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Médica pondera que o contexto prisional pode tornar a decisão da pessoa menos livre e consciente do que seria em liberdade
Médica pondera que o contexto prisional pode tornar a decisão da pessoa menos livre e consciente do que seria em liberdade| Foto: Bigstock

Um projeto de lei apresentado pelo senador Styvenson Valentin (Podemos-RN), em novembro do ano passado, propõe a doação de órgãos por detentos ainda em vida como forma de diminuir o tempo na prisão. O PL 2822/22 pede a alteração da Lei de Execução Penal (7.210/84) e da Lei de remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para transplante (9.434/97), acrescentando a doação de órgãos duplos como hipótese de remição da pena privativa de liberdade. Embora não seja nova por aqui e esteja ganhando força também nos Estados Unidos, a ideia - que faz lembrar as políticas chinesas de remover órgãos de condenados ainda vivos - desafia os limites da ética e da legislação brasileira.

De acordo com a proposta, para usufruir do benefício o condenado precisa ter cumprido pelo menos 20% da pena e ter manifestado interesse livre e voluntário na doação de órgãos. A medida não se aplicaria a condenados por crimes hediondos. Entre os órgãos ou tecidos que podem ser doados durante a vida estão um dos rins, parte do fígado e do pulmão, além de medula óssea. “Esses carcerários, que já possuem o direito subjetivo como qualquer outro cidadão de ser doador de órgãos mesmo em vida, órgãos duplos… além do benefício penal próprio que eles estão conseguindo com a redução até mesmo a liberdade, com esse desencarceramento, estão ajudando imensas filas de pessoas que aguardam, dão expectativa de vida melhor, dão esperança a essas pessoas e o gesto [é] mais do que humanitário para todos os lados”, justifica Valentin.

O tema já tramita há pelo menos 20 anos no Congresso brasileiro, sem que chegue a uma resolução. Em junho de 2003, o deputado Valdemar Costa Neto (PL/SP) apresentou o PL 1321/2003, propondo permitir “a presidiário que se inscreva como doador vivo de órgãos, partes do corpo humano ou tecidos para fins terapêuticos, requerer redução de pena após a aprovação do procedimento cirúrgico”.

Ao longo das duas últimas décadas, outros onze projetos de lei foram apensados à proposta de Costa Neto (PL 2937/2004, PL 2937/2004, PL 3028/2008, PL 6283/2009, PL 453/2011, PL 1088/2015, PL 9551/2018, PL 4666/2019, PL 6794/2010, PL 4852/2019, PL 3705/2020), a maioria deles associando remição de pena a doação de sangue ou medula.

Em 2004, Eduardo Paes (PSDB/RJ) sugeriu a “diminuição das penas dos condenados com sentença transitada em julgada, que optarem pela doação de órgãos”. A matéria, no entanto, não especifica se o objetivo é doar órgãos ainda em vida ou documentar o desejo de doação após a morte. Situação semelhante é a do projeto de lei apresentado em 2010 por Edigar Mão Branca (PV/BA). Em 2020, Eduardo Costa (PTB/PA) propôs “a remição de pena pela doação voluntária de órgãos, partes do corpo humano, tecidos, sangue ou medula óssea”, podendo chegar a metade do tempo total da condenação.

O que diz a legislação 

Atualmente, a legislação brasileira (no artigo 9º da Lei 9.434/97) permite “à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau” ou a outras pessoas, mediante autorização judicial, exigência dispensada apenas na doação de medula óssea. Já o artigo 15 explicita que “comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano” é crime, com pena de reclusão (que vai de três a oito anos) e multa.

A médica Elizabeth Kipman, estudiosa da Bioética Personalista, recorda que, além da legislação brasileira, a Convenção de Genebra proíbe a venda de órgãos. “Se é proibido vender o seu órgão, é proibido diminuir a pena vendendo seu órgão, porque trocá-lo pela diminuição de pena é uma forma de venda”, defende.

Posta a questão legal, eticamente a proposta também é problemática, reforça Kipman. “A possibilidade de doação em vida deve ser dada a um indivíduo maior e capaz juridicamente. Qual a condição de um criminoso cumprindo pena?” Ela ressalta que o próprio contexto prisional pode tornar a decisão da pessoa menos livre e consciente do que seria em liberdade. “É exigência ética respeitar o consentimento livre e informado que prestigia a autonomia da pessoa. Nesse caso, não existe autonomia -  ‘para diminuir a pena, doe seu órgão’ - com todos os riscos etc. A opinião da ética personalista é que a doação de órgão precisa ser por afinidade, por amor, nunca para reduzir pena”, completa.

Já a Lei de Execução Penal dispõe, no artigo 126, que “o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena”. A lei determina um dia a menos de pena a cada três dias trabalhados ou a cada 12 horas de frequência escolar, divididas em pelo menos três dias de estudos.

A ideia do senador é somar ao trabalho e ao estudo a doação de órgão duplo, acrescentando que "o condenado que realizar a doação fará jus a uma redução de 50% (cinquenta por cento) da pena total imposta, devendo cumprir o restante da pena em regime aberto, com as condições a serem definidas pelo Juízo da execução". O objetivo é que todos os procedimentos de doação e transplante do órgão sejam custeados pelo Estado.

Esquerda americana defende a ideia  

A ideia de induzir presos a doar órgãos ou tecidos corporais com a promessa de redução de pena também vem sendo defendida pela esquerda norte-americana. Um projeto de lei apresentado recentemente pelos deputados democratas do Massachusetts Carlos González e Judith Garcia propõe que detentos obtenham de 60 a 365 dias de redução penal, dependendo do órgão ou tecido doado.

Na opinião de Wesley J. Smith, membro do Centro de Excepcionalismo Humano do Discovery Institute, que defende a natureza intrínseca da dignidade humana, liberdade e igualdade, trata-se de “uma ideia horrível e antiética”. “A lei proíbe a venda de órgãos por uma razão – os pobres é que vão vender, e isso abre as portas para uma exploração terrível. Conceder penas reduzidas seria uma forma de compra de órgãos”, argumenta.

Smith recorda que os “terríveis abusos do passado” e o alto risco de exploração levaram à proibição de que prisioneiros participem de experimentos médicos, a menos que haja um benefício explícito para a população carcerária. “Esta proposta sofre da mesma falha ética fatal. Os prisioneiros dificilmente estão em uma posição de barganha igual. Tampouco devem ser induzidos a se transformar em um recurso natural pronto para a colheita. Isso não deveria ser uma consequência potencial do encarceramento, independentemente do nosso desejo compreensível de aumentar o número de órgãos para transplante”, reforça.

Em seu livro “O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado”, Michael J. Sandel afirma que a “a lógica de comprar e vender governa cada vez mais toda a vida” e questiona: “não há algo de errado com um mundo em que tudo está à venda?”.

Pagar às mães para que levem seus filhos ao médico ou vender órgãos de familiares falecidos em um mercado formal, ao invés de doá-los, são algumas propostas do mundo contemporâneo em que se usam incentivos financeiros para evitar discutir a moral. “Na maioria das vezes, Sandel argumenta de forma convincente que empregar mercados onde a moral ou outras considerações deveriam reinar pode, às vezes, corroer o comportamento em vez de corrigi-lo”, observa Nicole Gelinas, pesquisadora do Manhattan Institute.

Na China, política se destina a indesejáveis 

Um artigo publicado em abril do ano passado, na revista médica American Journal of Transplantation, uma das mais conceituadas do mundo quando o assunto é transplantes, mostrou que prisioneiros chineses são forçados a doar órgãos ainda vivos, o que acaba lhes custando a vida. A doação equivale a “uma ferramenta de genocídio destinada a abater populações minoritárias consideradas 'indesejáveis' pelo Estado”, aponta James Robbins, comentarista do USA Today e membro sênior de Assuntos de Segurança Nacional no Conselho de Política Externa Americana.

“Novas evidências sugerem que a execução por doação de órgãos é uma parte contínua da campanha sistemática contra uigures, Falun Gong, tibetanos, cristãos e outras pessoas que Pequim classifica como politicamente problemáticas”, detalha.

Em 2007, acrescenta Robbins, o principal médico de transplantes da China admitiu que 95% dos órgãos transplantados no país vinham de presos. A política precisou ser alterada em 2015, após o clamor internacional, mas o Partido Comunista Chinês deixou aberta a possibilidade de que presos condenados pudessem doar órgãos “voluntariamente” . Estima-se que anualmente entre 25 mil e 50 mil presos sejam mortos na China para extrair de 50 mil a 150 mil órgãos.

Fila 

Segundo o Ministério da Saúde, em setembro de 2022, mais de 59 mil pessoas estavam na fila esperando por um órgão. De acordo com o governo federal, o Brasil é o segundo país que mais realiza transplantes. Em 2021, foram cerca de 23,5 mil procedimentos, sendo em torno de 4,8 mil transplantes de rim, 2 mil de fígado, 334 de coração e 84 de pulmão.

“O Brasil tem um dos maiores programas de doação do mundo, porém ainda há falhas. É uma legislação que funciona no papel. O que pode e deve ser feito eticamente é um trabalho no sentido de conscientização da população”, defende Elizabeth Kipman.

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