• Carregando...
A Covid deu origem a um novo tipo antropológico: o ser humano acovardado e hiperconectado, que não precisa mais dos outros nem da realidade.
A Covid deu origem a um novo tipo antropológico: o ser humano acovardado e hiperconectado, que não precisa mais dos outros nem da realidade.| Foto: Bigstock

Uma vez que a pandemia de Covid-19 persiste no mundo, talvez seja hora de nos perguntarmos se ela já não alterou profundamente nosso modo de vida. Será que já podemos nos sentir como aqueles prisioneiros que, uma vez soltos, sentem falta da celas e percebem que sua recém-conquistada liberdade é um tanto quanto amarga?

O último ano e meio, tão preocupado com a segurança, amenizou vários problemas sociais: os contatos diminuíram, os eventos sociais foram interrompidos ou se tornaram opcionais e as viagens longas se tornaram impossíveis. E a emoçãozinha dos jantares clandestinos e das viagens pela Europa ou outros lugares dependia do contexto da proibição. O clichê de um retorno pós-Covid aos tumultuados anos 1920 é enganoso: muitos dos franceses (na verdade, muitos dos europeus e dos norte-americanos também) não querem mais voltar para os escritórios e querem continuar trabalhando em casa. Muitos estão deixando as grandes cidades e se fixando nas regiões agrícolas, sonhando com uma vida mais simples e próxima da natureza, longe do consumismo frenético e do barulho da vida urbana, e protegidos das vicissitudes da história.

Em outras palavras, não dá para ter certeza de que todos viverão o retorno ao normal como uma libertação. A pandemia nos deixou preocupados, mas também nos libertou, por um tempo, de uma preocupação ainda maior: a ansiedade da liberdade. Parafraseando Pascal, que explicava que o problema da humanidade é que ela é incapaz de ficar quieta e sozinha num canto, podemos dizer que o problema da humanidade depois da Covid talvez seja conseguir ficar quieta e sozinha – e gostar disso.

Haveria precedentes históricos disso. Ainda que depois da Revolução Francesa os jovens tenham celebrado as paixões e os desejos conturbados, alguns autores trilham um caminho diferente. Entre eles estão o francês Xavier de Maistre, autor do “Viagem ao Redor do Meu Quarto”; o suíço Frédéric Lamiel, com seu “Diário” torrencial dedicado às minúcias da vida cotidiana; e o russo Oblomov, que passou sua curta existência na cama.

Todos se posicionam contra os dois tipos de seres humanos que se destacaram no século XIX: o burguês, cuja existência se baseia em cálculos e lucros; e o adversário do burguês, o boêmio ou revolucionário, que quer mudar o mundo e fazer justiça. Ao contrário desses personagens, os amantes da banalidade insistem em contemplar a insignificância, a grandiosidade da inércia, a verdade do ócio. Ao longo do século XX, eles foram representados por Samuel Beckett, E. M. Cioran, Franz Kafka e Robert Walser, e também no movimento que beira à ecologia da catástrofe – a colapsologia, que defende o crescimento negativo, o fim das viagens e a reclusão em comunidades menores enquanto se espera o fim do mundo. Aqui temos toda uma escola clandestina que ressurgiu com as medidas de confinamento.

A reclusão tem um quê que lembra a tradição do monasticismo ocidental: a cela do monge sem a transcendência e com as redes sociais. Antes mesmo da pandemia, essa história oculta reapareceu, decorada com as virtudes da “resistência ao aquecimento global”: temos de ficar em casa para evitar o efeito estufa, adotando uma imobilidade vegetativa e banindo o movimento que gera emissões de carbono. A cela universal da humanidade contemporânea, de Los Angeles a Pequim, é o sofá diante da televisão.

Novamente ansiaremos por espaços abertos ou cederemos aos propagandistas da atrofia? Para esses militantes, o importante não é salvar o planeta, e sim castigar a raça humana. A vida deve ser mudada – isto é, reduzida ao mínimo. Muitos querem nos converter, munidos de boas intenções, a uma moralidade de trogloditas.

Talvez descobriremos que a Covid deu origem a um novo tipo antropológico: o ser humano acovardado e hiperconectado, que não precisa mais dos outros nem da realidade. Assim, talvez possamos interpretar o famoso verso de Rimbaud, “a vida real está ausente” como “a vida real é a ausência de vida”. Para todos os que ainda defendem a curiosidade e gostam de se conectar com os outros, isso seria uma catástrofe dupla: às mortes causadas pelo vírus acrescentaríamos, como forma de expiação, a penitência do apequenamento.

*Pascal Bruckner é filósofo e autor de vários livros.

© 2021 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês 
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]