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Inscrição na Praça da Bíblia: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará” | Reprodução/Google Maps
Inscrição na Praça da Bíblia: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”| Foto: Reprodução/Google Maps

A Prefeitura Municipal de Praia Grande, no litoral paulista, foi condenada a retirar inscrições bíblicas de obelisco construído em uma praça da cidade. A decisão foi tomada por maioria na 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), no âmbito de ação civil pública ajuizada pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea). 

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O topo do monumento, que fica em local conhecido como Praça da Bíblia, é circundado por trechos do livro sagrado do cristianismo, como “o Senhor é o meu pastor, nada me faltará”. A Atea sustenta que a administração municipal agiu de forma ilegal, pois, uma vez que o obelisco foi levantado com recursos públicos, o ato seria contrário à laicidade do Estado. A organização citou o inciso I do artigo 19 da Constituição Federal, que traz que: 

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: 

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; 

(...) 

Em primeiro grau, a Vara da Fazenda Pública do município extinguiu a ação sem resolução do mérito por considerar que a Atea precisaria da autorização expressa de todos os seus associados a fim de propor a demanda. A organização, contudo, recorreu, e o desembargador Marcelo Semer, relator da matéria no TJ-SP, entendeu que o pedido tem como objetivo preservar o Estado laico, e não proteger direito individual e homogêneo. Nesse sentido, a associação teria legitimidade para propor a ação. 

No acórdão, Semer escreve que a Praça da Bíblia possui “evidente destinação religiosa”, não só por seu nome, mas porque as inscrições presentes no monumento remeterem, especificamente, ao cristianismo. Segundo o desembargador, ainda que não exista vedação à frequência na praça a seguidores de outras denominações religiosas, o local seria expressamente direcionado à comunidade cristã. 

“Não se questione que o Estado laico não seja um Estado que deva reprimir as manifestações religiosas; apenas não deve subsidiá-las, posto que, se assim o fizesse, deveria fazer a todas as religiões, uma vez que é constitucionalmente proibida a escolha de uma só. O pluralismo e a liberdade de crença, portanto, nada tem de inconciliáveis”, afirmou. 

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O município, então, foi condenado a retirar as inscrições de cunho religioso do monumento, a fim de transformar “o local em espaço laico”. A Atea também pediu indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 50 mil, mas o juízo considerou que não houve “qualquer significativo desprezo à dignidade humana na elaboração do monumento que enseje a compensação pecuniária”. 

Estudioso na temática da liberdade religiosa e professor da Faculdade de Direito de Sorocaba (Fadi), Marcelo de Azevedo avalia que a decisão contempla equívocos. Segundo ele, quando um princípio como o do Estado laico vai ser aplicado na prática, é preciso analisar todo o contexto da situação, sendo que o contexto brasileiro, de cultura, história e simbologia, é marcadamente cristão. 

Para Azevedo, nesse caso específico, aspectos próprios de Praia Grande deveriam ter sido levados em consideração pela Justiça estadual. Não só porque a cidade integra uma das primeiras regiões do Brasil colonizadas por portugueses, portanto com forte influência cristã, mas também porque ela conta com uma gigantesca figura de Iemanjá, divindade celebrada pelas religiões de matriz africana, alocada em uma de suas praias. 

“Nesse mesmo município, em que a Justiça decide que uma praça não pode ter um monumento com inscrições cristãs, há uma estátua de Iemanjá, admirada por outras religiões. Isso [a decisão do TJ-SP] beira o absurdo”, opina. 

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O professor reconhece que a questão do dinheiro público é sensível, e aponta que “não é que o Poder Público não possa participar ou custear um monumento religioso, mas o uso precisa ser feito de forma moderada, neutra e que não envolva um conluio político partidário, para atender interesses privados de determinados grupos”. Da mera leitura do acórdão, no entanto, Azevedo não vê irregularidades. 

Visão monocular 

Membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-PR, o advogado Odacyr Prigol ressalta que a laicidade pressupõe que o Estado não tenha uma religião oficial, não podendo favorecer qualquer tipo de denominação religiosa. O fato de o Estado ser neutro, entretanto, não significa que ele deva ser ateu. 

Prigol julga que a decisão do tribunal - que não foi unânime, o que já demonstra a polêmica - trouxe uma leitura muito fechada da Constituição Federal, em especial de seu artigo 19. Pelo dispositivo, é vedado ao Estado financiar uma organização religiosa, mas o mesmo texto traz a ressalva os casos de colaboração de interesse público, que atingem a coletividade. 

“Dentro dessa ideia de interesse recíproco, as próprias organizações religiosas subsidiam escolas, creches, hospitais, que são, em tese, dever do Estado. A entidade [Atea] tem apenas uma visão monocular, de que o Estado não pode participar da religião, mas não enxerga que as organizações religiosas exercem um papel fundamental à sociedade”, afirma. 

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Prigol ainda opina que a inserção de versículos bíblicos em um monumento de praça não seria desrespeitoso a outras religiões, já que nenhum dos dizeres tem caráter ofensivo e podem proporcionar uma “elevação espiritual e conforto” a qualquer cidadão que por ali passar. 

No mesmo sentido, Azevedo afirma que o juízo, com “uma visão enviesada”, sequer questionou a Atea a respeito da representação concreta da efetiva ofensa ao Estado laico, daqueles que teriam se sentido ofendidos pelo monumento. Para professor, deveria haver dados concretos que sustentassem a ofensa promovida pelos versículos do obelisco. 

“A Atea tem o direito de defender seu posicionamento, mas religião não é sinônimo de parcialidade. Não ter uma religião não significa ser imparcial, e não se deve instrumentalizar a Justiça para defender visões de grupos específicos”, finaliza.

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