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Fachada da Biblioteca Nacional
Fachada da Biblioteca Nacional, que será presidida por Rafael Nogueira.| Foto: Divulgação/Biblioteca Nacional

Se há uma coisa pela qual podemos agradecer o governo Bolsonaro, e que talvez todos estejam de acordo, é a publicidade que quase toda fundação de cultura e educação está ganhando. Em todos os escalões do governo, do primeiro ao enésimo, acabam sempre por descobrir que (hélas!) algum conservador está no comando.

Tudo começou com a indicação de Ricardo Velez-Rodriguez ao cargo de Ministro da Educação. Fora uma sugestão de Olavo de Carvalho ao presidente Bolsonaro – e não tardaram as manchetes em tom de escândalo nacional. De fato, o nome não deu bons resultados e ele foi exonerado, mas o seu substituto Abraham Weintraub – antipetista ferrenho e que também é simpatizante do filósofo – também não teve vida fácil quando de sua nomeação.

Mas a coisa não acabou por aí, logo outros nomes de hierarquias cada vez menores foram assumindo postos no governo e – sobretudo quando os assuntos eram ligados a educação e cultura e o candidato ao posto era abertamente conservador – as críticas choviam (quem não se lembra de Weintraub de guarda-chuva...). Seria uma coincidência?

As últimas críticas foram direcionadas a Roberto Alvim, que assumiu recentemente a Secretaria Especial da Cultura e que, como era de se esperar, começou a puxar todos os quadros subordinados para a direita. Entre eles, o presidente da Funarte (alguém sabia da existência dela?) Dante Mantovani e o presidente da Biblioteca Nacional, Rafael Nogueira.

Este último, ao contrário do que agouravam os jornais, fez um discurso bastante sóbrio em sua posse, destacando a importância histórica e cultural da instituição, e uma de suas primeiras ações no cargo foi a de verificar se os programas de combate a incêndios estão sendo bem conduzidos.

Nogueira também citou seu trabalho na série Brasil: A Última Cruzada e no filme Bonifácio: Fundador do Brasil nos quais se tornara mais conhecido. No dia seguinte, as produtoras de ambos alegaram ser vítimas de hackers. Alguém mais apressado poderia acusar a esquerda de ter sido a mandante, mas nada até aqui indica isso, e bem poderia ser uma coincidência.

Contudo, esses casos me fizeram lembrar de um ensaio de Otto Maria Carpeaux, A ideia da universidade e as ideias das classes médias, em que li pela primeira vez que os regimes totalitários em geral não se importam com as áreas ditas “técnicas”, mas restringem tudo o que podem nas ciências “humanas”. Eis o parágrafo:

Para a mentalidade média do nosso tempo a utilidade das ciências é determinada segundo as aplicações práticas: a física e a química, que nos forneceram a luz elétrica e os gases asfixiantes, são as ciências úteis; a história e a filosofia, que não nos fornecem nada, são ciências "inúteis". Apelo desta sentença para a sabedoria de certos homens práticos, que disso entendem muito bem. Certos regimes, ditos totalitários, acharam indispensável regular pela força o estudo das ciências, cujas consequências práticas poderiam abalar estes regimes. Ora, que vemos nós, com surpresa? Estes regimes não se ocupam, absolutamente, com as ciências "práticas", a física e a química, que continuam bem tranquilas. Mas as ciências totalmente inúteis, a história, a filosofia, os estudos literários, são justamente as favoritas dos regimes totalitários, que as abraçam até sufocá-las. É digno de nota.

Sempre me recordo desse trecho quando vejo as supracitadas “polêmicas” do governo Bolsonaro. Mas, afinal, o governo não seria “conservador nos costumes, liberal na economia”, por que seria de espantar que o presidente esteja fazendo aquilo que disse que iria fazer? Talvez as críticas partam de pessoas com o mesmo elã totalitário e que desejam sufocar as opiniões francamente contrárias a suas, ou talvez seja coincidência, sei lá.

Os nomes de Bolsonaro indicam que ele, desde o início de seu governo, se preocupa com a chamada “guerra cultural”. E que não perde a chance de colocar um conservador quando tem oportunidade. Isso não deve nos preocupar.

O que deve nos preocupar é se essa guerra nos conduzirá a um mero conflito partidário ou personalista e nos esqueçamos de cumprir a verdadeira missão da cultura que, no fundo, é todo o tema do ensaio de Carpeaux – cuja leitura atenta indico fortemente. Eis mais um trecho:

As velhas universidades são de utilidade muito reduzida. Elas não fornecem homens práticos; formam o tipo ideal da nação: o lettré, o gentleman, o Gebildeter. Elas formam os homens que substituem, nos tempos modernos, o clero das universidades medievais. Elas formam os clercs¹.

Em toda época houve pessoas que se dedicaram a formar clercs – que talvez poderíamos chamar de “homens livres” ou “sábios”. Assim como houve sempre quem quisesse ocupar essa função na sociedade. Sem eles, Cultura é apenas um termo antropológico. Estado e sociedade podem e devem juntar esforços para elevar o nível do debate público. Uma verdadeira cultura não surge por coincidência.

¹ O termo clero se aplicava a todas as pessoas letradas da Idade Média e não apenas aos membros da Igreja.

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