Sempre que a visão ocidental de ordem política prevalece, encontramos nela a liberdade de expressão: não apenas liberdade de discordar dos outros publicamente sobre assuntos de fé e moralidade, mas também liberdade de satirizar e ridicularizar o que é formal e o que consideramos bobagem, incluindo a formalidade e as bobagens sagradas. Essa liberdade de consciência requer um governo secular. Mas o que torna um governo secular legítimo?
Essa questão é o ponto de partida da filosofia política ocidental, sendo que o consenso entre os pensadores contemporâneos é o de que a soberania e a lei são legitimadas pelo consentimento daqueles que devem obedecê-las. Eles demonstram esse consentimento de duas formas: por meio de um “contrato social” explícito ou implícito, no qual todas as pessoas concordam com os princípios do governo; e por um processo político no qual as pessoas participam da elaboração e aplicação da lei.
O direito e dever de participação estão, ou deveriam estar, no termo “cidadania”, e a diferença entre as comunidades religiosa e política pode ser resumida na ideia de que as comunidades políticas são compostas por cidadãos e as comunidades religiosas são compostas por súditos – no sentido de “aqueles que se submetem”. Para quem quer uma definição simples de Ocidente hoje em dia, o conceito de cidadania é um bom ponto de partida. É isso o que milhões de imigrantes ao redor do mundo buscam: uma ordem que prometa segurança e liberdade em troca de consentimento.
É isso o que as pessoas querem; mas não é isso o que as faz felizes. Falta algo a uma vida baseada apenas no consentimento e no trato educado com nossos vizinhos – algo de que os muçulmanos têm uma imagem forte nas palavras do Corão. Essa coisa que nos falta tem vários nomes: senso, sentido, objetivo, fé, irmandade, submissão. As pessoas precisam de liberdade, mas elas também precisam de um objetivo pelo qual possam renunciar a essa liberdade. Essa é a ideia por trás da palavra “islã”: a disposição, sem volta, de se submeter.
É claro que as conotações do mundo são diferentes para os que falam árabe e os que falam turco, malaio ou bengali. Os turcos, que vivem sob a lei secular surgida do sistema legal da Europa pós-napoleônica, não estão muito dispostos a pensar que, como muçulmanos, eles devem viver num estado de submissão contínua a uma lei divina que governa toda a vida social e política. Os 20% de muçulmanos que são árabes, contudo, sentem que o ritmo hipnotizante do Corão é uma corrente inquebrável de compulsão e se sentem aptos a levarem o “islã” ao pé da letra. Para eles, esse ato específico de submissão talvez signifique renunciar não apenas à liberdade, mas também à própria ideia de cidadania. Isso talvez envolva recuar do diálogo aberto do qual a ordem secular depende e mergulhar na “sombra do Corão”, como disse o teórico islâmico Sayyid Qutb num livro assustador que desde então tem inspirado a Irmandade Muçulmana.
A cidadania não é exatamente uma forma de irmandade, do tipo que surge de um ato compartilhado de submissão sincera: é uma relação entre estranhos, uma distinção coletiva na qual a realização e o sentido estão restritos à esfera privada. Ter criado essa forma de solidão renovável é a grande realização da civilização ocidental e minha forma de descrevê-la levanta a questão se vale a pena defendê-la e, se sim, como.
Vale a pena defender o Ocidente?
Minha resposta é sim, vale a pena defender, mas somente se reconhecermos que o conflito atual com o islamismo enfatiza uma verdade: a de que a cidadania não basta e só vai se manter se for associada a um sentido ao qual a geração mais nova possa atrelar suas esperanças e sua busca por identidade.
Não há dúvida de que a ordem secular e a busca por um sentido coexistiram amigavelmente enquanto o Cristianismo deu seu apoio benigno a ambos. Mas (sobretudo na Europa), o Cristianismo se retirou da vida pública e hoje tem se retirado também da vida privada. Para as pessoas da minha geração, durante um tempo pareceu que poderíamos redescobrir o sentido da vida na cultura. As tradições artística, musical, literária e filosófica da nossa civilização abrigam tantos sinais de importância mundialmente transformadora que elas bastavam — achávamos — para que se transmitissem essas coisas adiante. As novas gerações herdariam, por meio de tais tradições, as fontes espirituais de que precisavam.
Mas ignorávamos dois fatos importantes: primeiro, a segunda lei da termodinâmica, que nos diz que, sem acréscimo de energia, toda ordem se desfaz; e depois a ascensão do que chamo de “cultura do repúdio”, quando aqueles indicados para acrescentar energia ao sistema começaram a se cansar e por fim abandonaram a bagagem cultural sob o peso da qual fraquejaram.
Essa cultura do repúdio foi transmitida, por meio da imprensa e das escolas, a todo o território espiritual da civilização Ocidental, deixando para trás uma sensação de vazio e derrota, uma sensação de que nada resta no que acreditar e apoiar, exceto a liberdade para crer. Isso estimula a hesitação, não a convicção, e o medo, não a coragem de se fazer escolhas. Não é de se surpreender que tantos muçulmanos em nossas cidades hoje considerem a civilização que os cerca como algo fadado ao fracasso, mesmo sendo ela a civilização que lhes legou algo que eles talvez não encontrassem nos lugares onde sua religião triunfa, isto é, o domínio livre, tolerante e secular da lei. Isso porque eles foram criados num mundo de certezas; ao redor deles, eles só encontram dúvidas.
Se o repúdio ao passado e identidade é tudo o que a civilização Ocidental tem a oferecer, ela talvez não sobreviva: ela cederá a qualquer coisa que a civilização futura possa oferecer em matéria de esperança e consolo aos jovens e para satisfazer a profunda necessidade humana de identificação social. A cidadania, como a descrevi, não satisfaz essa necessidade: por isso tantos muçulmanos a rejeitam, buscando consolo na irmandade (ikhwan) que, com frequência, é vista como o objetivo dos renascimentos islâmicos. Mas a cidadania é uma realização que não podemos ignorar se o mundo moderno pretende sobreviver: prosperamos com base nela, encontramos nela paz e estabilidade e, além disso, ela – mesmo não nos tornando felizes – nos define. Não podemos renunciar a ela sem deixarmos de existir.
Não precisamos rejeitar a cidadania como a base da ordem social, e sim conferir um coração a ela. E, na busca por esse coração, deveríamos nos afastar do multiculturalismo ressentido que tem arruinado a autoconfiança ocidental e recorrer às dádivas que recebemos de nossa tradição judaico-cristã.
As dádivas do perdão e da ironia
A primeira dessas dádivas é o perdão. Ao vivermos num espírito de perdão, não só evocamos o valor essencial da cidadania como também encontramos o caminho para o senso de comunidade de que tanto precisamos. A felicidade não surge da busca pelo prazer, nem tampouco é garantida pela liberdade. Ela surge do sacrifício: essa é a mensagem que todas as obras memoráveis da nossa cultura expressam. A mensagem se perdeu no ruído do repúdio, mas podemos ouvi-la novamente se nos dedicarmos a recuperá-la. E, na tradição judaico-cristã, o principal ato de sacrifício é o perdão. Quem perdoa sacrifica o ressentimento e, portanto, renuncia a algo que estimava de todo o coração.
O Corão invoca o tempo todo a misericórdia, a compaixão e a justiça de Deus. Mas o Deus do Corão não é um Deus leniente. Em suas manifestações no Corão, Deus perdoa esparsamente e com uma óbvia relutância. Ele claramente não gosta nada das falhas e fraquezas humanas — na verdade, Ele não gosta de nada. O Corão, ao contrário da Bíblia hebraica ou do Novo Testamento, é um livro sem espaço algum para a diversão.
Isso nos leva a outra das dádivas da nossa civilização: a ironia. Já há um quê de ironia na Bíblia hebraica que o Talmude amplifica. Mas um novo tipo de ironia predomina nas parábolas de Jesus, uma ironia que olha para o espetáculo das fraquezas humanas e que zombeteiramente nos mostra como conviver com elas. Um exemplo é o veredito de Cristo no caso da mulher adúltera: “Aquele que não tiver pecado que atire a primeira pedra”. Em outras palavras: “Deixe disso! Vocês nunca quiseram fazer o que ela fez nem jamais fizeram isso em pensamento?”
Há quem sugira que a história foi posteriormente inserida na Bíblia — uma das muitas que os primeiros cristãos usaram de toda a sabedoria oral atribuída ao Redentor depois de Sua morte. Mesmo que seja verdade, contudo, isso apenas confirma a ideia de que a religião cristã fez da ironia algo fundamental para usa mensagem. Foi um cristão iluminista atormentado, Søren Kierkegaard, quem apontou a ironia como uma virtude que unia Sócrates e Cristo.
O filósofo Richard Rorty via a ironia como um estado mental intimamente conectado à visão de mundo pós-moderna — um afastamento da crítica que ainda assim buscava uma espécie de consenso, uma concordância em não julgar. O temperamento irônico, contudo, é mais bem compreendido como virtude — uma disposição que tem como objetivo uma espécie de realização prática e sucesso moral. Aventurando-me a definir essa virtude, eu a descreveria como o hábito de reconhecer a estranheza de tudo, incluindo de si mesmo. Por mais convencido que você esteja da correção de suas ações e da verdade de suas opiniões, analise-as como ações e opiniões de outra pessoa e as reformule.
Por essa definição, a ironia é algo bem diferente do sarcasmo: é uma forma de aceitação, e não uma forma de rejeição. Ele também aponta para dois caminhos: por meio da ironia, aprendemos a aceitar tanto o outro, para o qual volto meu olhar, quanto a mim mesmo, aquele que está olhando. Com todo o respeito a Rorty, a ironia não está isenta de crítica: ela simplesmente reconhece que aquele que julga também é julgado, e julgado por si mesmo.
A herança democrática do Ocidente se origina, e este é meu argumento, do hábito do perdão. Perdoar o outro é dar a ele, de todo o coração, a liberdade de ser. É, portanto, reconhecer o indivíduo como alguém que tem soberania sobre a própria vida e que é livre para fazer o certo e o errado. Uma sociedade que abre espaço para o perdão, pois, tende automaticamente à democracia, uma vez que ela é uma sociedade na qual a voz do outro é ouvida em todas as decisões que o afetam. A ironia — o reconhecimento e a aceitação do caráter alheio — amplifica a tendência democrática e também ajuda a conter a mediocridade e conformidade que são os limitadores de uma cultura democrática.
O perdão e a ironia estão na essência da nossa civilização. Eles são nossos maiores orgulhos e nosso principal meio de desarmar nossos inimigos. Eles dão sustentação ao nosso conceito de cidadania como algo fundamentado no consentimento. E o perdão e a ironia se manifestam na nossa concepção das leis como um meio de resolver conflitos encontrando a solução mais justa para eles. Nem sempre se percebe que esse conceito jurídico tem pouco em comum com a sharia, que é considerada um sistema de ordens dadas por Deus e impossíveis de serem justificadas.
Os mandamentos de Deus são importantes para os cristãos e judeus também, mas eles não são vistos como suficientes para o bom governo da sociedade humana. Eles têm de ser complementados por outro tipo de lei, um tipo que reaja aos conflitos humanos em transformação. A parábola do imposto deixa isso muito claro (“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”), assim como a doutrina papal das duas espadas — as duas formas de lei, humana e divina, das quais o governo depende.
A lei aplicada em nossos tribunais exige que as partes se “submetam” apenas à jurisdição secular. Ela trata cada uma das partes como um indivíduo responsável agindo livremente. Essa característica da lei tem destaque especial na mente dos povos anglófilos, cujo sistema de lei comum consiste de liberdades — garantidas ao cidadão pelo Estado — que o Estado deve garantir. A sharia consiste de obrigações impostas por Deus e que os tribunais devem aplicar. É uma forma de garantir a “submissão” à vontade de Deus revelada no Corão e na Suna.
O terrorismo e a busca pelo sentido
Qual a situação dessas ideias hoje? Como a evocação dos aspectos mais profundos da nossa herança judaico-cristã ajuda a reagirmos à ameaça imposta pelo terrorismo islâmico e como podemos chegar à necessária reconciliação com o Islã sem a qual nossa herança política continuará em perigo?
Terrorismo e islamismo se tornaram sinônimos na cultura popular e, como reação a isso, analistas bem-intencionados defendem que não há nada de novo no terrorismo e que não há nada no Islã que leve os fiéis a praticá-lo. Não foram os jacobinos da Revolução Francesa que pariram o monstro? O terrorismo não encontra justificativa política no niilismo russo do século XIX que seria adotado pelos movimentos radicais ao longo do século XX?
A reação faz sentido, mas ela nos leva a explorarmos a questão mais profunda da motivação. O que leva as pessoas a usarem o terrorismo? Ele é usado, como sugerem os defensores, como tática? Ou é escolhido como um fim em si? A partir de certa perspectiva, parece plausível associar o terrorismo contemporâneo ao Iluminismo, à ideia de igualdade e ao comportamento ressentido que Nietzsche acertadamente identificava na essência das comunidades modernas — o desejo de destruir o sonho alheio ao vê-lo nas mãos de outra pessoa.
Mas tal diagnóstico ignora o fato de que o terrorismo, como tipificado pelos niilistas russos e registrado em nome deles, não tem relação nenhuma com um objetivo. Às vezes os terroristas — bolcheviques, IRA e ETA — conferem a si mesmos uma causa, fazendo-nos acreditar que, com a instauração de uma “ditadura do proletariado”, de uma Irlanda unida e de um Estado nacional basco, seus objetivos serão alcançados e eles poderão baixar as armas. Mas a causa é geralmente vaga e utópica, e essa não-concretização parece parte do argumento deles — uma forma de justificar a renovação constante da violência.
Os terroristas podem ser igualmente rebeldes sem qualquer causa ou podem se dedicar a uma causa tão vaga e metafisicamente expressa que ninguém (a não ser eles mesmos) é capaz de acreditar no sucesso dela. Os niilistas russos, tal qual Dostoievski e Turgenev os descrevem, eram assim. Também eram assim a Brigada Vermelha italiana e a Baader-Meinhof alemã da minha juventude. Como demonstra magistralmente o historiador Michael Burleigh em Blood and Rage [Sangue e fúria], o terrorismo contemporâneo se interessa muito mais pela violência do que por qualquer coisa que ele possa alcançar por meio dela. Isso está claro no professor de Joseph Conrad em O Agente Secreto, que faz um brinde à “destruição de tudo o que existe”.
O caráter vago ou utópico da causa é, portanto, uma parte importante do apelo do terrorismo, já que isso quer dizer que a causa não o define nem tampouco limita a ação. A causa está à espera de um sentido dado pelo terrorista, que não quer mudar o mundo, e sim a si mesmo. Para matar alguém que nunca o ofendeu nem fez algo que mereça castigo você tem de acreditar que está usando uma espécie qualquer de manto angelical de justificação. Daí você começa a ver as mortes como uma demonstração de que você é mesmo um anjo. Sua existência obtém sua prova ontológica definitiva.
Os terroristas buscam a exultação moral, uma noção da existência que vai além do veredito humano, emanado por uma suposta permissão dada por Deus. Esse tipo de terrorismo, em outras palavras, é uma busca pelo sentido da vida — o mesmo sentido que a cidadania, concebida em termos abstratos, é incapaz de dar. Até mesmo em sua forma mais secular, o terrorismo envolve uma espécie de ambição religiosa.
É muito difícil matar a inocente Maria da Silva e seus filhos que estão fazendo compras. Daí porque essa estratégia de construção de identidade não pode simplesmente começar com o desejo por matar. A Maria da Silva tem de ser transformada em outra coisa — num símbolo de uma condição abstrata, numa espécie de encarnação de um inimigo universal. Os terroristas contemporâneos, portanto, tendem a usar doutrinas que tiram o caráter humano das pessoas que têm por alvo.
As teorias marxistas servem bem a esse propósito, já que elas criaram a ideia de uma burguesia, de uma “classe inimiga” que, na ideologia bolchevique, exerceu a mesma função que os judeus tiveram para os nazistas. A Maria da Silva e seus filhos estão por trás do alvo, que é a família burguesa abstrata. O fato é que, quando a bomba atinge esse alvo fictício, os fragmentos o atravessam facilmente e atingem o corpo real da dona Maria da Silva. Infelizmente para os Silva, você muitas vezes encontrará terroristas fazendo uma defesa abstrata do ato, dizendo que eles não tinham culpa pela morte da dona Maria e que as pessoas não deveriam se esconder atrás de alvos daquela forma.
A violência como forma de transcendência
O terrorismo islâmico é estimulado, de certa forma, pela mesma e conturbada busca por sentido e a mesma necessidade de se pôr acima de suas vítimas numa postura de expiação transcendental. Ideias de liberdade, igualdade e direito histórico não têm influência no raciocínio deles e eles não estão interessados no poder e nos privilégios de seus alvos. As coisas deste mundo não têm valor para eles e, se eles às vezes buscam o poder, é só porque o poder permite que eles estabeleçam um reino de Deus — objetivo que eles, como todos nós, sabem ser impossível e, portanto, interminavelmente renovável diante do fracasso. O desleixo deles quanto à vida alheia é comparável ao desleixo deles quanto à própria vida. A vida não tem valor específico para eles; a morte os assombra constantemente no horizonte. E, na morte, encontramos o único sentido que importa: a transcendência final deste mundo e da responsabilidade para com os outros que este mundo exige de nós.
Pessoas inoculadas pela cultura do repúdio, relutantes em reconhecerem a busca por sentido como algo universalmente humano, tendem a pensar que todos os conflitos são políticos e tratam de quem tem poder sobre quem. Elas estão dispostas a acreditar que a causa do terrorismo islâmico está na “injustiça social” contra a qual os terroristas protestam e que o fracasso de todas as tentativas de solucionar o problema torna os métodos deles necessários. Para mim, isso parece ignorar completamente a motivação do terrorismo em geral e sobretudo do islamismo.
O terrorista islâmico, assim como o niilista europeu, está interessado sobretudo em si mesmo e em sua condição espiritual, e ele não deseja realmente mudar as coisas num mundo ao qual ele não pertence. Ele quer pertencer a Deus, não ao mundo, e isso significa dar seu testemunho da lei e do reino de Deus destruindo tudo o que se põe em seu caminho, incluindo seu próprio corpo. A morte é seu ato máximo de submissão: por meio da morte, ele se dissolve numa irmandade nova e imortal. O terror da sua morte exalta o mundo da irmandade e ao mesmo tempo desfere um golpe devastador contra o mundo rival dos estranhos, no qual a cidadania, não a irmandade, é o princípio de união.
Por isso deveríamos reconhecer que enfrentamos um novo tipo de ameaça, um tipo que não tem objetivos limitados nem negociáveis, que não podemos enfrentar por meio do confronto militar e que os meios normais são incapazes de deter. Não há nada que possamos oferecer aos muçulmanos e que permita a eles dizerem que alcançaram o objetivo. Se eles conseguissem destruir uma cidade do Ocidente com uma bomba nuclear ou todo um povo com um vírus mortal, eles considerariam isso um triunfo, por mais que isso não gerasse nenhum benefício material, político ou religioso.
A perda da ironia
Claro que a maioria de muçulmanos comuns ficaria chocada com um acontecimento desses e consideraria o assassinato em massa do tipo perpetrado pela Al-Qaeda como um absurdo absolutamente proibido pela lei de Deus. E há indícios interessantes de que intelectuais muçulmanos estão tentando encontrar uma forma de se comprometer publicamente com a coexistência das outras duas religiões abraâmicas e garantir o amor entre vizinhos, por mais que o vizinho tenha outra fé. Veja a carta de 2007 para os líderes religiosos do Ocidente, assinada por 150 notáveis muçulmanos, pedindo o diálogo entre as fiéis e citando o respeito mútuo como a base da coexistência. Mas devemos notar dois fatos importantes.
O primeiro é que o Islã nunca conseguiu estabelecer uma fonte decisiva de autoridade religiosa. Todos os líderes espirituais são autoproclamados, como o Aiatolá Khomeini, e não têm credibilidade fora de seu círculo de seguidores. As pessoas geralmente dizem que é uma pena que o Islã não tenha passado por uma Reforma Protestante. Na verdade, essa é uma interminável série de reformas protestantes, cada qual se dizendo a única verdade em se tratando da obediência do homem a Deus.
O segundo fato importante — em conexão, acredito, com o primeiro — é que os muçulmanos demonstram uma incrível capacidade de dar as costas para as atrocidades cometidas em nome da sua fé e de protestar contra qualquer um que condene essas atrocidades. Os famosos desenhos dinamarqueses causaram revolta, unindo muçulmanos de todo o mundo em atos de destruição e ameaças de vingança. Alguns dias mais tarde, a mesquita al-Askari, em Samarra, um dos locais mais sagrados para os xiitas, foi explodida por terroristas. Mas onde estavam os manifestantes fora do Iraque? Mais muçulmanos do que não-muçulmanos foram mortos pelos terroristas islâmicos. Mas quando é que aqueles que dizem falar pelos muçulmanos mencionam essa estatística? Vale dizer que os infames desenhos queriam que víssemos as atrocidades cometidas em nome do Profeta. Ele aprova ou não isso?
Os muçulmanos precisam encarar essa questão. Mas uma moral dupla com raízes profundas os impede de direcionar contra seus companheiros muçulmanos a mesma raiva virtuosa que direcionam contra os inimigos da sua fé. Essa moral dupla é resultado direto da perda da ironia. Ela tem origem na incapacidade de aceitar o caráter alheio de tudo, de se colocar fora das próprias opiniões e até da própria fé, de ver isso como a fé de outra pessoa. Não que o islamismo sempre tenha abdicado da ironia neste sentido: as obras dos mestres sufi são cheias dessa ironia. Mas os mestres sufi (estou pensando especificamente em Rumi e Hafiz) pertencem àquela incrível e reconhecível cultura islâmica à qual os terroristas deram as costas, preferindo o ódio rasteiro de Ibn Abd-al-Wahhab ou a enganadora nostalgia da Irmandade Muçulmana e Sayyid Qutb.
Confronto existencial
O confronto com o qual nos deparamos não é político nem econômico; tampouco é o primeiro passo rumo a uma negociação ou a um pedido de desculpas. Trata-se de um confronto existencial. A pergunta é: “Que direito temos de existir?” Ao respondermos “Nenhum”, abrimos brecha para a resposta “Foi o que eu pensava”. Uma resposta só pode conter uma ameaça se encará-la de cima para baixo; e isso significa estar completamente convencido de que temos, sim, o direito a existir e que estamos preparados para conferir o mesmo direito aos nossos oponentes, mas só se a concessão for mútua. Nenhuma outra estratégia tem a mais remota chance de ser bem-sucedida.
A Al-Qaeda pode estar enfraquecida; a conspiração para destruir o Ocidente pode ser apenas ficção criada pelos neoconservadores, que por sua vez podem ser apenas ficção criada pelos progressistas. Mas a ameaça não vem de uma conspiração ou de uma organização. Ela vem de indivíduos passando por uma experiência traumática que não conseguimos compreender totalmente — a experiência do muçulmano expatriado em confronto com o mundo contemporâneo e sem o benefício das duas dádivas do perdão e ironia. Essa pessoa é um subproduto imprevisível de circunstâncias incompreensíveis e inesperadas, e todo o nosso esforço para compreender sua motivação até aqui foi incapaz de sugerir uma medida que detivesse os ataques.
Qual, portanto, deve ser nossa posição nesse confronto existencial? Acho que deveríamos dar ênfase às grandes virtudes e realizações que construímos em nosso legado de tolerância e demonstrar certa disposição em criticar e curar todos os males aos quais nossa tolerância deu um espaço indevido. Deveríamos recuperar a diferença lockeana entre a liberdade e a licenciosidade e deixar claro para nossos filhos que a liberdade é uma forma de ordem, não uma licença para a anarquia e a autoindulgência. Deveríamos deixar de rir das coisas que eram importantes para nossos pais e avós, e deveríamos ter orgulho do que eles fizeram. Isso não é arrogância, e sim um reconhecimento de nossos privilégios.
Deveríamos, ainda, abandonar a embromação multicultural que tanto tem confundido a vida pública no Ocidente e reafirmar a ideia essencial da filiação social na tradição ocidental, isto é, a ideia de cidadania. Ao disseminar a mensagem de que acreditamos no que temos, estamos preparados para compartilhar isso, mas não para vê-lo destruído, fazemos a única coisa que podemos fazer para neutralizar o conflito atual. Como o perdão está na essência da nossa cultura, essa mensagem deve ser o bastante, mesmo que estejamos dizendo isso sob a influência da ironia.
Roger Scruton é escritor e filósofo. Este ensaio foi adaptado de uma palestra na Universidade de Calgary.
© 2019 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês
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