Entre 1901 e 2023, 965 pessoas e 27 organizações diferentes foram agraciadas com o Prêmio Nobel. Deste total, apenas 16 eram muçulmanos, sendo que nove receberam o Nobel da Paz e três, de Literatura. Apenas quatro foram selecionados por sua atuação em ciências. A disparidade é enorme, quando se lembra que, atualmente, 1,8 bilhão da população global, ou 24,1% do total, segue a religião fundada pelo profeta Maomé (571-632).
Nem sempre foi assim. Entre os séculos 8 e 13, a medicina, a matemática, a geografia e a astronomia, entre outras áreas, tinham cientistas muçulmanos entre seus expoentes – eles deixaram um legado definitivo, que inclui, por exemplo, os numerais arábicos, introduzidos na Europa por Abu Ja'far Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi (780-850).
Os muçulmanos acabaram perdendo a relevância na produção cientifica. Em parte, porque adotaram, com o passar do tempo, uma interpretação radical da religião, que restringia o trabalho e a pesquisa. Poderia ter sido diferente. No período tumultuado que se seguiu à morte de Maomé, antes da consolidação da divisão dos seguidores entre xiitas e sunitas, houve tentativas de implementar visões diversas da fé. Visões que valorizavam a razão, em equilíbrio com a fé.
Uma das escolas mais influentes, inspiradas por Wāṣil ibn ʿAṭāʾ (700-748), ficou conhecida como Mu’tazila. Ela buscava ler o Alcorão à luz da razão, incorporando séculos de filosofia e teologia que remontavam aos gregos antigos. “Ainda no século VIII, fizeram-se vários esforços no islã para incorporar ideias da filosofia grega, a fim de tornar a religião menos abrangente e inflexível em suas exigências aos fiéis”, relata a escritora e ativista Ayaan Hirsi Ali no livro 'Herege: Por que o islã precisa de uma reforma imediata'.
“Do século 8 ao 10, por exemplo, floresceu em Bagdá a escola de pensamento islâmico Mu’tazila, que proclamava a dignidade da razão e propunha que a doutrina islâmica fosse aberta à interpretação contemporânea”, prossegue o relato. “Mas ela foi fragorosamente derrotada pela escola Ash’ari, liderada pelo imame Ash’ari, um ex-adepto da Mu’tazila que argumentou, com o costumeiro ardor dos convertidos, que o Alcorão era a palavra de Deus perfeita e imutável. O triunfo da escola Ash’ari consolidou a crença de que, com a mensagem de Maomé, a ‘história chegou ao fim’. E esse foi o ponto final para a maioria dos debates no Islã até nossa época”.
Razão aliada à fé
A escola de pensamento surgiu a partir de debates teológicos que marcaram os primeiros séculos da nova religião. Debates a respeito das consequências dos atos, por exemplo, colocavam em conflito aqueles que defendiam que um muçulmano que pecasse excessivamente não podia ser considerado fiel contra quem argumentava que era possível ter uma postura falha e ainda assim seguidor respeitoso da fé.
A escola Mu’tazila defendia, entre outros conceitos, que os humanos devem ter livre arbítrio total, já que Alá, que é perfeitamente sábio e bom, não pode causar o mal, mas ainda assim o mal existe. Ele permite o sofrimento humano para testar a fé das pessoas, o que comprovaria a liberdade das ação delas.
Além disso, as ações morais podem ser boas ou más, e os humanos deveriam usar a razão para descobrir qual é qual. Por fim, Alá pode conceder recompensas ou punições justas, precisamente porque suas criaturas tiveram livre arbítrio para fazer escolhas.
Na base dessa linha de pensamento, portanto, estava a razão, que apoiava a fé. Mais do que isso: a escola permitia que conhecimentos contemporâneos atualizados pudessem interagir com os preceitos e as práticas da religião – uma noção atualmente impensável para os muçulmanos em geral, e que afasta os seguidores do que há de mais avançado em ciência e tecnologia.
Apoia à diplomacia
“A partir do século 7, por muitas décadas, muitas discussões teológicas giravam em torno de questões a respeito da justiça divina e da responsabilidade humana, como a dúvida se o mal foi criado por Alá e o debate entre predestinação e livre arbítrio”, relata Matthew Martin na obra 'Mu'tazila – use of reason in early Islamic theology' ('Mu’tazila – uso da razão na teologia das origens do Islã', sem tradução em português).
“Os teólogos da escola Mu’tazila libertavam Alá de qualquer responsabilidade sobre as injustiças do mundo. Argumentavam que eram as ações humanas, sem nenhuma razão divina, que davam origem ao mal que habita entre as pessoas.”
Era uma visão contestada pela maioria, afirma Martin. “Quanto mais os Mu’tazila utilizavam a razão para argumentar, mais eram rejeitados por tradicionalistas que usavam o argumento de que detinham a autoridade religiosa concedida por Alá para determinar o que podia ou não ser aceito nas comunidades muçulmanas.”
O próprio nome da linha de pensamento tem origem na expressão em árabe para “retirar-se”, já que seus defensores eram considerados traidores dos movimentos de defesa mais dura da fé. Enquanto permaneceram ativos, por outro lado, eles assumiram a defesa de uma abordagem menos agressiva e mais diplomática para os muçulmanos. “Os Mu'tazila tornaram-se uma força de defesa significativa da revelação islâmica nas primeiras terras ocupadas, porque eram capazes de usar o raciocínio em vários debates teológicos com cristãos e outras religiões”, argumenta Martin em seu livro.
Tentativas de retomada
A escola foi esquecida. Apenas mais recentemente, a partir do século 19, algumas tentativas pontuais de retomada surgiram, sem grande sucesso.
Um dos líderes inspirados pela antiga escola foi Jamal al-Din al-Afghani (1838-1897), que passou a vida adulta viajando pelos países muçulmanos em busca de reduzir diferenças, promover o diálogo e aproximar diferentes correntes de pensamento – a bem da verdade, com o objetivo final de derrotar o Ocidente, especialmente o Império Britânico.
Um de seus seguidores, Muhammad Abduh (1849–1905), fundou o chamado Modernismo Islâmico, que defendeu em suas aulas na Universidade Al-Azhar, no Egito, e inspirou uma série de outros filósofos e pensadores islâmicos reformistas.
Também o filósofo palestino Ismaʻīl Rājī al-Fārūqī (1921-1986), com vasta atividade acadêmica no Canadá e nos Estados Unidos, era abertamente influenciado pela escola. Morreria assassinado a facadas em sua casa na Pensilvânia, num ataque com motivações religiosas, que vitimou sua esposa e feriu sua filha grávida.
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