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O presidente Jair Bolsonaro fala à imprensa no Palácio da Alvorada.
O presidente Jair Bolsonaro fala à imprensa no Palácio da Alvorada.| Foto: Marcello Casal Jr/ Agência Brasil

Chefes de estado e representantes eleitos pelo povo não deveriam agredir nem ameaçar colegas políticos ou cidadãos. “Minha vontade é encher a tua boca com uma porrada”, como afirmou Jair Bolsonaro a um jornalista no último domingo, não é uma frase aceitável para um presidente da República.

Como afirma o editorial da Gazeta do Povo sobre o assunto, “essa falta de civilidade que se manifesta em palavras é sintoma de um ressentimento que brota apenas em quem não aceita críticas – venham ou não da imprensa”. O fato é que esse não é um caso isolado: a falta de decoro entre políticos brasileiros é antiga e recorrente. E raramente é punida.

A legislação prevê que o decoro é obrigação legal dos servidores públicos de alto escalão desde a lei 1079, de 1950, que lista as obrigações e as punições para diferentes cargos. “São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal”, afirma o artigo 4º, “e, especialmente, contra: “I - A existência da União; II - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; III - O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: IV - A segurança interna do país: V - A probidade na administração; VI - A lei orçamentária; VII - A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; VIII - O cumprimento das decisões judiciárias”.

Já no artigo 9º, que descreve os crimes de responsabilidade contra a probidade na administração, inclui “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. A descrição inclui o uso do cargo para realizar atividades ilícitas. Nenhum presidente jamais sofreu impeachment por esse motivo – nem mesmo Itamar Franco, fotografado ao lado da modelo Lilian Ramos, que estava sem calcinha, no carnaval de 1994, respondeu por quebra de decoro.

Para membros do Congresso Nacional, casos de perda de mandato por falta de decoro são raros – por exemplo, a deputada federal Flordelis, acusada pelo Ministério Público e pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, não será presa preventivamente em função de contar com imunidade parlamentar. Mas alguns incidentes já provocaram a punição. O primeiro deles aconteceu na década de 1940.

Naquele ano, a revista O Cruzeiro publicou uma reportagem sobre o deputado federal Edmundo Barreto Pinto. Acompanhava o texto uma foto do congressista, posando como uma estátua, de smoking da cintura para cima – e apenas cuecas da cintura para baixo. O deputado alegaria que fazia muito calor no dia, e que o fotógrafo havia garantido que estava fazendo registros apenas da metade superior do corpo. Três anos depois, durante uma sessão secreta da Câmara dos Deputados, ele teve o mandato cassado por quebra de decoro.

Associação ao crime

Edmundo Barreto Pinto foi o primeiro parlamentar cassado por quebra de decoro na história do Brasil. Desde então, poucos parlamentares foram enquadrados na legislação – para os membros do Congresso, vale o artigo 55 da Constituição, que exige dos senadores, deputados e vereadores uma conduta ilibada, inclusive no plano pessoal.

Entre os parlamentares punidos com base nesse artigo estão o deputado federal Jabes Rabelo, que forneceu uma credencial falsa para seu irmão, Abdiel, preso com uma carga de cocaína, e acabou cassado em 1992. Em 2012, o senador Demóstenes Torres perdeu o posto por suspeita de ter se utilizado do cargo para auxiliar o contraventor Carlinhos Cachoeira. Até hoje, 24 deputados e 3 senadores tiveram os mandatos cassados, nem todos por quebra de decoro.

Outros congressistas responderam, no Comitê de Ética da Câmara dos Deputados e do Senado, a acusações de quebra de decoro, Jair Bolsonaro entre eles, por duas vezes. Em 2016, enquanto ainda era deputado, ele foi inocentado em um processo interno movido pelo Partido Verde. Bolsonaro teria feito apologia ao crime de tortura ao homenagear o coronel Brilhante Ustra durante a sessão que aprovou a abertura do processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff.

Em 2011, ele também havia sido absolvido em um processo interno movido pelo PSTU que reunia três acusações diferentes, que a respeito de uma discussão com a senadora Marinor Brito (PSOL-PA), a divulgação do suposto kit gay pelo Ministério da Educação e uma participação no programa de televisão CQC, quando ele respondeu a uma pergunta da cantora Preta Gil, sobre a possibilidade de seus filhos se apaixonarem por uma mulher negra: “Eu não corro esse risco e meus filhos foram muito bem educados”.

Assassinato no Congresso

O senador Arnon de Mello perdeu o mandato, por um motivo óbvio: ele assassinou um colega dentro do Senado federal. O político, pai do atual senador Fernando Collor, vinha trocando agressões verbais e ameaças com o senador Silvestre Péricles de Góes Monteiro, até que, na abertura da sessão de 4 de dezembro de 1963, sacou um revólver Smith Wesson 38 de cano longo e cabo de madrepérola e disparou.

Péricles, que também estava armado, se lançou ao chão e se escondeu entre as poltronas. Mas duas balas atingiram José Kairala, senador suplente pelo PSD do Acre, que tinha 39 anos e substituía José Guiomard. Era o último dia de Kairala no posto – Guiomard retomaria o mandato no dia seguinte. Por isso, a mãe, a esposa e o filho pequeno do senador suplente estavam presentes à sessão e viram o congressista ser atingido no abdômen e morrer horas depois.

O Senado votou a favor de autorizar a prisão de Arnon e Silvestre. Mas, logo em 1964, os dois foram declarados inocentes. Arnon foi nomeado senador novamente em 1970 e permaneceu no posto até a morte, em 1983. Seu filho, Fernando Collor, seria eleito presidente da República seis anos depois. Em 1997, já longe de Brasília, perdeu a linha durante uma entrevista concedida à Rede Globo. E, em 2010, ameaçou um jornalista da revista IstoÉ: “Quando eu lhe encontrar, vai ser para enfiar a mão na sua cara, seu filho da p...”.

Ameaças e agressões contra jornalistas também são comuns. Em 1986, o político baiano Antônio Carlos Magalhães, então ministro, xingou um repórter e na sequência pisou nos pés do profissional durante um evento em Salvador. Mais recentemente, em 2018, o então candidato a presidente Ciro Gomes ofendeu um jornalista em Boa Vista, Roraima, e pediu a sua equipe: “tira ele daqui, prende ele ali”.

Em geral, elas rendem, no máximo, processos na esfera civil, mas não colocam em risco os mandatos dos políticos envolvidos. Em geral, a cassação acontece com base em denúncias mais palpáveis, como nos casos de Jabes Rabelo e Demóstenes Torres – a acusação passa pela Corregedoria Parlamentar, depois pela Mesa Diretora e, por fim, pelo Conselho de Ética, que pode aprovar a quebra do decoro e submeter a decisão ao plenário, que pode aplicar suspensão temporária ou definitiva do exercício do mandato. “No Brasil, a matéria é reservada ao regimento interno da casa legislativa, assim como nos EUA, no qual a Casa dos Representantes submete a resolução de expulsão à House Committe on Standards of Official Conduct”, afirma o advogado Eduardo Fortunato Bim em artigo sobre o tema.

Caso renuncie, o parlamentar escapa do processo. Foi o que fez Antônio Carlos Magalhães, em 2001, que abriu mão do posto de senador para escapar da perda do mandato por quebra de decoro, depois de ter violado o painel eletrônico do Senado no ano anterior. Nas eleições de 2002, o político foi eleito ao Senado novamente e, assim, retomou seu posto, onde permaneceu até falecer, em 2007.

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