura, é proteção da democracia. O detalhe é que a tesoura só corta em um sentido: criticar decisões arbitrárias é censura; bajular o governo é liberdade de expressão plena.
Crime contra a soberania
No novo glossário, crime contra a soberania é um slogan para fingir que o regime está governando bem, quando não está. Mesmo se não houver soberania em milhares de territórios brasileiros em que o crime organizado já tomou conta, quem atenta contra a soberania são apenas opositores ao governo Lula que articulam fora do Brasil uma solução para restaurar a normalidade democrática.
Crime de golpe de Estado
Na história, sempre envolveu autoridades, planos bem articulados e, no mínimo, uma tomada de poder. O “golpe de Estado” de hoje é tão acessível que até aposentados e moradores de rua são considerados “golpistas”.
Crime impossível
Nos manuais, era aquele que não tinha como ser consumado — como aplicar um golpe de estado usando batom. Mas, agora, crime impossível é apenas um detalhe irrelevante: se você imaginou, questionou ou aventou, já é culpado.
Crime tentado
Era quando o sujeito queria cometer um delito, mas foi impedido pelas circunstâncias. Hoje, crime tentado é sinônimo de pensamento suspeito. Não importa que nada tenha acontecido — se um ministro achar que você cogitou, já é crime. É a consagração da “jurisprudência Minority Report”: punir antes que aconteça. É o caso da nova lei contra o Estado Democrático de Direito. A imaginação já é punível. Nem George Orwell sonharia tão alto.
Competência constitucional do STF
Era aquilo delimitado pela Constituição, claro e restrito. Mas, reinterpretado pela toga criativa, virou competência universal: o Supremo pode legislar, governar, punir, investigar, censurar, interpretar, filosofar e até criar novos direitos e crimes.
Corrupção
Antes significava desvio de dinheiro público e enriquecimento ilícito. Hoje é um conceito seletivo: se o réu for aliado do Supremo, é “erro administrativo”; se for desafeto, é o maior escândalo da história nacional.
Delação premiada
Criada como instrumento para desvendar crimes graves, agora é a máquina de moer inimigos. Funciona assim: o acusado fala o que os investigadores querem ouvir, ganha redução de pena e, de quebra, fornece manchetes prontas. Não importa a veracidade, não importa as contradições, importa a conveniência. A delação premiada virou o delivery da acusação: você pede, o delator entrega.
Democracia
Em tese, governo do povo, pelo povo e para o povo. No dicionário jurídico contemporâneo, é governo do Supremo, pelo Supremo e para o Supremo. A democracia virou uma boneca de porcelana: frágil, intocável e guardada a sete chaves, mas usada como escudo sempre que alguém ousa discordar.
Desinformação massiva
Qualquer opinião que discorde da versão oficial do regime. Publicar dúvida é espalhar desinformação; levantar questão é crime de lesa-pátria. A verdade deixou de ser um valor absoluto: agora é um carimbo de cartório, só emitido pelo Supremo.
Dever de cooperação das plataformas
Conceito novo e brilhante: significa que empresas privadas precisam virar extensão da polícia política. Se a ordem for apagar uma conta que não cometeu crime algum, a plataforma de rede social deve cooperar — e sorrir, sob pena de multa astronômica.
Dever de proteção da ordem constitucional
Senha mágica para justificar qualquer medida arbitrária. Garantir a ordem virou desculpa guardada na manga, usada como um curinga para qualquer jogada autoritária.
Estado Democrático de Direito
Antigamente significava que todos eram iguais perante a lei. Hoje quer dizer que alguns são menos iguais do que outros. O Estado é democrático, desde que você pense, fale e escreva de acordo com a cartilha do regime. O direito é garantido, a não ser que contrarie as convicções pessoais de Suas Excelências.
Fake news
Qualquer informação que contrarie a versão oficial do Supremo ou do governo. Se um ministro que foi gravado em um palanque dizendo “derrotamos o Bolsonarismo” alegar que não disse isso, então ele não disse. Propagador de “fake news” é quem espalha o vídeo.
Foro privilegiado
Instrumento de controle político por parte dos ministros para que parlamentares cujo foro reside no STF sigam a cartilha dos ministros. Acima da decisão do STF não tem recurso. Contrariou o STF, sua vida acabou. Quem mandou entrar na política?
Gravidade concreta da conduta
O termo agora é subjetivo. Pelo olho de um ministro, se ele achou grave, é grave. Um exemplo é a decisão do ministro Flávio Dino. "Pouco importa se a pessoa tinha ou não uma arma de fogo ou uma arma branca, o que importa para fins de debates da classificação jurídica é que o grupo era armado", escreveu ele em seu voto para defender a tese jurídica de que o grupo que praticou atos de vandalismo no domingo do dia oito de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes estava armado e era suficientemente perigoso para dar um golpe de estado.
Interferência indevida nos Poderes
Na doutrina tradicional, significava um poder invadir a competência do outro, desrespeitando a separação harmônica. Hoje, o STF tem “salvo conduto” na interferência dos Poderes. Quando o Legislativo legisla ou fiscaliza o Executivo, está invadindo a competência exclusiva do STF. O Judiciário não só legisla como justifica o ato com a desculpa de que está “suprindo a omissão legislativa”.
Imunidade parlamentar
Os constituintes de 1988 imaginavam que seria uma blindagem contra abusos, para garantir o livre exercício do mandato. Ingênuos! A imunidade parlamentar agora é um benefício condicional: só vale se o deputado votar com o governo e elogiar o STF. Caso contrário, a imunidade é suspensa, caçada ou reinterpretada.
Juiz
A figura imparcial que garante a aplicação da lei agora pode ser vítima, promotor, investigador, legislador e, quando sobra tempo, também intérprete da Constituição. É o verdadeiro “faz-tudo” institucional: mistura de magistrado, xerife e coach motivacional da democracia.
Liberdade de expressão
Sob nova interpretação, virou o direito de repetir o que os líderes do sistema atual querem ouvir. Se você ousar discordar, já era, será punido pelo crime de opinião.
Liberdade de imprensa
Na versão antiga, a imprensa tinha autonomia para fiscalizar os poderes. No dicionário jurídico atualizado, liberdade de imprensa é um privilégio concedido a veículos amigos, que aplaudem e publicam releases sem questionar. Se o jornal criticar, vira “blog de fake news” e corre o risco de ganhar uma bela ordem de censura ou de prisão.
Medidas assecuratórias
Originalmente, serviam para preservar bens e evitar que criminosos lavassem dinheiro, por exemplo. Hoje, são medidas punitivas que congelam contas de cidadãos, cortam meios de subsistência e “asseguram” que ninguém ouse financiar um ato considerado incômodo ao poder, como retirar os proventos de um senador da república. É o confisco versão democrática e com carimbo judicial.
Medidas cautelares diversas da prisão
Traduzindo: controle absoluto do apenado. Esquece o Código Penal ou os direitos humanos. Como acontece com Jair Bolsonaro. Ele não está somente preso, está proibido de dar entrevistas, de falar com os filhos, de falar com embaixadores, de usar redes sociais e, se aparecer nas redes sociais de alguém, a pena é majorada.
Milícia digital
No passado, “milícia” lembrava armas, violência e domínio de territórios. Agora, o termo virou metáfora para quem defende o Bolsonaro nas redes sociais.
Periculosidade do agente
Antes, era a avaliação de alguém realmente violento, capaz de matar, sequestrar ou liderar quadrilhas. Agora, é o rótulo aplicado ao aposentado com cartaz manuscrito, à dona de casa que reza o terço na frente do quartel ou ao estudante que compartilhou meme. A periculosidade é tão “grave” que se combate com tornozeleira, censura e bloqueio bancário.
Presunção de uso de arma
Na lógica jurídica tradicional, ter porte de arma não é prova de uso. Mas no manual punitivo da Suprema Corte, basta ter o porte para ser automaticamente considerado atirador em potencial. É como presumir que quem tem um canivete pretende esfaquear alguém. Não importa o fato, importa o que o julgador acha que você poderia ter feito.
Princípio constitucional da legalidade
Antes, valia a máxima de que "ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei"; agora, a regra parece ter mudado para: "ninguém pode, exceto se o ministro mandar", como no caso do juiz Airton Vieira que aparece sete vezes no relatório divulgado pelo comitê judiciário da Câmara dos Representantes dos EUA. Ele apenas cumpriu ordens.
Processo penal
Seria o conjunto de garantias para equilibrar acusação e defesa. Mas, na versão atual, primeiro decide-se a pena, depois procura-se a prova, e por fim arruma-se um advogado de defesa para enfeitar a cena. O processo penal virou aquele teatro em que o réu já entra com a culpa presumida e com a sentença pronta antes de ouvidas as partes.
Urnas eletrônicas
O ápice da tecnologia eleitoral do planeta. Inquestionáveis.
Vítima
No dicionário jurídico reinterpretado, vítima é uma entidade difusa: o Estado, a democracia, as instituições, os ministros — enfim, qualquer coisa que convenha. Já o cidadão que teve direitos violados? Esse não vale nada fica. Se quiser, fica na fila do habeas corpus, esperando um dia a justiça chegar.






