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Praia vazia durante lockdown em Niterói
Praia vazia (Lacaraí) durante lockdown em Niterói, em 11 de maio de 2020. O governo municipal impôs multa a quem desobedecesse às medidas. Não há na literatura científica indicação de que o vírus se transmite bem em locais abertos.| Foto: EFE / Antonio Lacerda

A entrevista do presidente Jair Bolsonaro no Jornal Nacional trouxe à tona o tema dos lockdowns: as medidas de fechamento e confinamento na pandemia de Covid-19. Ele foi contestado por jornalistas e influenciadores, que alegam que não houve lockdown no Brasil. Além dos fatos históricos sobre a existência dos lockdowns, também se debateu com que rigor aconteceram, se foram medidas obrigatórias dos governos, se os cidadãos obedeceram, e se foram eficazes em conter a disseminação do vírus.

O caso mais claro de lockdown foi o de Araraquara, por dez dias a partir de 21 de fevereiro de 2021. O município permitiu a abertura somente de farmácias e unidades de saúde. Alimentos eram entregues por supermercados. As ruas foram patrulhadas e uma mulher chegou a ser presa em uma praça — ela invocou seus direitos constitucionais, mas foi levada à força. O prefeito, Edinho Silva (PT) repetiu a dose em mais um lockdown de oito dias em junho daquele ano.

Não há uma definição única de lockdown. A literatura especializada fala em intervenções não-medicamentosas, e um conjunto delas, na totalidade ou em parte, pode corresponder ao que é chamado de lockdown no debate político e redes sociais. Uma proposta de categorização dessas intervenções está em um artigo publicado em 2020 na revista Science com primeira autoria de Jan Brauner, do Grupo de Aprendizado de Máquina Aplicado e Teórico da Universidade de Oxford. Pesquisadores de 18 outras instituições são coautores.

Brauner e colegas já estavam trabalhando no contexto da pandemia. Eles propuseram oito intervenções que compõem o lockdown, organizáveis em três grandes grupos: Proibição de aglomerações maiores que 10 pessoas, 100 pessoas, ou 1000 pessoas (inclui algumas acepções de distanciamento social); fechamento de escolas, de universidades, de alguns tipos de estabelecimentos de comércio dito não-essencial, ou da maior parte do comércio; ordens de isolamento ou confinamento em casa (incluindo quarentena).

O caso de Araraquara preenche todos esses critérios, bem como as intervenções em Wuhan no começo da pandemia e em Xangai este ano, ambas na China.

No Brasil, o presidente sancionou em fevereiro de 2020 a Lei 13.979, que fez vigorar um estado de emergência de saúde pública em todo o país. A lei previa nominalmente isolamento e quarentena, obrigava o cidadão a informar as autoridades sanitárias caso entrasse em contato com o coronavírus ou circulasse por regiões contaminadas, não mencionava restrições a aglomerações, mas foi ampla o suficiente para permitir lockdown no país todo ou pelas autoridades locais. O Ministério da Saúde não fez uso da lei para estabelecer intervenções que pudessem ser chamadas de lockdown em todo o país, mas as autoridades locais a aplicaram nesse sentido.

Medidas das autoridades locais em 2020

O Maranhão foi o primeiro estado a implantar medidas do tipo, em 5 de maio de 2020, por 12 dias, em quatro municípios da Região da Ilha do Maranhão, inclusive a capital São Luís. O governador determinou, por estímulo de uma decisão judicial, o fechamento das escolas e comércio não-essencial, proibição de todo tipo de aglomeração inclusive em espaço privado, máscaras obrigatórias, e restrição da circulação dos cidadãos. Ao menos na letra da decisão, os critérios de Oxford para lockdown foram satisfeitos.

Seguindo o Maranhão, medidas similares foram implantadas em nove outros estados: Amapá (16 municípios), Amazonas (Barreirinha), Ceará (Fortaleza), Mato Grosso do Sul (Guia Lopes da Laguna), Pará (21 municípios), Paraíba (12), Pernambuco (oito), Rio de Janeiro (três) e Tocantins (32). Todos esses lockdowns foram realizados nos meses de maio e junho de 2020. Outros sete municípios implantaram nesse período medidas menos restritivas que não se encaixariam na definição de lockdown, sendo o maior deles a cidade do Rio de Janeiro.

Medidas em 2021

Mais uma vez implantadas por autoridades locais geralmente não alinhadas com o governo federal, as medidas que podem se encaixar na definição de lockdown de Oxford aconteceram em 14 estados da federação no ano de 2021.

Foram eles Amapá (16 municípios), Bahia (59), Ceará (35), Espírito Santo (78), Goiás (15), Mato Grosso do Sul (Coronel Sapucaia), Minas Gerais (quatro), Pará (43), Paraná (22, incluindo Curitiba), Pernambuco (13), Rio de Janeiro (cinco, incluindo a capital), Rio Grande do Sul (Tupanciretã), Santa Catarina (Chapecó) e São Paulo (53).

O Distrito Federal e outros 11 municípios pelo país implantaram medidas de rigor menos consistente com o lockdown completo. Brasília teve uma das mais longas, por quase todo o mês de março. A maioria das medidas em 2021 aconteceu em fevereiro e março. Algumas poucas foram feitas em abril e maio. Somente Araraquara repetiu um lockdown em junho.

A reportagem não avaliou as políticas de todos os municípios em detalhe, a semelhança ou dessemelhança com o lockdown como definido pelos pesquisadores de Oxford foi sugerida em linhas gerais pelo nível de isolamento decretado.

Funcionou?

No artigo de 2020, Brauner e colegas sugerem que, em linhas gerais, o lockdown funciona especialmente na parte de fechar escolas e universidades. Porém, como mostrou a Gazeta do Povo em dezembro do ano passado, essa conclusão é contradita por um estudo japonês.

O assunto é simplesmente complexo demais para ter todos os fatores de confusão dissipados para que se aponte para um efeito específico. Diante da incerteza científica, é natural que as pessoas preencham as lacunas com suas convicções políticas. As ideologias que enfatizam o cuidado a vulneráveis e o afastamento de danos tenderão a defender que mais restrições poderiam ter salvado vidas. As ideologias que são céticas quanto a interferências no modo de vida das pessoas, quanto à capacidade de hipóteses científicas suplantarem a sabedoria do senso comum, e as que enfatizam a liberdade tenderão a acusar os interventores de terem matado mais e imposto custos inaceitáveis às comunidades e aos indivíduos.

É digno de nota, como comentou o experiente jornalista de ciência John Tierney, que muitas das entidades de saúde pública pelo mundo que antes rejeitavam medidas draconianas como o lockdown mudaram repentinamente de posição quando emergiram os primeiros surtos de Covid-19. Além disso, a Suécia, que rejeitou essas medidas, não foi nenhum caso de tragédia na pandemia, ficou abaixo da mortalidade média da Europa, e no contexto da Escandinávia no mínimo ficou como um caso ambíguo. Seus indicadores educacionais continuaram positivos, ao contrário do que aconteceu na maior parte dos países que adotaram lockdowns totais ou pela metade, que além de terem perdas educacionais observaram dificuldades cognitivas, verbais e atléticas nas suas crianças.

Valeu a pena?

A China declarou um sucesso seu lockdown de Wuhan, o epicentro da pandemia, em 2020. À parte o fato de essa ditadura com frequência manipular dados para melhorar sua imagem perante o mundo, é possível que controles ditatoriais possam ter algum efeito. Em se tratando de vírus transmissível pelo ar, o efeito é temporário. A política de Covid Zero, tentada em outros lugares como a Austrália, foi declarada insustentável pela Organização Mundial da Saúde (OMS) este ano. Irritada, a ditadura comunista censurou os comentários do diretor-geral da OMS e retrucou, chamando a entidade de irresponsável.

Desde os primeiros surtos, quando a obesidade se revelou uma comorbidade importante, as políticas de confinamento — que acabam incentivando mais sedentarismo e sobrepeso — estiveram em conflito com esse fato, apesar de esse conflito raramente ter sido reconhecido. Um estudo com mais de sete mil pessoas revelou que, entre fevereiro a junho de 2020, cada uma ganhou em média 680 gramas a mais por mês. Parece contraproducente uma política que causa um agravante para a própria doença que ela busca combater.

Em abril de 2022, três economistas, sob liderança de Casey Mulligan, do Departamento de Economia da Universidade de Chicago, publicaram uma grande análise dos efeitos dos lockdowns nas políticas variadas dos 50 estados americanos. Um dos principais resultados é que os custos impostos pelos lockdowns (que nem os defensores negam que existem) não estiveram correlacionados a melhores resultados em saúde, incluindo em taxa de mortalidade. Houve um pequeno efeito negativo de manter escolas abertas, que, como dito, é inconsistente na literatura — os próprios autores não acreditam que esta é uma relação causal.

As perdas educacionais foram catastróficas: os economistas citam outro estudo que calculou uma perda de 13,8 milhões de anos de vida humana. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico calculou que quatro meses de falta de aprendizado na escola a longo prazo terão o custo de 14 trilhões de dólares. Além disso, as perdas educacionais ocasionadas pelo fechamento de escolas na pandemia devem corresponder a uma renda 3% menor ao longo de toda a vida.

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