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A cultura popular convida incessantemente os jovens a serem eles mesmos. Mas até que ponto lhes dá liberdade para definirem a si mesmos?
A cultura popular convida incessantemente os jovens a serem eles mesmos. Mas até que ponto lhes dá liberdade para definirem a si mesmos?| Foto: Pixabay

Que uma sociedade tenha entre seus ideais mais altos a autenticidade é uma excelente notícia. E como não seria, se no pacote vão valores como a sinceridade, a coerência ou a independência do juízo? Mas não é essa a mensagem que costuma chegar aos que ouvem o conselho "seja você mesmo".

A ordem está por todas as partes: canções, anúncios, vídeos de TikTok, realities, filmes, slogans de camisetas… E admite os mais variados tons. Inspirador: "Simplesmente seja você mesmo e as pessoas certas chegarão à sua vida". Enfático: "Creia em si mesmo e fique imbatível". Ameaçador: "Nem pense em diminuir a sua luz para os outros ficarem mais confortáveis". Responsável: "Seja você mesmo a mudança que você quer ver no mundo”. Realista: "Seja você mesma. Não importa o que os outros dizem. Mesmo que você fosse perfeita, lhe julgariam". Sincero: "Seja você mesmo, mas não tanto"…

A cultura popular convida incessantemente os jovens a serem eles mesmos. Mas até que ponto lhes dá liberdade para definirem a si mesmos?

A pergunta faz pensar numa das advertências feitas pelo crítico literário Lionel Trilling em seu livro Sinceridade e autenticidade, publicado no começo dos anos 70, em plena época de mudança social: "O esforço concertado de uma cultura ou de um setor da cultura para alcançar a autenticidade gera as suas próprias convenções, generalizações, lugares comuns e máximas".

Ouça o seu coração

Na atualidade, as pressões vêm de várias frentes. Em tese, as redes sociais são um espaço perfeito para expressar a própria originalidade através de opiniões, vídeos, poemas, stories ou qualquer outra criação de cunho pessoal. Mas na prática abundam a imitação, as afetações de todos os matizes (greenwashingpinkwashingwokewashing…), ou ainda os filtros e retoques do Instagram, que funcionam como máscaras do eu.

Outra forma de pressão é o empenho por reduzir a pergunta sobre a a identidade (quem somos?) à identidade sexual. Em determinados meios de comunicação, há um convite permanente a se definir contra "o normativo" e "o binário"; isto é, a desconstruir a diferença feminino-masculino e a abraçar a fluidez de gênero.

Também é recorrente a insistência com que os famosos nos incitam a descobrir nossa essência apelando aos sentimentos como único guia, em vez de integrá-los à inteligencia e à vontade. "Cada um de nós tem (…) uma canção do coração que nos fala", explicava Oprah Winfrey a uma jovem, "e seu único trabalho é ser capaz de escutá-la e distinguir quando é ela que fala de quando são a sua cabeça e a sua personalidade que falam. Se você seguir esse conselho, será guiada para o seu maior bem. Sempre."

Junto com essa versão emotivista do "seja você mesmo", costuma vir uma disjuntiva tão irreal quanto desnecessária: de um lado estão seus sonhos, sua paixão, seu desejo de viver a própria vida de um modo autêntico e excitante; de outro, a triste realidade de seus deveres quotidianos. O conselho continua sendo de Winfrey: "As pessoas acreditam que seu trabalho é levantar todo dia, sair, ganhar dinheiro, cuidar de sua família e essas coisas. Mas essa é sua obrigação. Seu verdadeiro trabalho como ser humano é descobrir quem você é e por que está aqui."

Frente a essa falsa dicotomia, Erika Bachiochi convida os jovens a buscarem seus sonhos com as vistas postas tanto nas grandes questões existenciais como nas pequenas perguntas quotidianas: essas que nos revelam quais são nossos deveres no concreto de cada dia. Por exemplo: "Por quem ou pelo que sou responsável hoje? Como posso empregar bem o meu tempo? O que devo fazer nessa situação? Como posso tratar essa pessoa com o amor e a dignidade que ela merece?" Perguntas como estas nos ajudam a descobrir qual é nossa missão única na vida.

Me basto e sobro

Do jeito que se concebe hoje em dia, o imperativo de ser você mesmo está longe do ideal atrativo descrito por Charles Taylor n' A Ética da Autenticidade. O filósofo canadense não via incompatibilidade entre a lealdade a si mesmo e a abertura a "horizontes de significado" que transcendem o eu, como "a história, a tradição, a sociedade, a natureza ou Deus".

Mas agora tem-se outra visão da autenticidade. Em seu livro Tantos tontos tópicos, Aurelio Arteta lamenta que o conselho "seja você mesmo" tenha terminado por significar algo tão distinto do clássico "torna-te quem tu és". Se a frase de Píndaro, o grande poeta lírico da Grécia antiga, exortava a buscar a melhor versão de nós mesmos através do autoconhecimento e do exercício das virtudes, o "seja você mesmo" contemporâneo – ao menos, em sua versão mais difundida – converte em verdade incontestável a ideia de que tudo em mim é valioso pelo fato de ser meu.

Entendido assim, o "seja você mesmo" não só dispensa todos da nobre e exigente tarefa de buscar o próprio aperfeiçoamento moral, como impõe aos demais a obrigação de não questionar tudo aquilo que hoje se vê como um prolongamento da identidade: opiniões, valores, estilos de vida…

É o corolário lógico da premissa: se não tenho nada a melhorar nem a aprender com os outros, ninguém tem o direito de me sugerir mudanças em minha forma de pensar e agir. E nesse os outros estão incluídos desde os pais, os professores e os amigos, até os grandes livros da literatura e do pensamento universais.

Essa mentalidade converte o relativismo e o culto à diversidade em valores civis inegociáveis: ninguém pode exclamar que há ideias ou condutas melhores que outras; o mero fato de afirmar que "eu penso assim" ou "eu acho isso" torna estimáveis os meus pontos de vista. Ou, como diz Arteta: "A retórica da diferença e da diversidade culmina no nonsense de pregar que toda opção moral é igualmente valiosa porque a mera escolha outorga valor".

Obrigados a serem autênticos

O paradoxo é que, depois de proclamar aos quatro ventos que não há opções objetivamente melhores que outras, mas sim que é a decisão subjetiva de cada qual la que confere significado e valor, a cultura popular apoia uma visão da autenticidade que entrega aos outros o poder de nos definir.

Como explica Joseph E. Davis em comentário ao sociólogo alemão Andreas Reckwitz, hoje não basta sermos pessoas comuns; temos que nos sobressair em algo e mostrar ao mundo essas qualidades especiais que nos fazem diferentes, únicos. A "autenticidade performativa", como a chama Reckwitz, é uma obrigação: todos devemos provar a nossa singularidade, se não quisermos ficar relegados à condição de párias.

E a encenação termina sendo cansativa. Entre outras coisas, porque exige um esforço contínuo de reinvenção. "Como ocorre com as modas", explica Davis, "existe uma pressão para o novo e novidadeiro; o que era único num dia pode ser lugar comum no dia seguinte. Mesmo que você consiga uma boa atuação, tem que ser flexível e estar preparado para reinventar sua diferença. Sempre existe o perigo de passar despercebido."

Ademais, o reconhecimento do próprio valor fica nas mãos dos outros: são eles que me outorgam valor e que me concedem o desejado status social de pessoa única. Por muito real que seja, a qualidade distintiva "só conta conta como autêntica quando é reconhecida socialmente."

A pressão é fortíssima, porque ser um tipo comum é "sinal de fracasso". E embora Davis não o afirme, cabe preguntar se essa ideia de autenticidade pode estar contribuindo com o auge dos desafios extremos nas redes sociais.

A felicidade de ser você mesmo

Com essas regras de jogo, não é difícil imaginar aonde fica a autoestima de tantos jovens. E tampouco é de surpreender que muitos confessem abertamente que preferem ser especiais a serem felizes.

Sendo um antípoda deste projeto, o psiquiatra Fernando Sarráis propõe, em Auténticos (Palabra, 2022), recorrermos ao caminho inverso para sermos felizes: termos "um apreço maior segundo nosso próprio juízo, em vez do alheio"; desistirmos da ideia de "ser ideal ou perfeito", que enfiamos na nossa cabeça ou os outros enfiaram nela, e começarmos a querer, de forma incondicional, o eu real -- o que não exclui o esforço para mudarmos o que possa ser mudado com razoabilidade. Aqui, sim, o eu busca uma versão melhor de si mesmo, através do cultivo do saber e das virtudes, mas também aprende – como aconselha Sarráis – a se aceitar, a ver o que há de positivo em si e a não sentir vergonha de quem se é.

Propostas como essa ajudam a reformular o ideal da autenticidade em termos mais saudáveis. Veremos mais no próximo artigo da série.

©2022 ACEPRENSA. Publicado com permissão. Original em espanhol.
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