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A ascenção de Trump provocou a volta de clássicos distópicos à ordem do dia | CHIP SOMODEVILLA/AFP
A ascenção de Trump provocou a volta de clássicos distópicos à ordem do dia| Foto: CHIP SOMODEVILLA/AFP

O fim de maio trouxe cenas impressionantes para Brasília: manifestantes mostraram sua insatisfação contra o governo Temer, que revidou brutalmente com o exército. A vida real por um momento se parece com ficção tamanho seu absurdo. Mas será que a ficção e obras como "1984", de George Orwell, e "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, conseguem explicar o que vivemos no mundo hoje? 

No final de janeiro de 2017, a repórter Alexandra Alter escreveu no “The New York Times” que a incerteza quanto à política dos EUA fez com que leitores buscassem romances distópicos clássicos, como "1984", de George Orwell, e "O Conto da Aia", de Margaret Atwood. 

A repentina busca por esses livros tomou as editoras de surpresa. A procura pelo romance de Atwood foi tão grande que sua editora imprimiu 100 mil cópias extras (no Brasil, o livro ganha uma nova edição pela editora Rocco em junho). 

O Conto da Aia

“O Conto da Aia” relata um mundo em um futuro próximo pós-guerras civis de cunho religioso. Os EUA se tornam a República de Gilead, uma espécie de ditadura militar cristã. A partir disso, cada membro da sociedade tem uma função específica para desempenhar – a narradora do livro, Offred, desempenha o papel de procriadora, ou seja, deve ter filhos para casais de classes superiores. Para isso, é obrigada a ter relações sexuais e a abdicar de qualquer vida própria – seu corpo se tornou propriedade do Estado. 

O uso de referências do livro em protestos é resultado principalmente de alegações machistas feitas pelo presidente Donald Trump – o público parece ter encontrado um eco de seus medos na literatura. "Nesse tipo de ficção, a narrativa contém por praxe uma tese, um diagnóstico do presente, e nesse sentido ele realiza um aspecto eminentemente ensaístico, pela via da narrativa. Então, sim, ele visa produzir uma reflexão no leitor e uma perspectiva ética sobre o mal estar da civilização atual", explica João Camillo Penna, professor de literatura da UFRJ, doutor em Literatura Comparada e pesquisador de obras de ficção científica. 

De acordo com o psicólogo Leomir C. Hilário, doutor em Psicologia Social pela UERJ e autor de artigos que relacionam a literatura e a sociedade, a distopia se tornou um entretenimento jovem (ainda que coloque a série “Black Mirror”, do Netflix, como exceção). "Na medida em que ela foi absorvida pela indústria literária e cinematográfica, talvez tenha perdido sua potência de análise do presente", explica. 

Da utopia à distopia

O termo distopia varia de utopia, palavra criada pelo autor Thomas More pela junção do prefixo grego u (não, nenhum) com a palavra grega topos (lugar), segundo Camillo Penna. O livro de More, “Utopia”, foi publicado em 1516 e parte do ponto de vista de um viajante português que critica as instituições inglesas e descreve a ilha de Utopia, onde se conseguiu criar uma realidade próxima do ideal. 

Já a distopia tem sua primeira ocorrência registrada num discurso feito por Gregg Webber e John Stuart Mill ao parlamento inglês em 1868. É também um neologismo derivado do grego: dys (dificuldade, dor) e topos (lugar). A palavra foi usada depois para denominar obras de ficção que descrevem um cenário hipotético preocupante. "Essas ficções são 'espelhos analógicos' onde se projetam de maneira hiperbólica traços do presente, como maneira de dar a ver um diagnóstico sobre o tempo presente", explica Camillo Penna. 

Hilário aponta também um fator histórico para a distopia como gênero literário. Em 1914, com a Primeira Guerra Mundial, começa-se a viver um período de instabilidade muito diferente do que se vivia até então com a pax britannica. "O retorno àquela época de ouro da sociedade liberal burguesa aparece como impossível. A meu ver, é esta experiência de um futuro que se aproxima não enquanto progresso, mas enquanto regressão e barbárie que marca a emergência da distopia. As distopias expressam o sentimento de impotência e desesperança do homem moderno", explica. 

Camillo Penna complementa: "Considera-se em geral como o grande marco para as distopias modernas, as explosões nucleares de Hiroshima e Nagasaki e os campos de concentração e extermínio nazistas, como crise do modelo otimista de progresso humano e científico, radicalmente colocado em cheque por estes eventos". 

Nós

Assim, muitas distopias derivam de críticas feitas à sociedade, levando essas características ao extremo. Um exemplo é o "Nós", do russo Zamiátin, que mostra uma sociedade que conseguiu se livrar de problemas como guerra e fome. O custo disso é a perda de liberdades individuais – as pessoas têm horários definidos pelo governo para comer, dormir, se divertir, trabalhar e até ter relações sexuais. 

"Nós" narra uma sociedade de controle máximo, em que a população é vista como parte de uma engrenagem. Indivíduos são identificados como números e todos seguem uma rígida rotina. O plano é levar esse sistema para fora do planeta com uma nave espacial – na qual trabalha D-503, protagonista e narrador do livro. Até que ele conhece I-330, uma revolucionária que lhe mostra que nem tudo é tão perfeito no mundo. 

“Os cidadãos de 'Nós' são alienados – eles recebem só o tipo de informação necessária ao seu trabalho em servir ao Estado, e todas as artes humanas são abolidas, bem como o contato com a natureza. Nossa realidade não está assim, mas o medo do autoritarismo e da alienação paira no ar – como em toda grande crise da política e dos direitos humanos. Ler distopias nos ajuda a refletir sobre os rumos que a sociedade pode tomar se, em momentos históricos como o que vivemos, os cidadãos não se informarem e agirem”, conta Prince. 

Escrito em 1923, "Nós" pode ser visto como uma crítica ao regime soviético, ainda que até então Zamiátin não tivesse visto o terrível governo de Stalin, e à mecanização humana presente em países industriais. O livro foi censurado na Rússia, mas traduzido em francês, inglês e tcheco. Proibido de escrever e publicar em sua terra natal, escreve para Stálin em 1931 pedindo permissão para sair do país. Falece em 1937 em Paris. 

Admirável Mundo Novo e 1984

A ativista pró-democracia Claudia Mo segura uma cópia do livro 1984 enquanto discursa a favor de Edward Snowden, que vazou segredos de como os EUA vigiam seus cidadãos e de outros países por meio da NSA (National Security Agency)BOBBY YIP/REUTERS

George Orwell, autor de "1984", já aponta uma semelhança entre o livro russo e o "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, em uma resenha que publicou em 1946. "A atmosfera do dois livros é semelhante e, em linhas gerais, é o mesmo tipo de sociedade que está sendo descrito, embora o livro de Huxley demonstre menos consciência política e seja mais influenciado pelas recentes teorias biológicas e psicológicas", escreve (a resenha está disponível na edição de "Nós" da Aleph). Ainda que seja difícil criar um marco de fundação da distopia como gênero, é possível dizer que "Nós" é uma das obras centrais. 

"Admirável Mundo Novo", de Huxley, e "1984", de Orwell, são possivelmente as distopias mais conhecidas. O primeiro foi publicado em 1932 e narra uma sociedade organizada segundo princípios científicos, na qual os indivíduos são pré-condicionados biologicamente em laboratórios e condicionadas psicologicamente para viver em uma sociedade dividida em castas, sem questionar a posição em que se encontram. O livro critica principalmente a produção em série proposta por Henry Ford. 

O segundo foi publicado em 1949 e se ocupa com temas como vigilância e totalitarismo. Cunhador do termo "Big Brother" (Grande Irmão), Orwell chega até a problematizar os limites da língua, que se transforma em uma ferramenta de controle que molda como se vê o mundo. 

Diante dos acontecimentos políticos recentes do mundo, desde uma guerra na Síria aos constantes escândalos de corrupção brasileiros, é possível se perguntar sobre o alcance que essas obras têm ao refletir sobre o que vivemos. 

Ficção política e eleitoral

"A ficção científica é, e sempre foi, essencialmente um espelho parabólico sobre o qual se fazem diagnósticos sobre um processo histórico que não deu certo. Não há dúvida de que as distopias refletem sobre os grandes dramas atuais. Veja-se, por exemplo, o romance 'Submissão', de Michel Houellebecq, uma ficção eleitoral, ou política, que reflete o imaginário francês contemporâneo, e o duplo pânico de uma vitória (cada vez mais próxima) da direita fascista, pela via de Marine Le Pen, e a alternativa, fóbica, do domínio islâmico", explica Camillo Penna. 

Já Hilário afirma que, apesar da literatura não estar necessariamente comprometida com uma explicação do mundo, ela pode sim provocar uma reflexão: "será que não somos bastante parecidos com os personagens de 'Admirável Mundo Novo' que tomam remédios para se sentirem melhor e continuarem trabalhando, sem refletir sobre o mundo e si mesmos? A literatura ainda permanece viva nesse quesito. Não vejo limitações, porque refletir criticamente nunca é demais, é algo sempre necessário, sempre urgente, sobretudo em tempos de crise como nosso". 

Camillo Penna aponta ainda a um possível processo inverso: "uma coisa chama a atenção nisso, aqui no Brasil, como na vitória eleitoral de Donald Trump, nos EUA: parece que a própria política vira uma espécie de território ficcional, como se concebido por um perverso narrador de ficção política. Com a preferência consistente dada aos mecanismos políticos exteriores ao sistema e à representação política, parece que a realidade política se aproxima de maneira vertiginosa da ficção mais ousada, mostrando de um lado os limites da imaginação ficcional e de outro a ficcionalização da política dita real". 

Distopias no Brasil 

Imagem da série 3%, da Netflix, que retrata um Brasil distópicoPedro Saad/Netflix/Divulgação

"No Brasil há um pequeno mas engajado grupo de autores e entusiastas de ficção científica hoje em dia, mas não podemos considerar que o gênero tenha a projeção comercial que tem como gênero de massas em outros países do ocidente. No entanto, não esqueçamos que um conto como 'A sereníssima república' ou 'O segredo do Bonzo' de Machado de Assis (ambos de Papéis avulsos [1882]) podem ser considerados espécies de ficção científica avant la lettre", explica Camillo Penna. 

Já Hilário cita outro romance brasileiro como exemplo de uma distopia brasileira: "Cidade de Deus", de Paulo Lins, por marcar uma situação histórica deteriorada no país. "O romance narra a 'neofavela', o espaço social marginal dominado pelos traficantes de droga, pela violência disseminada e corrupção dos aparatos policiais. Uma distopia porque descreve as aventuras de 'sujeitos monetários sem dinheiro', onde a malandragem já não é mais uma forma maleável de se viver mas sim a competição capitalista exercida por outros meios, onde vencer o outro significa aniquilá-lo". 

Outro exemplo de uma distopia nacional é a série 3%, desenvolvida por Pedro Aguilera para o Netflix. Num cenário devastado, apenas 3% da população tem direito de usufruir uma vida digna. Aos 20 anos, todos podem participar de um processo seletivo para fazer parte da minoria. A obra teve opiniões controversas na crítica, mas tem uma segunda temporada confirmada. 

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Livros mencionados no texto, disponíveis na Livraria da Vila: “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood. Trad. Ana Deiró. Rocco, R$ 44,50. “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. Trad. Vida Serrano e Lino Vallandro. Biblioteca Azul, R$ 39,90. “1984”, de George Orwell. Trad. Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. Companhia das Letras, R$ 52,90.

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