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No Brasil e no mundo, corruptos “profissionais” e oportunistas têm usado as medidas de enfrentamento à pandemia como uma fonte de renda ilícita.
No Brasil e no mundo, corruptos “profissionais” e oportunistas têm usado as medidas de enfrentamento à pandemia como uma fonte de renda ilícita.| Foto: Pixabay

Sete de maio. No dia em que o Brasil se aproximava da marca de dez mil mortos em decorrência do coronavírus, uma operação do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Civil do Rio de Janeiro prendia Gabriell Neves, ex-subsecretário estadual de Saúde, e mais três pessoas. O grupo é acusado de ter obtido vantagens na compra emergencial de respiradores para pacientes de Covid-19 no estado. Uma semana mais tarde, ainda no Rio, uma nova operação prende um ex-deputado e mais três pessoas por fraudes em compras emergenciais destinadas a enfrentar a pandemia. São Paulo, Santa Catarina e Minas Gerais são mais alguns estados onde denúncias envolvendo o mau uso do dinheiro destinado à saúde estão sendo investigadas.

Mais recentemente, no dia 3 de junho, o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou um relatório indicando que mais de 8 milhões de brasileiros teriam recebido indevidamente o auxílio emergencial de R$ 600, destinado a trabalhadores informais e desempregados que ficaram desamparados durante a pandemia. São funcionários públicos, militares, jovens de classe média alta e residentes no exterior, além de fraudadores, que receberam o dinheiro mesmo não tendo direito ao benefício.

Essas são apenas algumas situações que ilustram um problema recorrente no Brasil. Alvo de discursos eleitorais, manifestações populares, reações indignadas em redes sociais e iniciativas de enfrentamento por grupos organizados, a corrupção não dá trégua nem em situações de calamidade. Enquanto o mundo enfrenta uma pandemia que já causou centenas de milhares de mortes, além de prejuízos em praticamente todos os setores da economia, há aqueles que enxergam na tragédia a oportunidade de tirar vantagem indevidamente. Não importa se para embolsar R$600 ou alguns milhões de reais.

Personalidade x contexto

João Gabriel Modesto é professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), do programa de mestrado em Psicologia do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e diretor da Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP). Autor de pesquisas sobre corrupção, ele acredita que é preciso considerar tanto as particularidades de cada um quanto aspectos contextuais para analisar esse tipo de comportamento. “Tenho desenvolvido alguns projetos que têm buscado compreender se pessoas com certos tipos de personalidade são mais propensas a agir de maneira corrupta e os resultados preliminares têm apontado que sim. Pessoas com um perfil estrategista, maquiavélico, por exemplo, têm uma tendência maior à corrupção. No entanto, falar apenas de características individuais é simplista e precisamos considerar o contexto”, destaca.

Esse contexto, no caso, é o de um país onde, muitas vezes, a corrupção é associada a um fator cultural. “No Brasil, fala-se muito sobre a ‘Lei de Gerson’, de que sempre que você puder ter vantagem, você deve ter. Ou seja, a corrupção parece se tornar normativa: você passa a acreditar que a maioria das pessoas agiria de forma corrupta, se tivesse a chance. Ora, se você acha que as pessoas estão tirando proveito e conseguindo o auxílio emergencial irregularmente, existem maiores chances de você ‘se autorizar’ a agir assim também. Mas lembre que a relação não é determinista e linear: fatores do contexto interagem com características individuais, o que tende a deixar bem complexa a compreensão do fenômeno”, observa Modesto.

Afrouxamento das regras

Criado em 2015, o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac) atua em diversas frentes de combate à corrupção. No fim de maio, a organização lançou o Corruptovírus, uma plataforma na internet para receber exclusivamente denúncias relacionadas à pandemia de Covid-19. Qualquer cidadão pode entrar no site, fazer a denúncia de forma anônima e anexar imagens e documentos, se houver. Membros do instituto fazem uma primeira análise e encaminham a denúncia ao Ministério Público para investigação.

Presidente do Inac, o procurador de Justiça Roberto Livianu explica que a ideia do Corruptovírus surgiu em razão dos vários casos de corrupção noticiados durante o período de pandemia, como superfaturamento de respiradores e falsificação de álcool em gel. “A pandemia trouxe sérios problemas na saúde, na economia e, junto com isso, aumentou os riscos de prática de corrupção, tendo em vista que houve um afrouxamento das regras para contratação de bens e serviços públicos. Diante disso, entendemos que era importante oferecermos aos cidadãos mais uma porta para denunciarem práticas irregulares”, diz.

Uma problemática global

Usar a pandemia como oportunidade para praticar a corrupção não é exclusividade do Brasil, longe disso. Na Itália, onde ocorreram mais de 33 mil mortes pela doença, 10 pessoas foram presas por comandar um esquema que desviou cerca de 1,8 milhão de euros em licitações para a saúde. Na Bolívia, o então ministro da Saúde, Marcelo Navajas, foi preso no fim de abril por suspeita de irregularidades na compra de respiradores. O vice-presidente do Panamá, Juan Carlos Muñoz, renunciou ao cargo após ser alvo de investigação por tentar comprar respiradores supostamente superfaturados.

Segundo a organização Transparência Internacional, a corrupção na área de saúde causa perdas globais superiores a US$ 500 milhões todos os anos. Em um período de pandemia, esse montante tende a ser ainda maior. “Infelizmente, a corrupção prospera em tempos de crise, principalmente quando as instituições e a fiscalização são fracas e a confiança da população é baixa. Aprendemos com as emergências de saúde globais anteriores, como o Ebola e a H1N1, que mesmo em tempos de crise, há quem pretenda lucrar com o infortúnio alheio”, dizia a entidade em artigo publicado em março.

O Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes também alerta para o risco de a corrupção enfraquecer e prejudicar medidas de combate ao coronavírus. Para isso, emitiu uma série de recomendações aos países-membros, o que inclui transparência das ações, identificação dos riscos, clareza na comunicação e uso eficiente da tecnologia. “A corrupção prospera em tempos de caos. Por isso, é imperativo que os países desenvolvam e atualizem regularmente planos abrangentes de respostas a emergências – baseados em modelos científicos e econômicos”, recomenda o órgão.

Honestidade como exemplo

Combater a corrupção e fazer com que se tornem cada vez menos frequentes casos como os noticiados nesse período de pandemia não é responsabilidade apenas do poder público. Para Roberto Livianu, do Instituto Não Aceito Corrupção, não existe uma “fórmula mágica” ou uma única ação solucionadora. “Essa luta depende de todo um conjunto de fatores, mas o principal é que a sociedade tenha uma atitude voltada para isso. Se ela permanecer indiferente, são poucas as chances de mudança. O grande indutor é a cobrança da sociedade sobre os seus representantes”, afirma. Para isso, defende que os valores humanos façam parte do processo educacional, tanto nas escolas como dentro de casa.

Para o professor João Gabriel Modesto, combater a corrupção não é tarefa fácil, mas uma das alternativas é justamente apostar em uma “vacina”, promovendo o pensamento ético desde cedo, com ações nas escolas. “Além da aposta nesta ‘vacina’, é preciso que o poder público, de fato, julgue e estabeleça as sanções previstas em lei para quem age de maneira corrupta. Isso pode reduzir a percepção que a corrupção compensa no Brasil e, consequentemente, reduzir a probabilidade das pessoas agirem de maneira corrupta”, ressalta.

É importante observar, contudo, que a pandemia do coronavírus não evidenciou apenas casos de corrupção, mas também muitos exemplos de solidariedade e altruísmo. Pessoas, empresas e comunidades têm promovido uma série de iniciativas para ajudar populações carentes e segmentos afetados pela pandemia.

Na opinião de Modesto, isso também pode servir como um antídoto à corrupção. “Precisamos divulgar os casos de solidariedade e de honestidade. As pessoas são influenciadas pela maneira que acham que outras pessoas se comportam. Se aumentarmos a sensação de que a solidariedade e a honestidade são sim práticas comuns no país, isso pode servir como uma ‘corrente do bem’, em que mais pessoas acabam agindo desse modo. E essa é a realidade: a maioria dos brasileiros é honesta e solidária.”

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