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Uma das lições que a história ensina é da transformação e a imprevisibilidade, e não da permanência.
Uma das lições que a história ensina é da transformação e a imprevisibilidade, e não da permanência.| Foto: Pixabay

O conceito de “fim da história” — a crença de que haverá um fim no progresso político, intelectual e social — é uma ideia poderosa que influencia todo o pensamento secular contemporâneo. A ampliação dos direitos dos homossexuais, a ascensão da saúde pública e a consciência ambiental têm levado os “progressistas” a imaginarem uma “Era Iluminista” na qual os norte-americanos reconhecerão a “verdade” dos valores esquerdistas. Os progressistas seculares contemporâneos imaginam um dia, no fim da história, em que seus valores triunfarão em todas as camadas sociais e intelectuais, e até mesmo nos bastiões mais conservadores.

Essa ideia de que a história se move numa direção previsível tem sua origem na Bíblia. O Livro de Isaías está cheio de profecias sobre o fim dos dias, quando Israel e seus valores monoteístas reinariam sobre um Egito arruinado. O profeta Daniel prevê a vitória de Cristo e os mil anos seguintes, influenciando cristãos posteriores como João, que escreveu o Apocalipse. O livro interpreta o fim da história como uma luta épica entre o bem e o mal que culminaria no Reino dos Santos. Isso, por sua vez, moldou a mentalidade do mais importante filósofo cristão a descrever o fim da história, Santo Agostinho.

Agostinho foi o primeiro pensador a propor uma ampla filosofia linear da história. Tudo começa com a criação do Universo por Deus e termina com a volta de Jesus e o Juízo Final. Essas ideias se espalharam pela cultura ocidental durante mil anos. Até mesmo o maior cientista da história, Isaac Newton, dedicou grande parte de seu intelecto a estudar o Livro de Daniel tentando determinar quando Jesus voltaria.

A ascensão da filosofia secular nos séculos XVIII e XIX não excluiu a ideia do fim da história. Como muitas outras ideias cristãs, ela for envolta numa nova nomenclatura, mas a essência permaneceu intacta. Os filósofos iluministas, como todos nós, não foram capazes de fugir completamente à sua herança intelectual. O espiritual se transformou no material, mas isso é como uma cobra que troca de pele: todas as diferenças são superficiais. Uma análise mais detida revela uma continuidade, não uma ruptura. Entre os secularistas, o mundo antropocêntrico impôs um desafio e de certo modo substituiu o mundo teocêntrico predominante desde o início da civilização, mas esses novos profetas ainda adotavam a ideia judaico-cristã de que a história é linear e um dia chegará ao fim. Só que agora os homens orquestram os eventos históricos, não Deus.

Os novos profetas do fim da história pregavam a perfeição e o Paraíso, embora eles fossem despidos de quaisquer origens divinas. O ateu iluminista La Mattrie, que defendia que a virtude só pode ser encontrada numa sociedade sem religião, dizia: “Como um século iluminado como o nosso demonstra (...) só há uma vida e uma felicidade”. A perfeição tinha deixado de existir na vida após a morte, que foi banida pelo Iluminismo. Para os secularistas, a perfeição só podia ser alcançada na vida terrena.

O Marquês de Condorcet é o melhor exemplo disso. Ele descrevia um fim utópico da história, um mundo guiado pela razão, sem religião organizada, guerra ou doenças. Condorcet interpretava a história à moda linear cristã, com um fim determinado. “Nossa esperança para o futuro da raça humana pode ser resumida em três pontos: a abolição da desigualdade entre as nações, a defesa da igualdade dentro de cada nação e a perfeição total da Humanidade”. Isso ocorreria na etapa final da história, de acordo com Condorcet. O progresso social e intelectual termina quando os seres humanos passam a viver guiados pela “razão”.

Esses profetas e seus sistemas teleológicos lineares tiveram continuidade no século XIX, sobretudo com Hegel. Ele interpretava a história como uma luta entre duas ideias antagônicas, a tese e a antítese. A luta é resolvida pela formação da síntese, mas contradições dentro da síntese geram uma nova tese e antítese, e assim por diante. Esse é o progresso. Por fim, toda a história termina quando o espírito (geist) alcança o autoconhecimento. A história termina quando o abstrato e o concreto se unem.

Hegel influenciou dois dos mais importantes teóricos do fim da história da segunda metade do século XIX, Augustine Comte e Karl Marx. O materialismo radical deles negava a existência de qualquer geist no Universo, mas eles mantinham uma interpretação linear e progressista da história, que um dia chegaria ao fim. Comte interpretava a Humanidade como algo que deixava de ser guiado pela religião para ser guiado pela filosofia até o estágio final da história, a era científica ou positiva. Comte reconhecia que esses estágios— religião, filosofia, ciência — estão relacionados, porque um evolui a partir do outro. (Igrejas foram construídas em diversas partes do mundo para promover o que Comte chamava de “religião da Humanidade”. Seus fiéis a chamam de “religião secular”). A filosofia da história dele culmina com o triunfo da ciência. O estágio científico ou positivo quer dizer que a mente é guiada pela ciência, aproximando-se ao máximo da verdade absoluta. Ele considerava a sociologia a “rainha de todas as ciências”. Uma sociedade baseada em princípios científicos é o ponto alto da Humanidade e, portanto, significa o fim de toda a história intelectual.

O parceiro sociológico de Comte, Karl Marx, deu continuidade à dialética hegeliana apenas substituindo as ideias pelas classes sociais. Nenhum pensador influenciou mais a contemporaneidade do que Marx. Assim como Comte, ele acreditava no progresso inevitável de seus valores. Toda a história, dizia Marx, era um conflito de classes. Esse conflito é resolvido pela derrubada inevitável do maléfico sistema capitalista pelos operários, o que daria origem à nova era do socialismo. Aos poucos, o Estado desapareceria, abrindo caminho para a era perfeita do comunismo. Esse fim da história utópico é desprovido de classes ou religião. Mais uma vez, paradigmas religiosos orientam o pensamento secular. O Paraíso se manifestará neste mundo, e não no próximo.

A mais radical profecia do fim da história em tempos recentes surgiu quando Francis Fukuyama proclamou, em seu O Fim da História e o Último Homem, que a democracia liberal tinha triunfado e que a história se manifestaria por meio da ampliação dos valores liberais e democráticos. O dr. Fukuyama, assim como Marx, reconhecia explicitamente sua dívida para com Hegel abrindo o livro com um chamado para um retorno à filosofia da história de Hegel, na qual a história evolui linearmente e corresponde ao progresso. A experiência comunista havia fracassado no Leste Europeu e as ideologias fascista e nazista tampouco tiveram sucesso. Ele dizia que a democracia liberal (e não o socialismo marxista) tinha vencido e que a história era apenas o advento dos valores liberais e democráticos, ou seja, eleições livres, parlamentos, direitos iguais, capitalismo (ou alguma forma disso), constituições, liberdade de expressão e de religião. Os que negam esses valores vão contra a história. Alguns conservadores atuais, às vezes chamados de neoconservadores, adotaram essa visão de mundo. É possível ver isso na forma como os valores democráticos e liberais chegaram a lugares como o Iraque e Afeganistão.

É cedo demais para avaliar a importância das teorias de Fukuyama, mas Condorcet, Comte e Marx influenciaram profundamente a forma de pensar dos progressistas seculares do século XXI assim como Daniel, Santo Agostinho e João influenciaram os cristãos, com uma notável diferença: no caso dos seculares, é o homem que põe fim à história, não Deus. A história ainda se move de maneira linear que culmina com um Paraíso final, mas o abandono da vida após a morte significa que a perfeição deve ser alcançada na Terra, nesta vida. O desprezo pelo lado espiritual significa que novas utopias surgirem no mundo material, criadas pelos progressistas e seus valores.

Mas este fim da história secular e construído pelo homem jamais se concretizará por vários motivos. Quero enfatizar que qualquer fim da história criado pelo homem é impossível simplesmente porque ele exigiria que os intelectuais e as massas entrassem em acordo. E isso é impossível porque os intelectuais precisam se diferenciar das massas a fim de terem uma identidade, assim como modelos precisam todas usar roupas diferentes. Toda sociedade precisa de um grupo de pensadores que se definem como tal, mas como pode existir pensamento independente quando todos adotam os mesmos valores? Se uma ideologia triunfar completamente, por que precisaríamos de intelectuais encorajando os outros a pensarem diferente e avaliar criticamente a sociedade? Um clima intelectual uniforme inviabiliza a existência dos intelectuais. O dr. Fukuyama afirma a existência de um Último Homem, mas o intelectual, praticamente por definição, não pode ser o “Último Homem”. Neste contexto, o Último Homem proposto por Nietzsche é a antítese do ubermensch, o super-homem que não se deixa restringir pela moral. O intelectual nunca pode ser mundano.

Deus deu à Humanidade o livre-arbítrio e todos o exercemos de uma forma ou de outra. O intelectual usa seu livre-arbítrio para examinar criticamente o mundo ao seu redor. Uma coisa une os intelectuais: eles criticam as sociedades de que fazem parte. Na verdade, parece que, independentemente da sociedade de que fazem parte, os intelectuais condenam o status quo. No auge da Guerra Fria, intelectuais norte-americanos como Horkheimer, Adorno, Chomsky e Zinn criticavam o consumismo, enquanto os intelectuais soviéticos, os dissidentes, criticavam o socialismo, a sociedade economicamente mais igualitária que o mundo contemporâneo já viu. Assim, apesar da vitória do capitalismo ocidental sobre o socialismo soviético, apesar de o capitalismo se tornar o sistema econômico dominante em seu tempo, as vozes mais críticas ao sistema são as dos intelectuais. Eles devem usar seus talentos para criar um mundo novo e maravilhoso, uma Nova Jerusalém. O mundo existente nunca basta. Mesmo que os valores progressistas tomem conta do mundo, chegará uma hora em que os intelectuais os abandonarão para defender algo novo. De outra forma, eles serão iguais às massas.

A necessidade dos intelectuais de se diferenciarem das massas é tão grande que às vezes eles têm de se destacar de seus pares. Pierre Bourdieu, por exemplo, que o New York Times certa vez chamou de o mais influente intelectual francês, admitia ter flertado com o anti-intelectualismo e temia fazer parte da classe intelectual que criticava. Depois de conquistar um cargo na Universidade de Paris, a tradição exigia que ele fizesse um discurso inaugural para os professores e outros intelectuais importantes, como Claude Levi-Strauss e Michael Foucault. Qual foi o tema de Bourdieu? Uma crítica aos discursos inaugurais.

Bourdieu gostava de contrariar, assim como Rousseau no século XVIII e Nietzsche no século XIX. Enquanto os filósofos do século XVIII enfatizavam a razão e endeusavam Newton, Rousseau enfatizava a emoção e se perguntava se a ciência tinha mesmo melhorado a Humanidade. Ele lançou uma ofensiva contra sua irmandade iluminista que contribuiu para o florescimento do romantismo alemão e luminares como Kant, Hegel, Marx e Schopenhauer. Seus sistemas metafísicos complexos, por sua vez, despertaram a contrariedade em Nietzsche: ele negava a validade de qualquer sistema e desafiava o discurso filosófico tradicional escrevendo na forma de aforismos. Ele refutava a ênfase iluminista dada à razão. Essas ideias moldaram o pensamento de outros críticos sociais como Horkheimer e Adorno. Em outras palavras, os intelectuais e seus valores jamais podem governar a sociedade porque haveria uma guerra civil entre eles.

A visão cristã alerta para a existência de falsos profetas, aqueles que nos prometem virtudes sem Deus. Somente Deus pode impedir o progresso político, social e intelectual. Se a história segue mesmo alguma lei, deve ser a Lei de Deus, porque milhares de anos de história humana não relevaram nenhuma lei humana incontestável, e sim apenas pessoas que acham que encontraram essas leis. Não pode haver um fim da história criado pelo homem porque não há valores permanentes criados pelo homem. Uma das lições que a história ensina é da transformação e a imprevisibilidade, e não da permanência. Um estudo da história intelectual desde o surgimento da civilização mostra que a mentalidade da classe intelectual está sempre mudando. Por que deveríamos pressupor que essa tendência chegará ao fim?

Acreditar em valores atemporais é algo que pode causar prazer, mas que fracassa em sua intenção de dar origem ao pensamento racional e criar perspectiva histórica. Aqueles que desejam a perfeição mundana e qualquer tipo de fim da história buscam isso em vão.

David Byrne é PhD em história intelectual pela Claremont Graduate University.

© 2020 The Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês
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