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Muitas pessoas — especialmente os jovens — anseiam pela caritas in veritate, expressão em latim que significa “caridade na verdade”. Ao longo de seu pontificado, o Papa Francisco procurou ensinar esse princípio por meio de temas como o acompanhamento próximo do próximo, a atenção às circunstâncias concretas em que os seres humanos se encontram e o testemunho constante da infinita misericórdia de Deus.
Nota do Editor: Este ensaio integra uma série de reflexões publicadas pelo portal norte-americano Public Discourse sobre o legado do Papa Francisco e o futuro da Igreja Católica.
Foi um presente extraordinário testemunhar, ao longo de doze anos, a dedicação incansável do Papa Francisco aos mais necessitados — pobres, doentes, rejeitados e todos os que sofrem no corpo ou no espírito. Após sua morte, me vi refletindo: com que frequência, hoje, Deus abençoa seu povo com um pastor que, mesmo enfrentando sérios problemas de saúde, dedica tanta energia e carinho a todos que recorrem a ele?
Não faço ideia de como um prelado pode se preparar para liderar uma instituição tão vasta quanto a Igreja Católica, num mundo cada vez mais complexo e tumultuado. Buenos Aires, onde Jorge Mario Bergoglio foi arcebispo antes de se tornar papa, não é uma cidade fácil para se exercer o episcopado. Quando perguntado por que nunca retornou à Argentina após a eleição, ele costumava brincar: “Passei 76 anos na Argentina. Já chega, não é?”
Ainda assim, aquele era seu lar. E, ao tornar-se bispo de Roma, encontrou um cenário muito distinto — tanto culturalmente quanto nos desafios específicos que a Igreja enfrentava ali. Que cruz pesada deve ter sido para ele passar, quase repentinamente, de um bispo que andava de metrô e estava prestes a se aposentar a líder da Igreja universal, conduzindo-a em meio a escândalos de abuso sexual e a uma grave crise financeira no Vaticano.
Além das complexidades administrativas, os papas de nosso tempo enfrentam o desafio constante de responder às feridas do mundo moderno — ou, como dizia Francisco, de “sentir o cheiro das ovelhas” — sem se deixar absorver por ele. Sempre admirei seu esforço para combater o clericalismo e valorizar o papel dos leigos na vida e na missão da Igreja.
De um lado, os sacerdotes devem confiar aos leigos as responsabilidades temporais que lhes são próprias; de outro, os leigos também devem estar dispostos a colaborar com o clero em assuntos de natureza pastoral e eclesial. Harmonizar esses âmbitos exige sabedoria — e é ainda mais difícil quando se trata de formar lideranças sólidas em uma organização tão ampla quanto a Igreja.
Francisco também dedicou boa parte de seu pontificado à promoção de uma “cultura do amor com base na verdade”. Trata-se de um esforço particularmente desafiador em uma época que pouco compreende o que é o amor autêntico, reduzido muitas vezes a um produto de consumo. Mas a sede por caritas in veritate permanece viva, sobretudo entre os jovens. O papa buscava saciá-la ao ensinar que devemos estar próximos dos outros, reconhecer as realidades concretas e oferecer, sempre, o testemunho da misericórdia divina.
Aprendendo a encontrar amigos em lugares inesperados
A morte do papa é uma oportunidade para refletirmos sobre as lições que nos deixou — especialmente sobre como testemunhar o amor e a verdade em nosso tempo. Que caminho seguirão a Igreja e todas as pessoas de boa vontade?
Seguindo seu exemplo, devemos nos perguntar como Deus nos chama, enquanto homens e mulheres comuns, a nos envolvermos com um mundo marcado pela desorientação e pela busca por sentido. Isso é particularmente urgente para pessoas como eu, que cresceram em circunstâncias diferentes, com mais apoio do que muitos jovens têm hoje.
Tive o privilégio de ser criado por pais profundamente generosos: um pai trabalhador, que reverenciava minha mãe, e uma mãe amorosa, piedosa, dedicada a mim e aos meus seis irmãos. Nem tudo foi fácil. Fui criado em uma pequena e pobre cidade no deserto de Sonora, no México — região que hoje é dominada pelo cartel de drogas de Caborca.
Ainda assim, minha infância foi muito feliz. Estudei, obtive títulos de pós-graduação, mudei-me para os Estados Unidos e, graças à intervenção de um amigo e de um dos meus irmãos, fui salvo de seguir por um caminho errado. Encontrei então o caminho para o qual Deus me chamava, no Opus Dei.
O Opus Dei — instituição da Igreja Católica dedicada à busca da santidade por meio do trabalho e da vida cotidiana — ensina que é possível encontrar Deus onde Ele parece mais ausente. O Papa Francisco expressou esse ideal com clareza em uma audiência de que participei, em novembro de 2014:
“Quando o Senhor nos convida à santidade, não é a algo pesado, triste. Muito pelo contrário! É um convite a compartilhar sua alegria. […] Isso começa com pequenas coisas do cotidiano. Por exemplo, recusar-se a fofocar no mercado, ouvir com atenção o próprio filho após um dia cansativo. São pequenos passos em direção à santidade.”
Com o tempo, compreendi que um dos ambientes onde mais se precisava de ajuda para reencontrar a verdade de Deus era, paradoxalmente, o meio universitário. Por isso, fui para Princeton, em Nova Jersey, onde ajudei a fundar o Instituto Witherspoon e a Fundação para a Excelência no Ensino Superior (Foundation for Excellence in Higher Education – FEHE). Ambos buscam incentivar estudantes e professores a redescobrirem a vocação original do ensino superior: a busca da verdade — e, por meio dela, encontrar seu Autor.
Nesse processo, aprendi uma verdade que o Papa Francisco repetiu com frequência: mesmo quem parece distante de Deus pode nos ensinar muito. Um desses mestres foi meu amigo Robert "Bob" Hollander, professor da Universidade de Princeton. Conheci Bob nas quadras de tênis e nossas conversas pós-jogo eram sempre ricas.
Um dia, ele me disse que era ateu. Para o cristão fervoroso que eu era, aquilo foi um choque. Pensei: “Será que vale a pena me relacionar com alguém que não crê em Deus?”. Mas superei esse impulso e, anos depois, vi como aquela amizade foi decisiva.
Bob me deu conselhos fundamentais em momentos-chave, e foi por sua ajuda que conseguimos fundar iniciativas como o Witherspoon e a FEHE. Ele me ensinou sobre a amizade — e me aproximou de Deus.
Certo dia, li que a Universidade de Princeton queria ampliar seus programas em humanidades. Embora eu fosse engenheiro, e não especialista em humanidades, já tinha ampla experiência em captação de recursos. Sugeri a Bob criar uma bolsa de pós-doutorado. Ele organizou um almoço com líderes do Conselho de Humanidades da universidade, e juntos apresentamos a ideia.
Apesar de meu envolvimento com o Opus Dei, frequentemente tachado de “ultraconservador”, fui bem recebido. A bolsa foi criada e, mais tarde, evoluiu para a Sociedade de Fellows de Princeton — hoje uma das mais prestigiadas iniciativas da academia norte-americana.
Tempos depois, perguntei a Bob por que minha proposta fora aceita. Ele respondeu, com humor: “Luis, você não é uma ameaça aqui. Você é mexicano, engenheiro e não estudou em Princeton”. Rimos muito. Mas aquela experiência me revelou uma verdade que o Papa Francisco tanto enfatizava: todos têm sede da verdade — e, se a buscamos com alegria, seremos reconhecidos como amigos, mesmo por quem discorda de nós.
A partir daí, fundamos o Instituto Witherspoon (2003) e, em seguida, a FEHE (2013), com o objetivo de apoiar pesquisas e projetos voltados à busca pela verdade — especialmente na área da estrutura familiar tradicional, com base em dados das ciências sociais. Um exemplo é o estudo de 2012 do sociólogo Mark Regnerus, que, mesmo enfrentando duras críticas ideológicas, permanece válido e relevante.
Entre os projetos mais gratificantes de que participei está a Iniciativa Cívica de Stanford (Stanford Civic Initiative – SCI), criada em parceria com o professor Josiah Ober. A amizade que construí com ele me trouxe uma satisfação comparável à que tive com Bob.
Nada disso teria sido possível sem minha amizade com Bob. Ele me deu conselhos práticos e me ensinou que até quem parece distante de Deus carrega a dignidade de ter sido feito à sua imagem. Como afirmou o falecido padre Richard John Neuhaus:
“Ansiamos pelo paraíso. […] Esse anseio torna o amor e a amizade possíveis — e, ao mesmo tempo, insatisfatórios. […] É uma insatisfação sagrada. Não devemos reprimi-la, mas reconhecê-la como semente de uma promessa.”
A busca pela verdade pode ser o fundamento de uma amizade intelectual — como aquela que tive com Bob. Essa experiência me ajudou a crescer, a me tornar mais humano. E acredito que também o ajudou. Talvez, de algum modo misterioso, nossas conversas o tenham conduzido, no fim da vida, ao encontro com Deus.
Elementos fundamentais para o engajamento cívico em um mundo secular
Parece-me que o Papa Francisco tentou, ao longo de seu pontificado, incitar os cristãos a encontrarem o seu "Bob", que poderia estar por aí — alguém que, apesar de parecer distante de Deus, ainda busca a verdade e a amizade, tem muita verdade a transmitir e muito bem a fazer no mundo, algo que não conseguiria fazer sem a nossa ajuda. Bob me ensinou muito, mas duas coisas parecem especialmente dignas de nota, visto que também eram muito queridas ao papa. São o que chamo de alicerces para o engajamento cívico em nosso mundo secular.
A primeira é aquela que a Igreja proclamou na Dignitatis Humanae e reafirmou sob o Papa Francisco. Que toda pessoa humana, mesmo ateia como Bob, tem uma dignidade intrínseca, porque é um ser
"'dotado de razão e livre-arbítrio e, portanto, privilegiado para assumir responsabilidade pessoal'. Ao mesmo tempo, toda pessoa é 'impulsionada pela natureza' a buscar a verdade, e devemos nos esforçar para não deixar que as aparências nos distraiam dessa realidade mais profunda. E, no entanto, '[a] verdade não pode se impor exceto em virtude de sua própria verdade, pois entra na mente ao mesmo tempo silenciosamente e com poder'. Portanto, o homem não pode cumprir sua 'obrigação moral de buscar a verdade' a menos que seja livre, '[desfrutando de] imunidade à coerção externa, bem como de liberdade psicológica'."
Em outras palavras, o melhor contexto para levar os outros à verdade é precisamente por meio do tipo de amizade intelectual que Bob e eu tínhamos.
A segunda verdade é algo que aprendi por meio do meu trabalho com Witherspoon e FEHE (que foram inspirados pelo que Bob e eu alcançamos na Universidade de Princeton): a saber, quão vital a estrutura familiar tradicional homem-mulher é para a sociedade.
Também percebi a importância da amizade intelectual para a defesa da família. Por um lado, a melhor maneira de defender a família é apelando para verdades que todas as pessoas possam entender — neste caso, as verdades das ciências sociais — e devemos ter confiança de que as pessoas responderão à verdade.
Ao mesmo tempo, essa verdade precisa ser bem apresentada, sendo moldada com amor. Precisamos ser pacientes com aqueles que discordam sobre verdades fundamentais sobre casamento e família, e devemos nos esforçar para nos expressar de maneiras que os conquistem.
Precisamos mostrar a eles que nos importamos com essas verdades não para nos impor aos outros, mas para servir aos outros por amor. Devemos mostrar aos nossos interlocutores que os amamos e respeitamos porque eles, como todas as pessoas, são filhos de Deus, assim como eu tentei atrair Bob para Deus acima de tudo sendo seu amigo.
Verdade e caridade devem andar de mãos dadas. Não se pode amar os outros a menos que esse amor seja fundamentado na verdade, assim como o amor não pode constituir uma família a menos que seja fundamentado nas verdades da natureza humana.
Ao mesmo tempo, quanto mais profundamente se compreende a verdade, mais se ama a ela e às outras pessoas — que são feitas para a verdade — e mais facilmente se pode expressar a verdade de forma cativante, devido à confiança em sua verdade.
Não basta ter a verdade e ser capaz de argumentar logicamente a favor dela, embora tudo isso seja necessário. Como nos lembrou o Papa Francisco, também é de vital importância ensinar a verdade pelo exemplo do amor ao próximo — "acompanhando-o" na difícil jornada da vida, como o papa gostava de dizer.
Se quisermos avançar em direção a uma sociedade mais justa, precisamos aprender a acompanhar uns aos outros no caminho difícil, muitas vezes surpreendente e profundamente gratificante em direção à verdade.
Por sua disposição em responder ao chamado de Deus e da Igreja, e por seu serviço fiel até o fim, sou grato ao Papa Francisco.
Luis Tellez é presidente do Instituto Witherspoon. Ele é o autor de "Integrating God, Love, and Law Into Your Life" [Integrando Deus, Amor e Lei em Sua Vida].
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©2025 The Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês: Pope Francis and Accompanying Each Other Along the Path to Truth