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A sabedoria dos novos tempos diz que a branquitude cruzou o Atlântico porque é malvada, colonialista e queria oprimir os povos nativos da América.
A sabedoria dos novos tempos diz que a branquitude cruzou o Atlântico porque é malvada, colonialista e queria oprimir os povos nativos da América.| Foto: Pixabay

Alguns pretendem dizer que tudo é estupro, mas o Brasil começou com uma festa. A mais improvável das festas, com canibais nus dançando em roda, vendo o português dar cambalhotas ao som de gaita. (Escrevi sobre isto aqui).

E por que o português foi parar lá? Se você teve uma escola antiquada, saberá que os europeus estavam atrás de uma rota alternativa para o Oriente, aonde iam comprar coisas tão luxuosas como especiarias. Os turcos tinham tomado conta da Rota Mediterrânea no século XV e, para chegar à Índia, só dando a volta na África ou a volta ao mundo.

Os portugueses começaram bordejando a África; foram os primeiros ocidentais a chegar à África subsaariana. Em 1488, Bartolomeu Dias foi o primeiro homem a dobrar o Cabo das Tormentas, rebatizado como Cabo da Boa Esperança. De lá, Portugal pôde seguir para a Índia. Colombo, patrocinado pela Espanha, resolveu pegar um atalho e simplesmente dar a volta ao mundo. Chegando ao Caribe, achou que os atuais Haiti e Cuba eram o Japão e China. Ele queria o Oriente, mas ninguém percebia que havia uma América no meio do caminho, e o extravagante descobridor morreu desacreditado

Mais ao sul, Pedro Álvares Cabral também viria a topar com a América, e cá estamos nós. Vocês veem, então, o que um homem não faz para dar um gostinho especial à sua refeição. Paga altas somas; altas somas levam aventureiros a descobrir a América, dançar com canibais e inventar brasileiros.

Mas, se você estiver adaptado à sabedoria dos novos tempos, convém deixar sutilezas de lado e dizer que a branquitude cruzou o Atlântico porque é malvada, colonialista e queria oprimir os povos nativos da América.

As especiarias estão humilhadas

Dito isso, é de admirar a sina das especiarias. Hoje, sendo tão fácil encontrá-las, seus preços despencaram e elas são rotineiramente substituídas por cubos de caldo em pó. Este (junto ketchup e miojo) constitui, para mim, um dos grandes mistérios gastronômicos: por que alguém compraria um mesmo pó para temperar tudo?

Tem caldo sabor carne para deixar a carne com gosto de carne, caldo sabor frango para deixar o frango com gosto de frango e até caldo sabor legume para deixar o legume com gosto de legume. Será que alguém acha que, se não colocarmos caldo sabor carne na carne, a carne terá gosto de peixe? Ou que a vaca fez a matéria da carne, mas o sabor vem à parte, num cubinho?

Carne tem gosto de carne, frango tem gosto de frango e, neste último, um açafrão vai bem. Por que diabos as pessoas usam caldo em cubo? Será que alguém daria a volta ao mundo para descobrir uma rota para a terra do caldo em cubo? Que diriam os portugueses do século XVI, vendo você aí botando tempero sabor frango no frango?

E de onde saíram esses caldos? Quando alguém teve a ideia de compactar um sabor universal num cubinho e botar em todos os pratos?

O dr. Kikunae Ikeda disse Eureka!

Se os portugueses fossem criar uma rota para a gênese dos cubos de caldo, trombariam com a América do mesmo jeito. É o Japão. Lá, em 1907, um químico da Universidade Imperial de Tóquio chamado Kikunae Ikeda de repente parou de tomar a sua sopa de algas ao ter um estalo: achou-a excepcionalmente saborosa e queria isolar o elemento que causava tamanha gostosidade na sopa.

Um ano mais tarde, ele pôde dizer Eureka! Descobrira tratar-se do glutamato monossódico, composto encontrado naturalmente em algas e tomates. Uma vez isolado, o composto poderia ser fabricado e jogado em todas as comidas, para garantir aquela mesma gostosidade que ele encontrara na sua sopinha de algas.

O dr. Ikeda foi ainda mais longe. Ele batizou o gosto do glutamato monossódico com o nome de sabor “umâmi”, que quer dizer gostosidade em japonês. O paladar humano sentiria naturalmente cinco sabores básicos: doce, salgado, amargo, azedo e umâmi. O dr. Ikeda, portanto, descobriu uma espécie de quinta essência culinária.

A primeira indústria a fabricar e patentear o glutamato monossódico foi a Ajinomoto, que significa “Essência do Gosto” em japonês. O pozinho mágico tem vários nomes comerciais. No Brasil, é mais fácil associá-lo a cantores sertanejos do que à douta figura do químico japonês tomando sopa de alga no Império do Sol Nascente. Temos Leandro e Leonardo se declarando para a galinha Maggi, bem como Zezé Di Camargo e Luciano descobrindo a essência do amor em Sazón. A publicidade tratou de associar o invento do dr. Ikeda à culinária caipira, para não deixar os matutos desconfiados. Daí, para vender esses caldos alegando terem múltiplos sabores, basta acrescentar aromatizantes diferentes ao glutamato monossódico.

Da ciência para o politicamente correto

Tamanha preciosidade científica logo virou panaceia culinária. Foi do Japão para a China e da China para o mundo. Nos Estados Unidos, o glutamato monossódico foi logo associado aos restaurantes chineses, que carregavam nesse tempero mágico.

Tanto lá como no próprio Japão, perguntou-se se era mesmo saudável o hábito de colocar glutamato monossódico em tudo o tempo inteiro. Afinal, uma coisa é comer um composto nas quantidades presentes na natureza e outra é sintetizá-lo para comê-lo em tudo. Na década de 1960, começou-se a falar nos EUA numa “síndrome do restaurante chinês”, cujos sintomas incluiriam dor de cabeça, palpitação e suadeira. Mas na de 1990 a FDA concluiu que o uso de glutamato monossódico é seguro e está liberado.

Somente no ano de 2020, porém, a Ajinomoto teve a ideia de fazer uma campanha politicamente correta, xingando de racista todo mundo que acha que o glutamato monossódico talvez não seja saudável ou dê dor de cabeça. (Tem aqui em inglês). Como se vê, politicamente correto e gigantes comerciais andam de mãos dadas: a Ajinomoto patrocina os ativistas e estes agem como desinteressados combatentes das injustiças do mundo, amiúde baseados na incorruptível e infalível Ciência, que na certa jamais se dobra aos desígnios da grana.

Atualizando a historiografia

Assim, para inserir o Brasil no mercado global de problematizações, proponho em primeira mão mais uma revisão na historiografia nacional: os portugueses tentavam chegar à Índia porque eram racistas e odiavam o glutamato monossódico.

Constará então nos livros escolares que um belo dia Pedro Álvares Cabral saíra furibundo do supermercado por encontrar apenas caldo em cubo para temperar o franguinho, e disse: “Deixa estar, que não usarei mais esse tempero da raça amarela, que é inferior! Vou pegar a minha caravela e descobrir o Brasil, para plantar gengibre”. E assim fez.

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