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Paul Tillich tentou reinserir a teologia no debate contemporâneo, mas seu método acabou fazendo-a refém das pautas políticas e ideológicas de ocasião
Paul Tillich tentou reinserir a teologia no debate contemporâneo, mas seu método acabou fazendo-a refém das pautas políticas e ideológicas de ocasião| Foto: Reprodução Facebook

Paul Tillich é, sem nenhuma retórica, um dos teólogos mais influentes do século passado. O segundo que eu destacaria seria nada menos do que Joseph Ratzinger, o Papa Emérito Bento XVI, ambos alemães, ambos acadêmicos, ambos autores de livros elementares para a compreensão da teologia nos séculos XX e XXI. Um escolheu a teologia ortodoxa, Ratzinger. Todavia não entenda “ortodoxa” com algo engessado e sem inspiração, mas sim uma teologia de continuação e avanço que dialoga com os problemas contemporâneos sem se deixar capturar por eles. O outro nasceu e cresceu num ambiente familiar luterano conservador, contudo estava envolto por uma sociedade religiosa que descobriria aquilo que ficou marcado como “teologia liberal”, isto é, uma crítica cultural e filosófica aos pressupostos religiosos cristãos como um todo. Paul Tillich seria, talvez, o mais significativo mensageiro dessa vertente, e é sobre ele que falaremos.

Para bem desenhar a vida e crítica de Tillich, de modo que, ao final do ensaio, um todo coeso surja para o leitor, não seguirei uma planificação histórica como as biografias tendem a fazer. O aspecto a ser destacado serão as principais ideias, e contextos dessas ideias, que o teólogo alemão escudou durante sua trajetória.

Vida e ambiente

Paul Johannes Tillich nasceu em 20 de agosto de 1886, em Starzeddel, vilarejo da província de Brandemburgo na antiga Prússia ‒ atualmente a cidade se localiza em território polonês, na fronteira com a Alemanha. Sua infância, segundo seus escritos autobiográficos ‒  entre os quais se destacam What am I?: My earch for Absolutes, On the boundary: na autobiographical sketch e Autobiographical Reflections ‒, foi estável e confortável. A Prússia do final do século XIX era, de fato, relativamente estável e próspera, a atmosfera cultural e a efervescência filosófica de crítica cultural estavam em ascensão rápida naqueles cantos. Seu pai era um proeminente clérigo luterano da região. Assim, a sua infância foi naturalmente cercada pelos trabalhos pastorais do pai, o religiosismo da comunidade e os estudos bíblicos e correlatos aos quais um filho de pastor estava submetido.

O ambiente rural no qual vivia, além do contato com a sacralidade religiosa através do trabalho do pai, moldaram o jovem Paul Tillich desde cedo. Dois aspectos de sua teologia madura seriam o sagrado como espanto inicial que desperta o ser do homem à necessidade de Deus, aliado ao Ser que habita a realidade percebida e buscada pela razão. Outro aspecto que moveria as ideias de Tillich foi o romantismo filosófico que abarcava as ideias liberais daqueles dias. A crença de que a natureza é, em si mesma, uma espécie de força libertadora, uma necessidade que puxa o homem tal como a liberdade seduz um encarcerado, foi a premissa de muitos iluministas, de Rousseau a Diderot, mas também de homens como G. K. Chesterton e Hilaire Belloc, para uma visão existencialista da vida. Que fique claro, Chesterton e Belloc não influenciaram Tillich, mas a percepção de uma realidade rural idílica seria parte permanente de sua crítica existencialista à modernidade (que não tinha uma percepção estética e naturalista ante a vida), parecida com a crítica dos católicos acima citados.

Todavia, não devemos encontrar aqui um impulso de Tillich para a ortodoxia existencial. O romantismo dele será reafirmado não em um antimodernismo como o de Chesterton e Belloc, mas sim num sistema crítico da modernidade urbana e capitalista. O mesmo antimodernismo que habitou Karl Marx habitaria também o jovem Tillich e, não à toa, posteriormente, ele seria visto como um teólogo marxista ‒ ainda que revisionista das teses do pai do comunismo. O ambiente familiar restrito e regrado de Tillich contrastava com a liberdade filosófica que encontrava em seu pai, esse um leitor voraz dos filósofos modernos. Assim, estabeleceu-se desde cedo um campo de troca livre de ideias e o já costumeiro pressuposto teológico do protestantismo de crítica social.

Ante o ortodoxismo do pai, Tillich desenvolve um gosto prematuro por teologias e filosofias que traziam perspectivas diversas às visões oficiais nas quais foi criado. Alie-se isso ao fato de a estabilidade liberal da Prússia proporcionar um certo ócio produtivo para seus “construtores de culturas”, terreno onde criticar as bases da estabilidade governamental era quase um esporte, assim como o flerte com ideias subversivas se tornara um passatempo mesmo entre aqueles que viviam sob as regras mais limitantes e/ou ambientes economicamente confortáveis.

Esse foi o contexto que moldou as ideias posteriores de Paul Tillich, e, por mais que seja óbvio que as experiências, leituras e situações da juventude influenciem os pensadores, no caso dele, isso foi mais evidente do que em muitos outros pensadores da época. Até o final de sua vida, poderemos ver o jovem existencialista convicto do “espírito da humanidade”.

O jovem Tillich estudou filosofia e teologia na renomada universidade de Berlim e  Tübingen, conviveu e conheceu os teólogos Karl Barth e Rudolf Bultmann, além de Martin Heidegger, o existencialista ateu de grande influência naqueles dias. Tais personagem exerceriam enorme influência nas ideias existencialistas do próprio Paul, fazendo a sua filosofia talvez até mesmo mais preponderante do que sua teologia, num contexto mais panorâmico. Aliás, seu primeiro título de doutorado foi em filosofia, em 1909. Em 1912, obteve licenciatura para ministrar teologia, além de ter sido ordenado clérigo luterano. De 1914 a 1918, serviu como capelão voluntário durante a Primeira Guerra Mundial. Foi também em 1914 que se casou com a primeira esposa e, ao retornar da guerra, a encontrou grávida de um amigo, fato que levou ao término do relacionamento. Em 1924, ele se casa novamente, agora com Johanna Werner, que posteriormente adota o nome de Hannah Tallich.

Durante a segunda metade da década de 1920, ele foi professor em Halle, Marburg, Dresden, Leipzig e Frankfurt, nesta última, sucedeu o grande pensador Max Scheler. É aqui que sua vida acadêmica se mistura com a política em muitas situações, primeiro porque ele é um dos que participaram na criação da Escola de Frankfurt, sendo considerado um dos seus fundadores por alguns; e, por outros, alguém que auxiliou os fundadores. Mas, seja como for, ele com certeza estava alinhado ideologicamente ao socialismo dito “esclarecido” que aqueles alunos e professores professavam. Foi ele quem orientou a tese de doutorado de Theodor Adorno e auxiliou trabalhos de muitos outros personagens daquele grupo  marxista revisionista.

Ele fundou, por exemplo, um movimento filosófico-religioso denominado “socialismo religioso”, que nada mais é do que o próprio nome afirma, uma adequação teológica cristã às pautas socialistas. O movimento não foi adiante, apesar de sempre ser revisitado e restaurado por simpatizantes, entre eles os partidários da Teologia da Libertação. Por causa de suas manifestações contrárias ao nazismo e suas crenças confessas no socialismo, em 1934, teve que fugir para os Estados Unidos. Na ocasião suas correspondências e aulas passaram a ser vigiadas e cada dia mais o cerco nazista se fechava sobre o casal Tillich.

Na produção bibliográfica de sua teologia filosófica, destacam-se principalmente A coragem de ser, Teologia Sistemática, A Era Protestante, Die Sozialistische Entscheidung e The Interpretation of History [os títulos traduzidos têm edição brasileira]. Ao todo ele produziu mais de 30 livros e incontáveis ensaios, dissertações e artigos.

Nos Estados Unidos,  leciona, por exemplo, em Harvard, Universidade de Chicago e em seminários em Nova York. Lá ele fica até a morte, em 1965. E é também lá que produz a sua obra de maturidade e se estabelece como um teólogo liberal ‒ para essa vertente, ele se torna uma espécie de “teólogos dos teólogos”, dada a extensão de sua formação acadêmica. Foi em sua Teologia Sistemática, obra que lhe rendeu renome e grandeza acadêmica, que estabeleceu os pressupostos de sua teologia. Fincado no existencialismo prussiano de onde veio, e embevecido das teses socialistas revisitadas pelos acadêmicos de Berlim, ele estabelece o método da “correlação”,  segundo o qual a tese cristã sempre deve ser lida contextualizada ao momento do leitor. A teologia é, assim, uma espécie de atualizador dos Evangelhos e das doutrinas dali retiradas, a fim de encontrar no mundo a correlação significante da mensagem. Essa correlação, que pode facilmente ser enxergada como uma crítica constante aos textos bíblicos e às doutrinas cristãs ante a realidade, parece-se muito com a própria teoria crítica abarcada pela Escola de Frankfurt, que atualmente desembocou num relativismo impraticável, até mesmo para aqueles mais intelectualmente entusiasmados.

Principais ideias

A influência do método do materialismo histórico nas ideias de Tillich é autoevidente, ainda que seja efetivamente diversa do materialismo histórico em si.  Trata-se antes de uma releitura da tese hegeliana de dialética do Espírito, tal como já havia feito Karl Marx em suas teses filosóficas. Entretanto, apesar de manter o marxismo como uma das fontes intelectuais que nutriam suas teses teológicas e filosóficas com relação às críticas sociais, surpreendentemente o teólogo frustrou muitos socialistas que o cercavam quando admitiu haver um utopismo ingênuo que impregna o pensamento esquerdista. Ele afirma que: havendo invariavelmente a realidade do pecado e da sanha pelo poder na alma do homem, o Reino de Deus na terra nada mais é do que uma ilusão ingênua e impraticável, e acreditar nisso seria um suicídio metafísico. Ele faz tal crítica ao analisar o stalinismo e os discursos de seus defensores. É justamente aqui que há a diferença real entre a ontologia de Tillich e as teses da Teologia da Libertação.

Para Juan Luís Segundo, o padre jesuíta uruguaio considerado o pai da  Teologia da  Libertação, a metafísica do ser é uma prisão intelectual que não admite críticas e reformulações sociais profundas. Tillich, por sua via, apesar de abraçar parcialmente o materialismo histórico de Marx, não abre mão da ontologia como centro e pressuposto teológico de ação. O Ser em si mesmo, Deus, é a essência do ser do homem, e é daí que o homem retira seus parâmetros éticos. Assim sendo, a aproximação e influência de Tillich na Teologia da Libertação se dá pelo movimento de crítica desconstrutiva da teologia que ele abarca, assim como pelo resgate que teólogos da libertação constantemente fazem de aspectos das ideias de Tillich. Todavia, não podemos dizer que o alemão endossou ou nutriu diretamente a teologia heterodoxa latino-americana. Para uma análise mais profunda do tema, indico o artigo Método teológico da libertação e método da correlação, escrito por Paulo Ronaldo Braga Leal para a Revista Eletrônica Correllatio.

Podemos, no entanto, relacionar a teologia de Tillich com o problema do Reino de Deus e o Reino da História, como eles se contrastavam e se completavam. E aqui a teologia do alemão começa a ficar intrincada e suas teses um tanto quanto confusas. Para entender o cerne de suas ideias, é preciso antes manter o contexto do ambiente em que ele foi criado, a filosofia existencialista que ele assumiu como pressuposto e o método da correlação que abordou em sua produção acadêmica. Nesse sentido, é possível afirmar que Tillich foi um teólogo da cultura.Suas teses teológicas passavam necessariamente pela compreensão dos aspectos do cristianismo através da história que ele abarcava em suas análises. Aliás, indico fortemente o ótimo texto Teologia no Plural: Fragmentos biográficos de Paul Tillich, escrito por Claudio Oliveira Ribeiro para a já citada Revista Eletrônica Correllatio, para se compreender mais profundamente esses pressupostos biográficos e acadêmicos de Paul Tillich ‒ muito  deste ensaio foi edificado nesse bom artigo.

Podemos resumir que o contexto ‒ ainda que ele nunca tenha admitido cruamente isso ‒ é a baliza de sua teologia, e não o contrário. É a história ‒ no sentido hegeliano-marxista ‒ que determina o que a teologia pensa, e não a teologia que ilumina a história, como queriam os clássicos teólogos. Ele vai chamar isso de apologética, que, na teologia clássica, é uma defesa da doutrina ante os ataques ideológicos e teológicos à ortodoxia de uma fé. Mas, para Tillich, trata-se do ato de ressignificar a realidade contemporânea ante a fé cristã e suas bases. Ou seja, se seria um erro crasso definir as ideias de Paul como uma filosofia determinista, não é errado dizer que há um determinismo filosófico na sua teologia. O existencialismo revisto de sua teologia filosófica traz a história como uma variável imprescindível, deixando a metafísica e a teologia reféns de compreensões iluministas, métodos científicos e das pautas políticas do momento. É fato que Tillich tentou reinserir a teologia no debate contemporâneo, mas seu método acabou fazendo-a refém das pautas políticas e ideológicas de ocasião, como veremos mais adiante.

Quando debateu política e os aspectos do totalitarismo ideológico, estabeleceu um tripé filosófico, a heteronomia, autonomia e teonomia. Heteronomia seria a prática da política arbitrária focada na vontade e no poder do ditador ou ditadores; a autonomia é a exigência de liberdade que flui do povo a partir da vivência opressora ante a tirania; e a teonomia seria a única forma de coexistir na realidade, isto é, a existência pautada a partir da lei divina percebida no coração humano. Para Tillich, todavia, esse ciclo nem sempre flui para uma teonomia, antes pode se tornar um eterno passar de uma heteronomia > autonomia > heteronomia. Isto é, um totalitarismo que substitui outro, sendo a teonomia assim um avanço civilizacional, pois ela incute na cultura humana uma perspectiva de empatia, misericórdia, justiça e igualdade. Assim sendo, Tillich reestabelece Deus como o centro necessário para o cosmopolitismo contemporâneo. Seu Deus, entretanto, cada vez mais se afasta do personalismo cristão rumo a um teocentrismo abstrato e antirreligioso.

Podemos dizer, dessa maneira, que a substância teológica de Tillich é o existencialismo e o marxismo, o que fica claro em sua atuação acadêmica e militante. A crítica social marxista aliada a uma revista ontologia cristã formam as bases de sua compreensão de mundo. E, se o lermos com essa chave, entenderemos tanto a sua filosofia, sua crítica política e teologia social.

A teologia em Tillich assumiu uma função estética, pois, em seu cerne, havia uma crítica social, e não uma crítica salvífica escatológica. Para ele, as perguntas existenciais realmente importantes são aquelas suscitadas pela filosofia, e são tais perguntas que fazem a teologia avançar. Ou seja, um teólogo competente, em alguma medida, deve ser antes um filósofo por princípio. E ainda que ele dê o protagonismo final à teologia, pois é ela quem responderá as dúvidas existenciais levantadas pela filosofia, a teologia se torna para ele um acessório que só existe se provocada, não podendo ela própria provocar-se e buscar soluções. Isto é, a reflexão teológica se torna dependente de uma inquirição que se fundamenta ‒ em grande parte ‒ em problemas contemporâneos fabricados por acadêmicos.

Em suma, se a filosofia for militante e a teologia for dependente dela para responder às demandas intelectuais da contemporaneidade, só restará à teologia ser militante também. Por exemplo, imagine uma filosofia identitária que proponha à teologia uma reflexão sobre a teoria de gênero, cotas raciais e banheiro neutro. Se a teologia depende da filosofia para ser provocada, então a teologia só poderá responder àquilo que tal filosofia identitária já definiu como pressuposto para reflexão. Eis o limite de Tillich. Se a teologia não é autônoma para definir suas reflexões, ela para no que a filosofia diz ser digno de investigação.

Querendo ou não, a teologia progressista contemporânea tem em Tillich um de seus amparos mais caros, pois, quando ele definiu a história como elemento balizador do cristianismo e a filosofia como necessidade para a teologia, ele mundanizou a religião cristã, colocando no contexto humano as dúvidas existenciais “mais relevantes” a serem respondidas pela teologia. E, se é verdade que a teologia não deve ser tão somente um hotel nas nuvens para pensadores que debatem o sexo dos anjos, tão pouco deve justificar suas teses progressistas de pouco ou nenhum apreço popular, de nenhuma relevância escatológica.

Não creio que Tillich seja mensageiro das teses de Bruxelas e demais conglomerados progressistas, não é isso. Pior, creio que ele seja um de seus fundamentos. Assim sendo, para o teólogo alemão, debates metafísicos, doutrinas escatológicas, dogmáticas e demais assuntos correlacionados à tradição cristã e suas apologias caem por terra para dar lugar ao debate ambientalista, político e outros de pautas contemporâneas. Pois, se a filosofia contemporânea determina o que a teologia contemporânea deve responder, não devemos esperar muito mais do que os problemas suscitados pelos conglomerados supragovernamentais que nos cercam.

São os herdeiros ou admiradores de Tillich que debatem atualmente a teologia do identitarismo ou a teologia do meio ambiente. Isso só foi possível porque suas ideias acabaram sendo uma manta agradável às ideias paralelas que nutriam a revolução cultural da década de 1950 e 1960. Muitos enxergam nele, porém, o último teólogo de linha clássica que ousou defender com ciência filosófica acurada a existência de Deus e a plausabilidade da fé cristã na sociedade contemporânea. Eu, por outra via, enxergo nele um homem que tentou puxar Deus para mais próximo das pautas dos homens, a fim de que esses homens materialistas pudessem enxergar um pouco desse Ser-enquanto-Ser. Creio que Tillich virtuosamente tentou trazer a teologia para a relevância acadêmica e social do século XX, mas acabou transformando-a em uma ciência dispensável. Se a teologia nasceu para responder às demandas políticas do homem, ela é apenas mais uma, e talvez a pior, das ciências humanas para isso.

Fato é que a sua teologia se tornou acessório intelectual para enfeitar debates políticos de ocasião, um chaveiro retórico para adornar políticas convenientes. De novo, tenho que afirmar, parece não ser exatamente o que quis Tillich, mas é o que aconteceu. No fim, os herdeiros de Tillich e os filhos da Teologia da Libertação acabam juntos na mesma missão: caçar na Bíblia e em intuições pessoais críticas sociais que reordenem o mundo tal como eles acham que esse deve ser reordenado.

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