“O que era considerado piada, hoje sabemos que mata”, afirmou Felipe Andreoli, apresentador do Globo Esporte e ex-comediante do CQC. A afirmação foi uma resposta a críticos que desenterraram antigas piadas supostamente preconceituosas dele para contrastar com sua nova posição favorável ao politicamente correto.
A afirmação contém duas teses: que o que era considerado piada antes agora não é mais, e que isso, que nem mereceria ser chamado de piada, mata. A primeira tese podemos chamar de falso controle de qualidade: é o erro de achar que um exemplar ruim de uma categoria não pode estar dentro dessa categoria. Ora, há ciência ruim, filosofia ruim, culinária ruim que não deixam de ser ciência, filosofia e culinária. Reformar a definição de uma categoria para excluir todo exemplo que mancha o seu nome atenta, também, contra a clareza na comunicação. Portanto, piadas preconceituosas podem ser imorais, mas continuam sendo piadas.
Já a afirmação “piadas matam”, posta dessa forma simples, é flagrantemente absurda para qualquer um. Um primeiro procedimento para avaliá-la é torná-la mais forte. Tendo a versão mais forte possível de uma posição, podemos então considerar seus méritos e defeitos de forma mais clara e generosa.
Eis uma versão mais forte de “piadas matam”: quando o humor depreciativo a respeito de certos grupos é aceito socialmente, ideias contrárias a esses grupos, que estão incluídas neste humor, são aceitas e circulam mais livremente (causa 1). Uma vez aceitas as ideias preconceituosas, um subconjunto delas levam alguns a agredir fisicamente ou matar membros dos grupos ridicularizados (causa 2). Para contribuir para a diminuição desses crimes, portanto, devemos condenar esse tipo de humor.
Como a tese acima está afirmando ao menos dois processos causais no mundo, quem a defende precisa apresentar evidências para ambos.
Dificuldades na busca das evidências
Há muitos estudos de baixa qualidade sobre o humor depreciativo. Um dos defeitos mais comuns são as amostras pequenas: encontramos um com 50 pessoas, outro com 60, outro com 100. Eles apoiam a causa 1, mas não têm o rigor metodológico necessário para isso. Há, nessas publicações, referências ou defesas explícitas de tabus progressistas contra piadas “preconceituosas”.
Por exemplo, um estudo envolvendo 179 participantes, do americano de Stanford Dean Baltiansky e colegas, alega que pessoas que têm uma nota alta em “justificação do sistema” (ou seja, conservadorismo) acham especialmente engraçadas piadas que denigram grupos de “baixo status” como mulheres, pobres e minorias étnicas e raciais. Harry Purser e Craig Harper, pesquisadores britânicos que se declaram centristas com inclinações de esquerda, acharam estranhas essas conclusões e resolveram reanalisar os dados. Conclusão: embora houvesse realmente uma diferença entre os participantes mais conservadores e os mais progressistas, a diferença na graça que acharam desse tipo de piada estava concentrada na hipersensibilidade dos progressistas em exagerar que não tinham graça, e não nos mais conservadores puxando a nota dessas piadas para cima. Ou seja, o estudo original tirou conclusões enviesadas que reforçam uma tendência da área, nas palavras de Purser e Palmer, a “patologizar essa posição ideológica enquanto se valoriza o progressismo ideológico”.
Esse tipo de área com pobreza de amostras e consensos é propícia para o tratamento de posições progressistas como verdade estabelecida por acadêmicos simplesmente porque esta é a persuasão política mais comum entre eles. Pode ser que sua condenação a esse tipo de humor seja não uma questão de proteção a grupos vulneráveis, mas uma preocupação com marcar território com normas sociais que podem ser modificadas pelo humor.
Um exemplo de uso do humor para reforçar normas de um grupo dominante pode ser encontrado no começo do século XX na região de Israel. A socióloga Limor Shifman, da Universidade de Oxford, e Elihu Katz, da Universidade da Pensilvânia, contaram em 2005 na revista American Sociological Review que a comunidade judaica que havia chegado na Palestina/Israel antes dos anos 1930 recebeu a nova onda de imigrantes que fugiam do nazismo com piadas que buscavam dar boas-vindas, mas com um lembrete de que os novos membros precisavam ajustar a sua postura às normas estabelecidas. Foram 20 anos de ridicularização até os novos imigrantes serem assimilados. Um motivo de piada, por exemplo, era o apego dos imigrantes à sua língua alemã e sua crença de superioridade europeia sobre a cultura local. Foram apelidados pejorativamente de yekkes, e abraçaram o termo.
Mas o humor depreciativo, além de reforçar normas sobre grupos diferentes, pode causar preconceito a respeito deles? Andrés Mendiburo-Seguel e Thomas Ford, em seu estudo considerando o tratamento de gays no Chile, concluíram que sim. Já Jacob Burmeister e Robert Carels, que consideraram o impacto de piadas sobre a obesidade em como os participantes do estudo tratam gordos, concluíram que não.
Em suma, aparentemente não é possível afirmar sequer a causa 1 tratada acima, que dirá a causa 2, que depende dela para dar plausibilidade à versão “de aço” da tese “piadas matam”. Por analogia, é uma tese carente de evidências tanto quanto a tese de jogar videogame causa violência.
Condenação das piadas não é consenso entre seus “alvos”
Um dos maiores problemas para a tese de que as “piadas matam” é o efeito terapêutico que alguns de seus “alvos” podem derivar delas. Três anos atrás, em Nova York, foi organizada uma noite de comédia para vítimas de estupro contarem piadas sobre o assunto. A procura foi grande. O humor pode servir para tratar de coisas sérias num ambiente seguro, assim como aranhas de plástico são usadas para tratar a aracnofobia.
Se as piadas com imigrantes servem em última análise para assimilá-los à cultura ao redor, então a aparente hostilidade do humor serve para evitar hostilidades maiores, não para causá-las. “A retórica de zombar os novatos pode ser ao mesmo tempo uma retórica de boas-vindas, união igualitária”, dizem Shifman e Katz, “e uma construção da estratificação social”. Em sua amostra de 150 piadas sobre os yekkes em Israel dos anos 1930 aos 1950, “muitas podem ser interpretadas como hostis e benignas ao mesmo tempo”.
Esta é uma natureza notável do humor: enquanto um piadista pode tentar escapar da ira dos ofendidos alegando que “foi só uma piada”, um elogio comum a comediantes politicamente incorretos é que eles dizem verdades que ninguém mais tem coragem de dizer. Como resolver essa aparente contradição? Não há resolução completa: a piada vem embutida com a possibilidade de se negar de forma plausível uma aparente afirmação — é parte da graça.
Em suma, pode ser que piadas depreciativas tenham correlação com ambientes e crenças preconceituosas, e até sirvam para acobertar as últimas com negabilidade plausível, mas o fato de coisas ocorrerem juntas não é prova de que uma causou a outra. Já a possibilidade de as piadas causarem ativamente motivações agressoras ou assassinas se perde em uma malha de outras relações causais explicativas para um crime. Tentando uma visão panorâmica, é mais provável que as piadas pejorativas sejam consequências colaterais de outros fatores que, além de levar a elas, também levem à violência, enquanto as piadas não são, em si, causa de violência.
No fim das contas, o principal responsável por um ato de violência é quem o cometeu, e não quem lhe contou piadas que tivessem algo a ver com as suas vítimas. Colocar a culpa nas piadas e nos comediantes pela ação de criminosos violentos é caluniar os primeiros, infantilizar os últimos e subestimar a complexidade da rede de relações causais que compõe uma sociedade.
Deixe sua opinião