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Sistema penitenciário

O que é o abolicionismo penal, movimento para acabar com as prisões

Superlotação nas cadeias: Na imagem, presos na Delegacia de Furtos e Roubos no bairro Jardim Botânico, em Curitiba (Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo)

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O sistema penitenciário moderno tem pouco mais de 200 anos. Ao longo desse tempo, falhou miseravelmente. Não reduz a criminalidade, nem recupera os detentos. Apenas submete seres humanos a humilhações e agressões diárias. É preciso eliminar esse padrão e substituí-lo por outro, com penas variadas, visando reduzir a quantidade de pessoas confinadas, com o objetivo de longo prazo de eliminar as cadeias. Aliás, a própria definição a respeito do que é crime precisa mudar, de forma a estimular não as punições, mas os acordos entre as partes.

Existem diferentes linhas de pensamento entre os militantes, mas o objetivo final é buscar alternativas para inibir a violência, sem recorrer aos presídios – ou, no mínimo, reduzindo ao máximo o papel desses locais.

“O abolicionismo penal é uma estratégia baseada na compreensão de que o sistema penal não resolve os problemas que se propõe resolver. Ao contrário, complica”, afirma a cientista política Vera Malaguti de Souza, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERF) e secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia. “Hoje, o sistema penal produz o criminoso. Pega um garoto de família digna, mas pobre, que ganha um dinheiro extra avisando os traficantes quando a polícia se aproxima. Esse menino acaba preso, e cadeia ele vai ser aculturado em uma carreira criminosa”.

Em entrevista concedida por e-mail, que rendeu respostas elaboradas a quatro mãos, Isabel Cristina Martins Silva e Leticia Blank Netto, pesquisadoras do Centro de Mediação e Práticas Restaurativas (CEMPRE) da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), explicam: “Apesar de existirem diversas teorias abolicionistas, há um consenso geral no sentido de que não se trata meramente e exclusivamente de abolir as prisões, mas abolir a enraizada cultura punitivista”.

Nesse sentido, prosseguem as pesquisadoras, “o abolicionismo se propõe no sentido de superar a linguagem estigmatizada e estereotipada do crime, do criminoso, da criminalidade, da periculosidade e da gravidade do delito, pois de nada serviria a criação de novas instituições, se permanecessem os conteúdos e as linguagens punitivas”.

Privilégio de políticos e empresários

Já para Carolina Soares Nunes Pereira, mestranda em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), onde tem ministrado cursos sobre abolicionismo penal, “o abolicionismo é uma postura política que enxerga que a sociedade sem prisões já existe para alguns poucos privilegiados, como grandes empresários e políticos profissionais”. A pesquisadora prossegue: “A punição estatal no capitalismo não é uma forma de justiça social mas de manutenção das estruturas de exclusão e massacre de pobres e dos negros do mundo”.

Pereira considera que “quem se beneficia do sistema prisional tem uma série de motivos para investir nele; afinal, ele é lucrativo e responde à ordem da burguesia. Desde limpeza social e gentrificação das ruas de uma cidade, com policiamento e encarceramento de moradores de rua, prostitutas, pessoas trans, até a gestão da vida dos trabalhadores e descarte dos pobres e pretos para quem o capitalismo destina o sangue e a lama”.

Um doutor em Direito que defendeu uma tese sobre teoria da pena, mas não quer que seu nome seja divulgado por temer represálias, discorda. “O movimento abolicionista é muito forte no Brasil e na América Latina. Na Europa e nos Estados Unidos não é respeitado, é tratado como propagando ideológica. O abolicionismo é uma ideologia velha, que ninguém mais leva a sério, e que veio morrer no Brasil”.

Para ele, “o abolicionismo é um conjunto de crenças, que parte da hipótese marxista de que o sistema penal existe para manter a opressão de classe”. Os militantes, diz ele, “fundamentam seus argumentos no fato de que a maioria das pessoas presas são pobres. Eles esquecem de algo elementar: os maiores protegidos do sistema penal são os mais pobres, porque eles são vítimas da maior parte dos crimes. Quando você desmantela o sistema penal, você acaba vitimando mais os pobres, que são mais vulneráveis”.

Décadas de história

O movimento do abolicionismo penal surgiu em meados do século 20, na Escandinávia, e se espalhou pelo Ocidente na década de 1960. Em 1975, o filósofo francês Michel Foucault lançou o livro "Vigiar e Punir", obra de referência para o movimento desde então. Para o pesquisador, o sistema penitenciário controla não só o corpo, mas também a alma do detento.

“A vida é então repartida de acordo com um horário absolutamente estrito, sob uma vigilância ininterrupta: cada instante do dia é destinado a alguma coisa, prescreve-se um tipo de atividade e implica obrigações e proibições”, ele escreveu, fazendo referência a um dos primeiros presídios da era moderna, a prisão de Walnut Street, na Filadélfia, inaugurada em 1790.

Muitos dos principais acadêmicos que defendem a abolição penal são noruegueses, como Thomas Mathiesen e Nils Christie. É comum encontrar, entre os defensores do movimento, pensadores anarquistas, marxistas e cristãos. No Brasil, essa linha de pensamento ganhou força a partir da década de 90.

Um dos expoentes do abolicionismo penal é a professora e ativista americana Angela Davis, de 76 anos, conhecida pelo histórico de militância no grupo Panteras Negras e no partido comunista americano. Em seu livro "Estarão as prisões obsoletas?", publicado no Brasil em 2018, ela afirma: “Na maior parte do mundo, é tido como evidente que uma pessoa condenada por um crime seja mandada para a prisão”, que é “encarada como um aspecto inevitável e permanente de nossa vida social”.

Angela Davis continua: “Na maioria dos círculos, a abolição das prisões é simplesmente impensável e implausível. Aqueles que defendem o fim das prisões são rejeitados como idealistas e utópicos cujas ideias são, na melhor das hipóteses, pouco realistas e impraticáveis e, na pior delas, ilusórias e tolas”.

Solução racional

Vera Malaguti afirma que a prisão, da forma como é conhecida hoje começou a ser lentamente desenvolvida na Europa medieval. Antes disso, e em outros locais, era mais comum que a comunidade elegesse um conselho de sábios para resolver os conflitos. “Até então, os dois lados de um dilema solucionavam seus problemas em conjunto. Foi quando surgiu a figura do promotor, que centraliza a solução e tira das partes o controle sobre a negociação”.

Angela Davis lembra em seu livro que o sistema penitenciário moderno, que se espalhou pelo mundo a partir do século 18, surgiu como uma alternativa mais racional do que as punições aplicadas à época. Foi quando permanecer detido se tornou uma punição em si; antes, a prisão (que já existia desde a Antiguidade) servia basicamente para manter o investigado até que o julgamento terminasse. “O encarceramento em uma penitenciária era considerado algo humano — ou pelo menos muito mais humano do que as punições corporais e capitais herdadas da Inglaterra e de outros países europeus”, afirma a pesquisadora americana em seu livro.

A pena de morte era comum, e costumava ser antecedida por torturas, muitas públicas, para dar o exemplo para as demais pessoas – era comum então o uso de troncos e pelourinhos, açoitamentos, marcação com ferro quente e amputações. Outras penas da época, lembra a ativista, incluíam “banimento, o trabalho forçado em galés, o degredo e o confisco das propriedades do acusado”. A Inglaterra, por exemplo, só aboliu o hábito de marcar presos com ferro quente em 1832.

Para os abolicionistas penais, as prisões não recuperam presos, e ainda permitem que grupos criminosos surjam e se organizem. Além disso, dizem eles, doentes mentais são com frequência detidos, assim como negros, pobres e pessoas sem acesso a bons advogados.

“O sistema penal se mostra incapaz estruturalmente de cumprir com as funções que legitimam a sua própria existência”, dizem Isabel Cristina Martins Silva e Leticia Blank Netto. “A sua função real, ao invés de prevenir e combater a criminalidade, realizar a proteção de bens jurídicos e garantir a segurança pública da sociedade, é de construir uma criminalidade seletiva através de uma ‘fábrica de criminosos’, criminalizando as classes sociais periféricas e atuando ativamente na reprodução de desigualdades sociais”.

Já para o especialista em teoria da pena, “existiu, se fato, sociedade sem prisão, mas nunca existiu sociedade sem pena. Uma sociedade sem prisão é uma sociedade com apedrejamento, galés, degredo, fogueira. A prisão é um passo civilizatório importantíssimo”.

Penas alternativas

Mas qual é a alternativa à prisão? No lugar das cadeias lotadas, dizem esses pesquisadores, poderia haver penas terapêuticas, educativas, ou de compensação financeira, ou mesmo de conciliação entre as partes, que seriam estimuladas a dialogar em busca de soluções comuns, em vez de delegar essa tarefa ao Estado.

“A teoria abolicionista”, afirmam as pesquisadoras do CEMPRE, “apresenta como métodos alternativos ao sistema penal a descriminalização legal e judicial, a despenalização de condutas, a transferência dos conflitos do âmbito penal para a esfera civil e administrativa, a utilização de métodos de solução de conflitos – como a mediação e conciliação penal – e também através de meios pedagógicos e indenizatórios de reparação”.

Para Vera Malaguti, um primeiro caminho é reduzir a quantidade de pessoas encarceradas, estabelecendo penas alternativas para crimes não violentos – dos 773.151 presos do Brasil segundo dados de 2019 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), 33% são provisórios, 39,4% cometeram crimes relacionados à lei de drogas e 11,31% são presos por crimes contra a pessoa, como homicídio, aborto, ameaça, violência doméstica e auxílio a suicídio. “Por que crimes não violentos precisam de cadeia?”, pergunta ela.

Outro ponto em comum para diferentes linhas de abolicionismo penal é a descriminalização do tráfico de drogas. “A política criminal de drogas já tem quase 50 anos, prende, mata, tortura, e não resolveu nada, nem para a comercialização, nem para a produção nem para o consumo das drogas consideradas ilícitas”, afirma a professora da UERJ.

Para Carolina Soares Nunes Pereira, “com o abolicionismo penal, não existirão crimes, porque quem define o crime é o Estado. Mas numa sociedade pós punitivismo, quem cometer violências será responsabilizado caso a caso, através das decisões tomadas em comunidade por aqueles afetados e aqueles que convivem com os envolvidos”.

Críticas

O abolicionismo penal é contraposto ao garantismo penal, liderado pelo teórico italiano Luigi Ferrajoli, para quem a ideia de extinguir as prisões é ingênua e impraticável. “Por assumir como premissa a absoluta necessidade de um mínimo de sistema penal, o pensamento de Ferrajoli contradiz alguns dos postulados fundamentais da perspectiva abolicionista”, descreve a professora e doutoranda em Direito Tatiana Badaró no artigo Garantistas Vs. Abolicionistas.

Para o autor italiano, prossegue a pesquisadora, “o Direito penal mínimo estaria legitimado pela necessidade de proteger, a um só tempo, as garantias dos ‘desviantes’ e ‘não desviantes’”. Além disso, “O modelo de autorregulação social espontânea, proposto pelas doutrinas abolicionistas, é pensado para uma sociedade perfeita e utópica e, portanto, carente de embasamento científico”.

Eliminar as cadeias não seria, de fato, utópico? Vera Malaguti responde: “Utópica é a prisão, que nunca cumpriu nenhuma de suas promessas”.

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