Um projeto apresentado pelo deputado federal Mauricio Neves (PP/SP), neste mês, propõe a criação de uma lei antiganância, limitando a cobrança de juros no Brasil. O PL 398/2023 sugere vedar “juros cujo valor supere 100% do valor do bem ou serviço financiado mediante cartão de crédito e ou cheque especial”. A ideia é que, quando o devedor pagar o equivalente ao dobro do montante tomado inicialmente no empréstimo, a dívida fique sanada, “independentemente de disposição contratual em contrário”. Toda a cobrança excedente a esse limite, defende Neves, deve ser devolvida em dobro ao tomador do empréstimo. De acordo com economistas ouvidos pela Gazeta do Povo, trata-se de uma tentativa de solução simples para um problema complexo, cujo efeito prático deve ser justamente o inverso do pretendido pelo proponente.
O economista e doutor em relações internacionais Igor Lucena aponta que a proposta é simplória, não levando em consideração fatores econômicos importantes quando o assunto é crédito, como o risco. “Quem paga mais juros é quem tem mais risco. A pessoa que empresta, seja banco, instituição financeira ou qualquer operador de crédito, leva em consideração a capacidade de pagamento do tomador, os impostos, o risco de não receber. Não tem sentido dizer que todo mundo toma igual e paga igual”, detalha.
Ou seja, se o legislador pressupõe que limitar os juros facilitará o crédito, na prática, o efeito será o oposto. “Se essa lei fosse aprovada, quem oferta crédito só ofertaria para aquelas pessoas que tem certeza absoluta que vão pagar. Haveria uma diminuição drástica de crédito na economia, ninguém daria crédito a possíveis devedores, de ranking B e C. São ideias que, na cabeça do legislador, têm boa intenção, mas falta conhecimento técnico para entender como funciona o mercado. Isso mostra o nível rasteiro dos deputados e a falta de assessoria”, critica Lucena.
O economista Claudio Shikida, professor do Ibmec MG, analisa que a proposta é uma “espécie de tentativa de fazer teto”. “Parece muito com a ideia de congelamento de preço. Você estabelece um teto arbitrário, um número mágico de 100%, para dizer que esse é o total do tamanho do bolo, mas não faz muito sentido”, critica. Para ele, é um contrassenso dizer ao mercado de crédito “o cara que se endividar muito vai ser perdoado”. “O que você está incentivando com isso? O comportamento endividador”, conclui.
Igor Lucena acrescenta que a proposta seria um estímulo à fraude, uma vez que sempre há aqueles cidadãos que procuram brechas na lei. “A pessoa que pega mil reais e deixa de pagar por dois anos, vai ter uma dívida em níveis atuais de quatro ou cinco mil. Se ela pega um e só paga dois, a operação deixaria a financeira no prejuízo”, explica. O cenário, portanto, “teria um efeito devastador, destruiria a economia nacional”. “Hoje, no investimento de uma casa, por exemplo, na prática, são pagas três ou quatro casas. Mas ninguém tem dinheiro para pagar à vista. Se você cria um contexto de prejuízo para as instituições financeiras, elas deixariam de emprestar. Isso faria secar drasticamente a oferta de crédito no país”, prevê.
Campanha presidencial
A ideia não é inédita. Durante a campanha presidencial, em agosto do ano passado, o candidato Ciro Gomes (PDT) propôs a chamada “lei antiganância”, quando participava de uma entrevista no Jornal Nacional. No dia seguinte, ele detalhou a proposta, que não estava em seu plano de governo registrado no TSE: “Eu estudei as experiências internacionais e achei a inglesa, em que você toma R$ 100 emprestado e, qualquer que seja o prazo, quando contratar e pagar R$ 200, a lei determina a quitação. O brasileiro hoje não sabe, mas ele toma R$ 100 emprestado e, em um ano apenas, está devendo R$ 400. Quero colocar um limite em que o dobro do valor emprestado seja o limite legal para a dívida dos brasileiros”, justificou na época.
Ciro Gomes não explicou como seriam as articulações com o setor bancário para alcançar o objetivo. Para o então candidato, o mais importante era mudar a situação de 66,6 milhões de brasileiros com o nome negativado no Serasa (algo como quatro em cada dez pessoas, um recorde desde o início da série histórica da instituição), o que geraria o “constrangimento” de não ter acesso a crédito em decorrência de dívidas bancárias. “E isso explode no desemprego, porque se as famílias não têm crédito e renda, elas não consomem. E, se não consomem, a economia para e o desemprego explode, que é o que estamos assistindo”, disse.
No texto do projeto de lei, o deputado Marcio Neves também cita o modelo britânico como exemplo. Por lá, explica, o alvo de limitação legal de juros, desde 2015, são os empréstimos do tipo “curto prazo e custo alto” (high-cost short-term credit). "Trata-se de crédito utilizado para cobrir despesas cotidianas e, por isso, acredito possa ser disciplinado de mesmo modo também aqui, porque, no Brasil, despesas cotidianas são feitas cada vez mais por meio de cartão de crédito e cheque especial provocando super endividamentos e, também, porque aprovada a medida, certamente estaremos contribuindo para a racionalização da cobrança de juros no País”, diz o inteiro teor do PL.
Igor Lucena explica que, ao focar em pequenos empréstimos, a legislação britânica é mais semelhante à lei da usura brasileira (Decreto 22626). Segundo o artigo 13, “é considerado delito de usura, toda a simulação ou prática tendente a ocultar a verdadeira taxa do juro ou a fraudar os dispositivos desta lei, para o fim de sujeitar o devedor a maiores prestações ou encargos, além dos estabelecidos no respectivo título ou instrumento”. “Aquelas financeiras que cobram 1.000% de juro estão agindo à margem da lei. Isso acontece em operações de crédito menores. Se fosse um projeto voltado a essas financeiras, talvez fosse mais lógico, mas não é o caso. Buscar solução simples para problema complexo termina criando um problema mais complexo ainda”, analisa o economista.
Faltam estudos de viabilidade
O doutor em relações internacionais reforça que, embora baixar os juros seja do interesse de muitos, fazê-lo “na canetada, como em 2015, 2016” não funciona. “O efeito prático é que as taxas de juros de longo prazo, controladas pelo mercado, sobem. Você diminui a oferta de crédito, há um aumento da inflação. É basicamente a mesma coisa [do projeto antiganância], toma-se uma atitude em tese positiva pelo meio errado. Até agora, não vi nenhum estudo sobre isso”, acentua Lucena.
Claudio Shikida concorda que é “estranho” uma proposta do tipo aparecer em campanhas políticas, uma vez que candidatos têm assessoria econômica. “Me parece uma proposta para ganhar voto, porque atrai as pessoas. Tem perfil de consumidor endividado no Brasil que vem desde a pandemia”, analisa. “Entendo que a lógica dos votos é mais importante, mas seria interessante que qualquer proposta assim viesse acompanhada de um estudo de avaliação de impacto, mostrando o custo e o benefício. Uma análise vem feita, séria, quantitativa. Como nos últimos anos o governo federal fez com relativo sucesso, criando aquela lei de avaliação de impacto regulatório. Acho que valeria a pena ter uma avaliação de impacto dessas mudanças que são propostas”, defende.
A Gazeta do Povo entrou em contato com o gabinete do deputado Mauricio Neves, para questionar a existência de um estudo de viabilidade do projeto, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
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