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Em vez de enfatizar a Igreja como uma realidade sacramental marcada pela presença de Deus, ou como um povo peregrino em marcha pela história, o Papa Francisco preferiu compará-la a um hospital de campanha, instalado em meio ao campo de batalha da vida contemporânea. Seu propósito: curar as feridas. Começar de baixo para cima. Encontrar os marginalizados. Acompanhar os que se sentem excluídos.
Nota do editor: Este ensaio faz parte de uma série de artigos publicados no site norte-americano Public Discourse sobre o pontificado do Papa Francisco, seu legado e o futuro da Igreja Católica.
Qual é a chave de leitura do pontificado de Francisco?
O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard escreveu: “A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas deve ser vivida olhando-se para frente”. Para entender o Papa Francisco, talvez seja útil olhar para sua última encíclica, Dilexit Nos, publicada já no fim de seu pontificado. O documento recebeu pouca atenção da imprensa, da Igreja e até mesmo de muitos intelectuais católicos.
Em Dilexit Nos (“Ele nos amou”, em latim), o Papa concentra-se no “coração” — sobretudo na forma como a cultura contemporânea, com sua velocidade e superficialidade, fere silenciosamente os nossos afetos. Como antídoto, Francisco propõe a retomada de práticas da piedade popular, em especial a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. A graça de Deus, segundo ele, atua por meio dessas práticas, curando o coração humano e modelando-o na misericórdia e no amor.
Não era evidente, em 13 de março de 2013 — quando o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, da Companhia de Jesus (S.J.), foi anunciado como novo pontífice — que o coração seria o fio condutor de seu magistério. O que mais chamava a atenção naquele momento era seu estilo: vestes papais simples, orações familiares (um Pai-Nosso, uma Ave-Maria e um Glória ao Pai) e um ar de proximidade despretensiosa. Recusou-se a morar no Palácio Apostólico e preferiu o ônibus dos cardeais para voltar ao hotel onde estava hospedado. Sua mensagem inicial foi clara: “Viver com simplicidade”.
Um papa, muitos propósitos
Desde o início, ficou evidente que Francisco propunha uma visão distinta da Igreja. Em vez de um discurso teológico ou litúrgico tradicional, ele a descreveu como um hospital de campanha, com a missão urgente de cuidar dos feridos da vida. Seu olhar voltava-se, sobretudo, para os que estavam à margem.
Houve quem questionasse se suas mensagens eram propriamente cristãs. Seus principais documentos, como as encíclicas Laudato Si’ (sobre o cuidado com a casa comum) e Fratelli Tutti (sobre a fraternidade humana), eram dirigidos a “todas as pessoas de boa vontade” e muitas vezes pareciam escritos com o tom de relatórios de organismos internacionais voltados à justiça social. Neles, o papa denunciava males como o racismo, a pobreza, o egoísmo, o culto ao lucro e a lógica descartável da economia atual.
Mas análises mais aprofundadas do seu pontificado indicam influências mais profundas: São Francisco de Assis; o filósofo e teólogo ítalo-alemão Romano Guardini (tema da tese de doutorado inacabada de Bergoglio); e a “teologia do povo” — corrente teológica nascida na Argentina. Outros apontam a exortação apostólica Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho, de 2013) como o verdadeiro manifesto do seu papado, sobretudo o capítulo sobre o bem comum e a paz social. Tudo isso compõe o quadro mais amplo de sua atuação.
Corações recuperados e transformados
Qual é, então, o fio condutor entre essas diversas frentes? A resposta pode estar em Dilexit Nos.
Publicada menos de duas semanas antes das eleições presidenciais norte-americanas de 2024 — em meio à disputa entre Donald Trump e Kamala Harris, ao ruído das redes sociais e à repercussão de um discurso de cinco minutos de Beyoncé em apoio à candidata democrata —, a encíclica passou despercebida. Francisco morreria menos de seis meses depois.
Na encíclica, o papa retoma a devoção ao Sagrado Coração, uma prática antiga da espiritualidade jesuíta. Ele narra, por exemplo, uma memória de infância com sua avó, que lhe ensinou a fazer biscoitos chamados de “mentiras” — porque pareciam grandes, mas eram ocos por dentro. O paralelo com a cultura contemporânea é evidente: promissora por fora, mas vazia por dentro.
Francisco convida a um exame do coração humano: o coração partido, o coração vazio, o coração sem compaixão. E escreve: “Se desvalorizamos o coração, também desvalorizamos o que significa falar com o coração, agir com o coração, cultivar e curar o coração. Perdemos mensagens que a mente sozinha não pode comunicar. Perdemos a poesia dos encontros”.
A transformação do coração, para ele, passa por práticas específicas: mais contemplação, mais contato com a beleza, mais encontros concretos — como assar biscoitos com a receita da avó. Mas, sobretudo, a redescoberta da devoção ao Sagrado Coração: a adoração eucarística às quintas-feiras e a comunhão na primeira sexta-feira de cada mês.
Francisco também retoma o Documento de Aparecida (2007), resultado da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, que destaca a importância da religiosidade popular na América Latina. O texto descreve a fé do povo latino-americano como uma “espiritualidade encarnada” — uma forma simples, mas profunda, de buscar a Deus. O papa não endossa todos os trechos do documento, mas sugere que essa piedade popular pode ser um modelo de abertura à graça.
No encerramento de Dilexit Nos, Francisco reafirma que as encíclicas Laudato Si’ e Fratelli Tutti estão enraizadas no amor de Cristo: é a partir desse amor que se pode construir fraternidade, reconhecer a dignidade humana e cuidar da criação.
O pontificado do coração
O papa propõe uma mudança profunda: para acolher a graça divina, é preciso um novo tipo de coração — e esse novo coração se cultiva por meio de novas práticas. Não se trata apenas de ideias ou discursos: trata-se de viver de outro modo.
O convite é claro: preparar-se espiritualmente para o dia 27 de junho de 2025 — quando se completam 350 anos das aparições do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque — retomando práticas tradicionais de devoção.
O ensinamento de Dilexit Nos ilumina também os documentos anteriores do papa. Em sua primeira encíclica, Lumen Fidei (A luz da fé, 2013), lemos: “Na Bíblia, o coração é o núcleo da pessoa humana, onde todas as suas dimensões se encontram: corpo e espírito, interioridade e abertura ao outro, razão e afeto”.
Se alguns dizem que A alegria do Evangelho é a chave interpretativa de seu pontificado, basta lembrar a primeira frase do texto: “A alegria do Evangelho enche os corações de todos os que se encontram com Jesus”. Em outras palavras, trata-se de um coração que se alegra.
Mesmo para os que apontam São Francisco de Assis como modelo maior de inspiração do papa, a chave está no coração espiritual do santo. A Laudato Si’ começa com um hino franciscano e logo contrasta essa espiritualidade poética com a dureza do coração moderno.
No fundo, Laudato Si’ não é apenas um texto sobre ecologia. É um diagnóstico da crise do coração humano no mundo tecnocrático. No capítulo mais profundo da encíclica, Francisco se apoia em Guardini para descrever como o “paradigma tecnocrático” distorce nossos afetos e relações. Guardini escreveu: “Nada do que é verdadeiramente grande na vida humana nasce do intelecto; tudo nasce do coração e de seu amor”.
Assim como o pontificado de João Paulo II foi descrito como “o pontificado da pessoa”, proponho que o de Francisco seja lembrado como “o pontificado do coração”.
Gregory Beabout é titular da Cátedra Romano Guardini em Pensamento e Cultura Católica e professor de Filosofia na Universidade de St. Louis (EUA).
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©2025 The Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês: