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Há três anos, numa das inúmeras salas de negociação do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, os delegados negociavam uma resolução sobre a proteção da família. A sala foi dividida em linhas conhecidas – nações africanas e outros países em desenvolvimento apoiaram a resolução, e a maioria das nações ocidentais seculares ficou indignada com o texto. 

A certa altura, uma delegada de um país ocidental tomou a palavra e exigiu saber de onde vinha aquela linguagem controversa sobre a família. Ela queria saber como os representantes podiam falar da família como uma “unidade de grupo natural e fundamental da sociedade”, e advertiu os presentes que a sua delegação não poderia aceitar tais termos. 

O presidente da negociação – um africano – explicou gentilmente que a linguagem foi retirada na íntegra da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Nesse momento, a representante recuou, visivelmente envergonhada, e algumas gargalhadas não puderam ser contidas. Esse breve episódio não foi apenas divertido, mas também ilustrativo. 

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A Declaração foi adotada por unanimidade em 1948 pela nova Assembleia Geral das Nações Unidas, composta por cinquenta e oito países de representação geográfica global. Os redatores da Declaração recorreram à intuição comum de que cada indivíduo, independentemente das circunstâncias, desafios, privilégios ou méritos, tem um valor inerente, igual ao de todas as outras pessoas. O respeito pela dignidade tornou-se a pedra angular de todos os direitos humanos. 

No entanto, o entendimento filosófico parou por aqui. Essa falta de bases filosóficas sólidas permitiu que qualquer coisa obtivesse o estatuto de “direito humano”, quando expressa na linguagem da dignidade. Os verdadeiros direitos humanos permanecem num estado desesperador de negligência, e o complexo sistema de direitos humanos, que surgiu com a Declaração, parece desgastado. 

Se a raiz da atual crise dos direitos humanos pode ser remontada às origens da Declaração, uma possível solução também pode. Embora perguntas não respondidas tenham resultado numa crise de legitimidade, um regresso ao entendimento original da Declaração ainda pode ser capaz de redirecionar o trabalho dos direitos humanos para o verdadeiro bem comum. 

Um entendimento sem base 

Independentemente de afinidades políticas ou espirituais, a Declaração pode ser uma leitura desafiadora para qualquer pessoa que tenha um forte conjunto de crenças. Isso porque a Declaração não segue nenhum paradigma nem adere a nenhuma fé, e busca uma unidade entre grupos extremamente distintos. Ao aplicá-la a todos, corre-se o risco de não agradar a ninguém. 

Embora muitos tenham criticado a Declaração por várias razões, talvez os conservadores sejam atualmente os mais eloquentes em suas críticas. Com suas camadas de ambiguidade e linguagem fluida anti-discriminação, é fácil perceber por que a Declaração foi capturada com sucesso por forças progressistas para servir de referência a agendas controversas que são contrárias às crenças morais de muitos grupos. 

A Declaração tenta adotar uma visão de mundo universalista, que aborde as questões mais importantes dos direitos humanos do nosso tempo, evitando, em grande parte, as bases subjacentes às respostas para essas questões. Aqui reside tanto o problema principal quanto o valor primário da Declaração. Por que temos direitos humanos? De onde vêm esses direitos? O que constitui um direito humano fundamental? Tais questões estão ligadas ao cerne da nossa existência e ao que significa ser humano. 

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Para os religiosos, a fonte da nossa dignidade reside inteiramente no divino. No entanto, sem uma perspectiva religiosa unificadora, é difícil chegar a um acordo sobre uma fundamentação filosófica sólida para os direitos humanos. 

Conscientes da dificuldade de se chegar a um entendimento profundo, os arquitetos internacionais da Declaração optaram por se concentrar em questões de importância prática – ou seja, a urgência de evitar o tipo de guerra cataclísmica em larga escala de que o mundo acabara de emergir. 

Por conseguinte, os alicerces da Declaração foram erigidos sobre uma base mais frágil, porém viável, que nada mais é do que o respeito pela dignidade humana. Portanto, a Declaração começa afirmando que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Isso deveria ser suficiente, na ausência de algo mais profundo com o qual todos pudessem concordar. 

O sequestro dos Direitos Humanos 

A falta de algo mais substancial para explicar a nossa dignidade inerente permitiu as muitas manipulações do arcabouço dos direitos humanos que vemos hoje. A solução da dignidade resultou num sequestro dos direitos humanos que, se não for controlado, poderá levar à destruição de todo um projeto cuidadosamente posto em marcha pela Declaração. A proliferação de “direitos” recentemente inventados em nome da dignidade parece inevitável sem uma base sólida na qual se possa ampará-los. 

Não surpreende que grande parte da luta pelos direitos humanos diga respeito às nossas necessidades físicas e existenciais fundamentais. É a própria essência da pessoa que está sendo debatida. A liberdade, entendida como a ausência de quaisquer limitações, representa o auge das nossas ambições modernas, e tudo o que estiver no caminho é considerado um obstáculo ilegítima à escolha da pessoa, e a negação de seus direitos humanos. Os “direitos sexuais”, o aborto, a eliminação dos direitos familiares e a educação sexual radical para crianças constituem, assim, as questões sociais predominantes em debate na ONU atualmente. 

Podemos ver isso mais claramente através da distorção do “direito à vida” (artigo 3º). Recentemente, a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas adotou a sua interpretação oficial do que significa o “direito à vida”. A interpretação não vinculativa, mas altamente influente, apoia que médicos pratiquem a eutanásia naqueles que desejam “morrer com dignidade”. Ela afirma ainda que os países devem permitir um “acesso seguro ao aborto” para proteger o direito à vida das mulheres, muito embora o direito internacional não diga nada que implique em um “direito ao aborto” e, na realidade, proteja a vida dos nascituros. 

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No entanto, organismos das Nações Unidas para os direitos humanos vêm pressionando governos do mundo inteiro para alterarem as leis sobre o aborto, em violação ao Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (1994), que afirma que o aborto deve ser determinado no nível das legislações nacionais. 

Uma história semelhante está se desenrolando com os “direitos LGBT”. O artigo 1º da Declaração afirma: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Embora aparentemente não polêmica, essa declaração está na vanguarda do controverso impulso a favor dos “direitos LGBT” na ONU. 

De fato, a principal campanha LGBT da ONU, intitulada “Livre e Igual”, conta com verba multimilionária e reúne todo o tipo de pessoas para apoiar esta causa, incluindo a falecida Madre Teresa – uma firme defensora da família natural. 

Uma Declaração baseada na busca de consenso 

O problema que vemos hoje é que tudo pode ser mal representado como um direito humano fundamental, a menos que consigamos finalmente chegar a um entendimento filosófico do mundo ou regressar à visão dos redatores de um projeto consensual de direitos humanos, capaz de alcançar um acordo universalista. 

Dada a impossibilidade do primeiro, é mais do que tempo de retomarmos a abordagem original da Declaração. Até lá, o projeto continuará perdendo relevância à medida que preferência após a preferência for rotulada como um “direito humano” sob o disfarce de dignidade. 

Voltemos, portanto, às origens da Declaração em busca de respostas. O sucesso da Declaração resultou, em grande parte, do fato de ser tão desesperadamente necessária – os horrores da 2ª Guerra Mundial impulsionaram uma iniciativa que, de outra forma, teria sido impossível. 

Os países participantes mostraram vontade férrea de fazer a iniciativa dar certo, recorrendo a pontos comuns e não a ambições elevadas para chegar a um consenso. Hoje, a luta de agendas controversas incorporou tanto o sentido de urgência quanto o desejo de consenso que levou à conclusão da Declaração. 

A luta dos direitos políticos e civis contra os direitos econômicos e sociais é um exemplo notável do empenho dos redatores na resolução de impasses. A posição conservadora, defendida pelos Estados Unidos, era que atribuir um status de direito a disposições econômicas e sociais, como boas condições de moradia ou tempo livre para lazer, impunha obrigações injustificadas aos Estados e aumentava o risco de enfraquecer os direitos fundamentais. O medo era de que isso permitiria aos países escolher quais direitos iriam promover. 

A União Soviética e seus aliados não viram qualquer problema em elevar os direitos econômicos e sociais ao mesmo status dos direitos civis e políticos, e queriam impor obrigações claras aos Estados para garantir tais direitos. Esse se tornou um forte ponto de divergência que poderia facilmente ter posto fim a todo o projeto. 

Como resultado de um hábil trabalho para chegar a um termo comum, a gama completa de direitos acabou sendo incluída, mas os direitos econômicos e sociais foram precedidos de um parágrafo separado (artigo 22), que aplacava as preocupações conservadoras. Ao afirmar que tais direitos deveriam ser alcançados “de acordo com a organização e os recursos de cada Estado”, a Declaração limitou os direitos econômicos e sociais para facilitar a anuência conservadora. 

Ao mesmo tempo, os direitos foram rotulados como “indispensáveis” para atender às exigências da União Soviética. Embora não fosse perfeita para nenhuma das partes, essa abordagem refletiu a intenção dos redatores de alcançar um acordo mútuo sempre que possível, resultando, em última análise, na aprovação da Declaração. 

O êxito do projeto em nível internacional depende da nossa capacidade de regressar às origens – a proteção dos direitos fundamentais descritos na Declaração. Os países são livres para lidar com questões de interesse moral em seus próprios tribunais e leis. Essa é a autodeterminação inerente ao princípio da soberania, sobre a qual se assenta a ordem internacional. 

No nível internacional, entretanto, considerando que continuamos sem um entendimento comum das respostas fundamentais, o princípio do consenso que funcionou há setenta anos continua sendo o único caminho a ser seguido. 

A relevância atual da Declaração 

Como observou João Paulo II, a maior contribuição da Declaração é a visão nova e “radical” de que o desrespeito aos direitos humanos está diretamente relacionado à guerra. Quando os direitos humanos são violados, “a unidade orgânica da ordem social é destruída e afeta todo o sistema de relações internacionais”. Essa é a principal contribuição que devemos proteger. É imprescindível que a Declaração seja mantida como referência definitiva do acordo internacional sobre os direitos humanos. Temos de sublinhar sua linguagem real e continuar denunciando interpretações ilegítimas. 

Apesar de sua susceptibilidade à manipulação, as enormes contribuições da Declaração não podem ser menosprezadas. Sua afirmação inequívoca dos direitos fundamentais, tais como a liberdade de religião e crença (tanto em privado como “em comunidade com outras pessoas”) fez com que muitos países ficassem sujeitos a padrões jurídicos que não existiam anteriormente. 

Embora a Declaração não seja um tratado e, por conseguinte, não possa ser executada, os instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos que dela decorrem têm força vinculativa. A Declaração pode, portanto, ser creditada por muitas vitórias jurídicas que vemos hoje em todo o mundo. 

Os conservadores não podem se dar ao luxo de abandonar as instituições de poder que buscam redefinir os direitos humanos para todo o mundo. Embora a sanha reivindicante dos falsos direitos provavelmente não diminua, somente a defesa firme das liberdades fundamentais trará algum progresso na luta para acabar com as violações dos direitos humanos em todo o mundo. 

A tentação de abandonar as instituições internacionais e resistir a qualquer tipo de assimilação das agendas progressistas pode ser real. A melhor solução, no entanto, é permanecer na luta com o melhor recurso – e verdadeiramente universal – que temos à nossa disposição: a Declaração de Direitos Humanos. 

Elyssa Koren é Diretora de Defesa das Nações Unidas na ADF Internacional. Elyssa atua na sede da ONU, em Nova Iorque, fornecendo aos representantes dos Estados-Membros da ONU recursos legais para elaborarem documentos para proteger e afirmar a dignidade inata de cada pessoa. Paul Coleman é Diretor Executivo da ADF International, com sede em Viena, Áustria. A ADF International é uma organização de defesa jurídica que protege as liberdades fundamentais e promove a dignidade inerente de todas as pessoas. 

©2018 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.

Tradução: Ana Peregrino
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