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Na guerra estética entre Bolsonaro e Dória, até funk virou arma para intelectuais que não veem problema em se aliar à esquerda que até ontem condenavam.
Jingle eleitoreiro de Dória é apenas ruído para a imprensa e as redes sociais. O povo mesmo não vai se vacinar só porque ouviu um funk.| Foto: Reprodução/ YouTube

Hannah Arendt já disse que educar adulto é coisa de totalitário. Devemos educar as crianças, passando para frente os nossos valores, mas tratar adulto como educando é coisa de quem não tolera a autonomia intelectual alheia. Os campos de “reeducação” da União Soviética talvez tenham sido a sua fonte de inspiração para esse pensamento e só Deus sabe o que ela diria se descobrisse que a última moda entre os filocomunistas é chamar presidiário de reeducando.

Mas entre pensamento e concretização está um vão difícil de transpor, e os nossos “reeducandos” estão aí, lépidos e fagueiros, para mostrar que presídio não é gulag – está mais para república autônoma. Outrossim, temos por aí uma porção de faróis que, juram, estão educando todo o mundo, fazendo deste Brasil um lugar mais consciente. Para isso, basta ter redes sociais. Uma vez dotado de uma conta no Twitter, você poderá se sentir a vanguarda da humanidade, enquanto repete aquelas coisas todas que Dória disse mecanicamente para Rodrigo Constantino e que foram redigidas por algum marqueteiro.

Eu poderia falar do antibolsonarismo, do feminismo, do racismo negro, da cis-heteronormatividade e das pessoas com vagina, mas o meu caso ilustrativo favorito, agora, é a música pedagógica Bum Bum Tam Tam.

Paulo Polzonoff já fez uma exegese eurocêntrica, colonial e algumacoisafóbica dessa obra do cancioneiro hospitalar. Munido de seus preconceitos, cometeu epistemicídio e não reparou na boa nova relatada por MC Fioti: “A vacina é saliente / Vai curar nóis do virus e salvar muita gente” (FIOTI et al., 2021). No começo do clipe, o rapaz de cabelo azul pede para o gênio da lâmpada “a cura do coronavírus”. (Deveria ser cura da Covid, que é a doença). Pouco depois, ele canta os versos supracitados dentro do Butantan, diante de microscópios. Corta para pesquisadores dançando de máscaras, não carnavalescas, senão hospitalares.

Aí vem o Nobel

Só eu, esperta que sou, percebi a relação entre a festança e a letra da música. Como mostrou a pós-doutora em química Joana D’Arc Félix (aquela que ia ser representada por Thaís Araújo em filme, mas a branquitude impediu), basta posar de jaleco com aparelhos de laboratório para um indivíduo ser altamente científico. MC Fioti estava lá de jaleco, todo científico diante dos microscópios do Butantan, quando descobriu a primeira vacina curativa do mundo.

Vejam bem: ano passado, chegamos a ler um respeitado partidário da ciência contra as hostes do obscurantismo dizer que Cuba tinha produzido a vacina para a Covid (BOULOS, 2020). Logo surgiram explicações de que não era vacina, mas sim tratamento, e que vacina serve para prevenir, não para remediar. Vacina previne, vacina não cura. Ao menos Guilherme Boulos admitiu que estava errado.

O mundo pensava assim, até que o Instituto Butantan, ou melhor, Bumbumtantan anunciou a vacina que cura. A vacina do Brasil. Ali, diante do microscópio, MC Fioti fez a descoberta e os pesquisadores começaram a dançar extasiados porque o Nobel vem aí.

Vacina de baixa eficácia foi promovida a cura

Ao menos essa é a história mais crível que consegui pensar para aquele clipe ridículo que mancha a já combalida imagem do Butantan, ops, Bumbumtantan, hoje convertido em apêndice da campanha eleitoreira de Dória.

Festa pode? Pode. Pode todo mundo se aglomerar ouvindo o funk que promete a cura da Covid, muito embora vacina nenhuma cure coisa nenhuma.

A eficácia da vacina é duvidosa. O Bumbumtantan usou um método novo para chegar de raspão à porcentagem mínima exigida para a Anvisa. Esse método é o da odds ratio, que consiste em comparar o adoecimento do grupo do placebo ao adoecimento do grupo da vacina. O número de 50,4% alardeado pelo Bumbumtantan quer dizer apenas que o grupo da vacina teve 50,4% menos doentes do que o grupo do placebo. Se o Bumbumtantan tivesse seguido o método clássico, bateria nos 49% e não receberia a aprovação da Anvisa. O método clássico só considera uma vacina 100% eficaz se nenhum vacinado adoecer, e o número de 49 é algo como cara ou coroa para quem vacina, ou seja, indiscernível de um placebo.

Dançar funk para comemorar a cura da covid no Butantan parece razoável? Se Bolsonaro divulgasse em suas redes sociais um MC Reaça dando o baile da cloroquina na Fiocruz, a Câmara receberia um milhão de pedidos de impeachment via Twitter. Seria genocídio. As pessoas dançariam o funk governista tal como os ratos atrás do flautista. (O que depõe a favor do senso estético dos ratos.) Todos morreriam. Cabum! Genocídio.

E, não menos importante, as pessoas questionariam a autonomia e a idoneidade da Fiocruz. Nisso, estariam corretas.

Educar o populacho

O pior é que o pressuposto é esse mesmo: basta fazer um funk governista para todos celebrarem a “vacina brasileira” do Bumbumtantan. Até entendo o lado do marqueteiro que deve ter bolado a coisa. João Dória tem a ilusão de que vai se eleger presidente e o marqueteiro precisa aprontar alguma coisa para manter o nome do homem na mídia. Se ele fizer um jingle para a vacina, todos os lacradores da redação e do Twitter acharão o máximo e Dória não sairá da pauta. Quando Dória perder, basta culpar o WhatsApp, e até lá o marqueteiro segue embolsando.

Mas e esse povo que ficou em redação e em rede social jogando confete para jingle de vacina? Eles ouvem funk? Nada, ouvem Chico Buarque. Eles acreditam que vacina cura? Tampouco. Os tuiteiros altamente científicos gostam de mostrar que são diferentes do PSOL (têm necessidade disso) e na certa se lembram da mancada de Boulos.

Acontece que é bonito mandar o populacho ir se vacinar, porque isso é o que gente altamente científica faz. (Consulte o último tuíte de Átila Iamarino para saber o que é altamente científico). Fazer de conta que gosta de funk é mostrar-se desconstruído e tolerante. A gente pode contar umas mentirinhas simplificadoras para o populacho ir se vacinar, porque basta fazer um jingle governista que todo mundo vai seguir.

Aí fica lá a criatura no Twitter  – ou, pior, na redação – jogando confete para a vacina saliente que vai curar nóis do vírus e salvar muita gente. São os pedagogos do populacho. Os faróis digitais do Twitter e de jornais decadentes.

A questão é: quem os ouve? Eu duvido que alguém tenha ido se vacinar por causa do jingle e aposto que este só se celebrou numa câmara de eco.

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