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O Ministério da Justiça publicou na sexta-feira (9) o sétimo relatório da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG), com dados atualizados até novembro de 2017. Estão armazenados no banco 8.225 perfis genéticos – gerados a partir de fragmentos da parte não codificante do DNA que permitem identificar um indivíduo, exceto gêmeos idênticos –, sendo 5.925 oriundos de vestígios de cenas de crimes e 2.288 de condenados e identificados criminalmente, com base na Lei 12.654/2012, que está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF). O número de perfis representa um crescimento de 20,7% em relação a maio de 2017. 

No final de dezembro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou pela constitucionalidade da Lei 12.654/2012, que está sendo discutida no Recurso Extraordinário (RE) 973.837, relatado pelo ministro Gilmar Mendes. No processo, a Defensoria Pública de Minas Gerais questiona uma decisão do Tribunal de Justiça do estado (TJ-MG) que determinou a coleta de material biológico de um réu e argumenta que essa previsão viola o inciso II ao artigo 5º da Constituição e o direito de não produzir provas contra si mesmo. 

Art. 5º

(...)

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

A lei questionada no Supremo alterou outra lei, a de número 12.037/2009, que dispõe sobre a identificação criminal daqueles que já têm identificação civil, incluindo a previsão de identificação genética de investigados, determinada por decisão judicial, quando “a identificação criminal for essencial às investigações policiais”. 

Art. 5º

(...)

LVIII - o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei;

A norma também alterou a Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/1984), que passou a prever a identificação genética obrigatória de condenados por crimes graves ou hediondos em seu artigo Art. 9º-A. Foi com base nessa previsão que o TJ-MG determinou a coleta do material genético do condenado. 

Art. 9o-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor.

§ 1o A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo. 

§ 2o A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.

No parecer ao RE 973.837, a procuradora-geral da República Raquel Dodge argumenta que não se pode invocar violação ao artigo 5º, II da Constituição, uma vez que a coleta é justamente determinada em lei – Lei 12.037/2009, modificada pela Lei 12.654/2012 –, e que a coleta do material não difere de outros tipos de obtenção de provas que dependem da anuência ou não do investigado.

“[A] lei, malgrado estabeleça obrigação, não tratou do emprego de meios coercitivos diretos para obtenção do material. Logo, não há de presumir ser possível o emprego de força, a fim de compelir o investigado ou condenado a fornecer o material biológico. Por outro lado, obtido o material genético por meio diverso não invasivo, autorizada está sua submissão à perícia, cruzamento de informações e armazenamento do perfil genético em banco de dados”, anotou a procuradora. “Nestes casos, a obtenção da prova dar-se-á a partir de prévia decisão judicial que avaliará, no caso concreto, a proporcionalidade da medida”, escreveu.

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Dodge argumentou que identificação criminal é um direito do Estado para a gestão da segurança pública e que o envolvimento do Judiciário garante os direitos dos cidadãos.  “A investigação criminal tem se valido, sobretudo nos tempos atuais, dos mais modernos meios de investigação, como escutas telefônicas, interceptação telemática, ações controladas, reconstituições criminais. Estes novos meios de prova têm sido acompanhados pelo Ministério Público e sempre autorizados pelo Judiciário, o que dá ao cidadão a garantia de que seus direitos serão preservados, ou restringidos somente ao necessário à investigação criminal, sem que lhes seja afetado o núcleo essencial”, escreveu.

O método

A Lei 12.654/2012, além de prever a coleta do material genético – capaz de identificar, mas não de revelar traços somáticos ou comportamentais; por isso os perfis são obtidos a partir da parte não codificante do DNA –, também determinou seu armazenamento em bancos de dados sigilosos, que ficam a cargo de laboratórios estaduais, integrados por um sistema nacional. 

A eficácia do método foi objeto de audiências públicas no STF em maio do ano passado. Douglas Hares, perito criminal do FBI, expôs o estado da questão e da tecnologia nos Estados Unidos, destacando que lá todos os 50 estados coletam dados de condenados por qualquer crime punido com pena maior que um ano de prisão e 31 deles coletam material já de indiciados. 

De acordo com os dados mais recentes do FBI, o banco dos Estados Unidos tinha, em dezembro, quase 17 milhões de perfis genéticos armazenados, que já auxiliaram mais de 380 mil investigações. No Brasil, segundo os dados do último relatório da RIBPG, foram 436 investigações auxiliadas pelos pouco mais de 8 mil perfis, até novembro do ano passado. 

“Nosso retrato hoje é de um banco ainda muito vazio e basicamente de vestígios – há muitos poucos perfis genéticos oriundos de suspeitos e condenados”, destacou na audiência pública a perita Meiga Áurea, coordenadora do Comitê Gestor da RIBPG, criado pelo Decreto 7950/2013, que regulamentou a lei de 2012. Isso tem uma consequência: o banco é capaz de fornecer vários “matchs” (coincidências) entre cenas de crimes, mas esses “matchs” não identificam indivíduos. 

Os peritos brasileiros enfatizaram os avanços da técnica de identificação pelo DNA em relação a outras técnicas conhecidas, como o reconhecimento presencial ou por fotografias, que tem taxas comparativamente mais altas de equívocos, e a papiloscopia (impressões digitais), sujeita a mais complicações técnicas, como a possibilidade de as papilas se desgastarem com o tempo ou pela ação humana deliberada. Estudos recentes têm também questionado a validade científica desses métodos de identificação.

De fato, em 2009, um estudo do National Research Council encomendado pelo Congresso americano concluiu que, “com exceção da análise do DNA nuclear, não se demonstrou, de forma rigorosa, a capacidade de nenhum método forense demonstrar, consistentemente e com alto grau de certeza, uma conexão entre evidências e um indivíduo ou fonte específica”, mas alertou que “embora a análise do DNA seja considerada a ferramenta forense mais confiável disponível hoje, os laboratórios podem cometer erros ao trabalhar com o DNA nuclear ou mitocondrial – erros como trocar ou perder as amostras ou interpretar equivocadamente os dados”. 

Em 2016, um outro estudo encomendado pela Presidência dos Estados Unidos concluiu que a análise de DNA de um único indivíduo ou de uma mistura de simples de dois indivíduos (por exemplo, nos casos de estupros) é um procedimento objetivo e válido, se seguir os procedimentos previstos pelo FBI para evitar misturas indevidas, contaminação, interpretação incorreta ou erros na transcrição dos dados. No Brasil, as exigências estão na Resolução 8/2104 do Comitê Gestor da RIBPG

O estudo, no entanto, levanta dúvidas sobre a confiabilidade da análise de misturas complexas de amostras oriundas de um número desconhecido de indivíduos, em proporções desconhecidas. A diferença nesses casos “reside não no processamento laboratorial, mas na interpretação do perfil genético resultante”. O relatório destaca que há esforços, ainda carentes de validação científica, para desenvolver algoritmos e programas de computador para interpretar esses dados, mas afirma que “muito mais evidências são necessárias” para validar métodos confiáveis nessas situações. 

A questão jurídica 

A Academia Brasileira de Ciências Forenses (ABCF), que ingressou como amicus curiae no processo, concorda com a Procuradoria. Em manifestação nas audiências públicas, o advogado que representa a instituição afirmou que a lei não viola o princípio da não autoincriminação. 

Como a jurisprudência do STF entende que esse princípio veda a participação ativa do réu na produção de provas – por exemplo, participar da reconstituição do crime e fornecer padrões vocais – ou a coleta invasiva de provas – por exemplo, extrair sangue –, a ABCF argumenta que a coleta de material genético, que é feita passando uma espécie de cotonete na boca do acusado ou investigado, não é nem comportamento ativo, nem método invasivo. 

O advogado avançou também na questão da recusa em autorizar a coleta do material. Para a instituição, haveria três possibilidades diante da não cooperação do investigado, do réu ou do condenado. Primeiro, se se entender que a coleta é etapa de identificação, como nenhum investigado pode se furtar a identificar-se, ordenar a coleta compulsória. Segundo, obter o material por outros meios, como a busca e apreensão de objetos pessoais que contenham material biológico. Terceiro, o estabelecimento de penalidades administrativas pelas legislações estaduais – no caso de condenados, de acordo com Lei de Execuções Penais, a recusa poderia ser entendida como falta leve ou grave. 

A União também se manifestou favoravelmente à lei, destacando que “todos os meios de identificação do indivíduo são medidas benéficas que, atreladas ao processo penal e à evolução tecnológica, destinam-se tanto à identificação de criminosos como à garantia de liberdade aos inocentes”. 

Saiba mais: STF discute banco de dados estatal com DNA de criminosos

Já a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) questiona a constitucionalidade da lei. Em relação à coleta do material de investigados, porque “a coleta destina-se, tão somente, à identificação criminal, contudo, pelo teor da referida legislação, resta evidente que o diploma legal também possibilita o uso do padrão genético como meio de prova” e o princípio da não autoincriminação previne “quaisquer coações físicas ou morais que violem a sua dignidade para obtenção de informações que possam lhe causar prejuízo”.

Em caso de recusa por parte do investigado, a Anadep pede que o STF  atribua interpretação conforme a Constituição para declarar a impossibilidade de obter-se, coercitivamente, o padrão genético, ou mesmo “declare a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 12.654/2012”.

Em relação à coleta obrigatória do material biológico de condenados, os defensores levantam dúvidas sobre a proporcionalidade da medida. “Se o propósito for a identificação criminal, é evidente que o réu condenado já foi devidamente identificado. Se o propósito for probatório, não prevê a lei a necessidade de existência de outro caso penal, ou de uma investigação criminal, em relação ao mesmo condenado, que justifique a pesquisa de prova de autoria”, diz a manifestação apresentada ao Supremo.

Dados pessoais 

O Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio (ITS), que também foi admitido como amicus curiae no processo, acrescenta outra dimensão à discussão: a de que os dados genéticos seriam dados pessoais sensíveis. De acordo com a definição que consta na Lei de Acesso à Informação – Lei 12.527/2011 – e no Decreto que regulamenta o Marco Civil da Internet, dado pessoal é todo aquele “relacionado à pessoa natural identificada ou identificável”. Além disso, o artigo 3º da Lei do Cadastro Positivo  – Lei 12.414/2011 – considera a informação genética do indivíduo uma “informação sensível”.

Analisando a legislação europeia sobre o tema, o ITS argumenta “que é indispensável, devido à sua natureza sensível, seja atribuído às informações dele derivadas do DNA um grau de proteção superior àquele conferido aos dados pessoais não sensíveis, sendo esta a tendência observada nas leis de proteção de dados pessoais adotadas mundo afora”, embora o Brasil não possua ainda uma Lei Geral de Dados que discipline a proteção a dados pessoais. A partir dessa moldura, o instituto destaca que a Lei 12.654/2012 não ofereceria as salvaguardas adequadas à sensibilidade das informações coletadas. 

Primeiro, a lei seria demasiadamente genérica ao facultar aos juízes determinar a coleta de material de investigados segundo as necessidades da investigação. Segundo, muitas das garantias individuais constam apenas do Decreto 7950/2013 e das  resoluções do Comitê Gestor da RIBPG, quando deveriam estar expressas na lei. 

“A criação de bases de dados de perfis genéticos deve ser precedida do estabelecimento, em lei, de uma série de salvaguardas e limites, com vistas a compatibilizá-la com a nossa Constituição da República e, também, com a experiência internacional sobre a matéria, o que não foi alcançado com a lei em questão”, afirma o ITS na manifestação apresentada ao Supremo.

Em terceiro lugar, embora Lei 12.654/2012 preveja que  “[a] exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito”, ela silencia sobre direitos de acesso e retificação desses dados, além de não ser clara quanto ao que fazer com os dados de eventual investigado ou réu que seja inocentado no processo. O ITS aponta também que, no caso dos condenados, a lei “deixou de prever qualquer prazo para a exclusão do seu perfil genético dos bancos de dados em questão”. 

O instituto lembra ainda, assim como os defensores públicos, que a lei não fez qualquer previsão sobre o descarte das amostras genéticas, o que “gera o risco de que a parte codificante do DNA [, que] possibilita a extração de informações sensíveis sobre a pessoa a que se refere - e que não é necessária para a identificação do perfil genético -, venha a ser utilizada”. 

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