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Cena do filme "Aurora", de 1927, vencedor de três Oscar
Cena do filme “Aurora”, de 1927, vencedor de três Oscar| Foto: Reprodução

Em 1927, o filme “Aurora” ("Sunrise: A Song of Two Humans", no original), de F.W. Murnau, vencedor de três Oscar, já apresentava dramas contemporâneos, respondendo as seguintes perguntas: “Por que os homens cometem adultério?”, “A mulher pode mudar o homem?”, “Como perdoar quem nos fez mal?”

A narrativa começa com um homem provinciano (George O'Brien) que vive em paz com a sua mulher (Janet Gaynor) e filha, um trabalho humilde na fazenda, até ser seduzido por uma amante (Margaret Livingston) que lhe desperta desejos inexplorados, sobretudo a vontade de morar na cidade grande, o que lhe leva a desprezar a sua vida bucólica.

O símbolo da história é análogo à tentação do Éden, que simboliza o desejo de aspirações maiores, todavia irreais, as quais levam o homem a esquecer das coisas boas da realidade em que vivia. Sendo a consequência do pecado de Adão o desequilíbrio cósmico, a do adúltero é a desordem familiar.

Já o cenário provinciano simboliza a inocência do personagem, a qual, para além do óbvio, não deve ser confundida com a pureza. Inocente é quem desconhece o mal e fica vulnerável a ele, ao passo que puro é quem conhece a maldade mas não se deixa contaminar por ela. O desconhecimento, enfim, leva à curiosidade pueril e leviandade juvenil. A tentação do homem é simbolizada pelo desejo de ir à cidade grande, a qual, no filme, representa a vontade de ser maior do que se é.

Onde tudo é liberado, nada é liberto

Paradoxalmente, enquanto personagem imagina a metrópole como um espaço de entretenimento e conhecimento, a região é representada cheia de pessoas apressadas e utilitaristas. Elas sequer têm tempo livre para usufruir das liberdades da capital, sendo mais limitadas do que as da província, mostrando a contradição do Inferno: onde tudo é liberado, nada é liberto.

Mas o homem está tão seduzido que vai ao encontro da amante à lua cheia, frente ao lago, numa floresta: a noite simboliza a exposição humana a seus mais secretos desejos; o lago, as aspirações e sonhos; a floresta, a confusão mental; a lua cheia, o auge das emoções. Tudo o quanto contribui para a rejeição dos valores e da própria personalidade.

Eis que a amante lhe pede que mate a esposa e venda a fazenda. O homem hesita, mas se rende dada a promessa de uma nova vida na cidade, e após receber beijos, simbolizando o quanto a paixão obscurece a razão.

O que destaca que o protagonista nunca deixa de amar a sua mulher, nem de bem-querer a sua família, mas apenas está fora de si. A tentação modifica a sua natureza e faz com que ele troque o amor conjugal pela sede de poder. A lição é de que a vida que nós não temos parece mais deleitosa do que a que temos, em virtude do poder da imaginação, que projeta ideais.

O pecado como desvio vocacional

Por que então os homens traem? Pois o adultério é uma forma de sair da vida real, sonhar com novas possibilidades e afastar das obrigações enfadonhas. Por isso muitos adúlteros jamais assumem a amante. Eles desejam viver um momento de sonho, fugir do seu eu e das suas circunstâncias.

Eis a razão para que alguns traiam mesmo amando a esposa, sendo este um amor imperfeito, é claro, mas ainda amor. Pois a traição não destrói a afeição anterior, apenas a adormece, assim como faz adormecer a realidade. E, desperto o homem, vem o remorso.

E como perdoar quem nos fez mal? Ou como diferenciar o verdadeiro arrependimento de um pedido de desculpa da boca para fora?

Primeiro, devemos considerar que os pecados, mesmo se deixam de ser cometidos, são acompanhados de feridas que podem deixar marcas para o resto da vida. Um simples pedido de desculpas não indica uma contrição completa. Quem pede perdão precisa dar garantias de que se tornou estável. Por isso deve existir uma disposição forte para adquirir a constância nos hábitos bons e a confiança do outro.

No filme, o marido faz um exame de consciência e tenta resgatar o sentido da vida. Como se deixou levar por uma amante sofisticada, a qual representava a fuga da sua realidade, o seu arrependimento deve surgir como uma forma de aceitação do real, e com isso a partir da valorização do essencial: a proteção da mulher contra os males do mundo, a prudência para o bem agir e fortaleza para preservar a família.

O que há por trás disso é o pecado como desvio vocacional. Que responsabilidade e profundidade há ao viver pelos prazeres? A energia e vitalidade do homem esgota-se nisso, e, assim, ele perde os seus propósitos.

Arrependimento e perdão

O restabelecimento da ordem acontece numa cena posterior, em que o casal vai à Igreja e assiste a um casamento. O homem chora pelo símbolo do ato. Os sinos tocam fazendo lembrar da mortalidade, e a união sacramental vem acompanhada da promessa de se manter fiel para o resto da vida. Assim a esposa adulterada aceita o perdão, e, comovida, dá uma nova chance ao marido.

A cena é totalmente diferente de um pedido de desculpas da boca para fora. Muitas vezes as pessoas falam palavras bonitas para evitar brigas ou para enganar a si, fingindo que o pecado já ficou para trás. Porém, no filme, marido e mulher encontram na Igreja um hospital para curar um ao outro, da culpa e do ressentimento, para abandonar as paixões, retificando o caráter.

Logo depois, o casal diverte-se na cidade, como uma forma de recuperar a intimidade e alegria da vida matrimonial. A cena mostra que a vida conjugal também requer divertimentos, junto às responsabilidades, quando chega o momento de retorno por meio de um barco.

Mas há uma tempestade e eles naufragam. A mulher é tida como morta, por ironia do destino, uma vez que esta era a sua intenção — afogá-la — antes do arrependimento. A cena mostra que – em posse da razão – os nossos divertimentos vãos são desoladores.

Contudo, a mulher é encontrada flutuando no rio, presa a madeiras, as mesmas que o marido planejara usar para matá-la. Eis uma verdadeira representação do perdão: podemos usar o mesmo para destruir ou para construir.

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