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Cena do documentário “O Jardim das Aflições” | Divulgação
Cena do documentário “O Jardim das Aflições”| Foto: Divulgação

Uma petição, que já tem mais de 340 mil assinaturas, pede o cancelamento da palestra de uma filósofa em São Paulo. Manifestantes de esquerda tentam intimidar um cineasta que quer exibir seu filme em universidades e recomendam que outra cineasta não lance seu longa. Uma funcionária do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo é agredida depois de uma confusão num protesto contra uma performance artística em que uma criança tocou um homem nu. Em meio aos ânimos exaltados, demandas legítimas se confundem com atos de violência e reacendem o debate sobre os limites da liberdade de expressão.

A petição que domina o noticiário esta semana foi concebida por um aluno do filósofo Olavo de Carvalho, o jornalista e tradutor Bernardo Pires Küster. Encampado pela Citizen Go, o documento pede o cancelamento da fala da filósofa norte-americana Judith Butler, convidada para o evento “Os Fins da Democracia”, que ocorrerá entre os dias 7 e 9 de novembro no SESC Pompeia, em São Paulo. 

Até esta sexta-feira (3), já são mais de 340 mil assinaturas na “campanha para enviar seu e-mail ao Sesc Pompeia e pedir o cancelamento das palestras de Butler”. Segundo os organizadores da manifestação, Butler é “idealizadora e uma das principais promotoras da ideologia de gênero” (entenda) e “propõe a desconstrução da identidade humana por meio da desconstrução da sexualidade”. 

Para o autor da petição, o ato não se trata de censura, já que não é uma ação estatal e os assinantes não têm o poder de cancelar a participação de Butler no simpósio, nem de boicote, porque os signatários não iriam participar do evento. “Trata-se muito mais de um protesto, é uma manifestação popular”, diz Bernardo Küstner. “É um protesto de mais de 300 mil pessoas contra um indivíduo. Eu acho que hoje no Brasil, pelo menos esta semana, ela é mais odiada que o Lula”, brinca. 

“O objetivo da petição é fazer o nome da Butler conhecido, para todos, como a criadora da ideologia de gênero”, afirma Küster. “É importante dizer que ela não criou esse termo, nós o denominamos ideologia de gênero porque ela faz parte de um projeto político amplo, ela é um conteúdo de uma estratégia política”, explica. 

Küster ressalta que a grande adesão espontânea à petição é reflexo da opinião conservadora da maioria da população brasileira. “Nós estamos dizendo: este pedido é a nossa vontade. Agora, as pessoas até podem ir lá protestar, mas isso de maneira pacífica – ninguém tem que ir lá barrar a mulher, segurar ela pelos cabelos, jogar ela no chão, bater nela”, diz. 

“Essas manifestações têm o objetivo de fazer o que o Olavo fez nos livros e ações dele, que é expor quem são os agentes reais da confusão. É importante entender que as pessoas estão combatendo as consequências da ideologia de gênero, mas não as causas de tudo isso. A Butler não começou isso, mas foi ela quem sintetizou todas as forças e deu a forma final daquilo que conhecemos hoje”, completa. 

Violência 

Protesto pacífico não foi bem o que aconteceu na sexta-feira, 27, quando foi a vez da esquerda, de forma violenta, opor-se a uma reunião de conservadores. A confusão se armou no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), depois da exibição do documentário “O Jardim das Aflições”, inspirado na obra homônima de Olavo de Carvalho e dirigido pelo cineasta Josias Teófilo. Mesmo antes da data da sessão, a intolerância se prenunciava nas denúncias que Teófilo fez nas redes sociais: mais de 200 cartazes de divulgação do evento teriam sido rasgados por estudantes e militantes de esquerda, ligados, principalmente, ao Partido da Causa Operária (PCO) e ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB). 

Vídeos que circularam na internet mostram que os manifestantes de esquerda – que estavam em um evento paralelo organizado pelo Comitê de Luta Contra o Golpe, que exibiu o filme “Porque Lutamos! Resistência à Ditadura Militar” – ocuparam um corredor do CFCH, impedindo de sair do auditório os que haviam assistido ao filme de Teófilo. Os militantes gritavam “Vocês não deviam estar aqui”, “Fascistas de merda” e entoavam cânticos como “Recua, direita, recua”. Panfletos com o velho slogan “Esmagar o fascismo. Esmagar o nazismo” foram distribuídos no evento da militância. Entusiastas do presidenciável Jair Bolsonaro (PSC-RJ) tomaram então a dianteira, enquanto Teófilo, como mostram os vídeos, tentava apaziguar os ânimos, desencorajando a violência. Em meio a troca de imprecações, a situação saiu do controle e acabou em pancadaria. 

Teófilo conversou com a Gazeta do Povo nesta segunda-feira (30) e afirmou que a ação partiu de um infiltrado do PCO. O diretor disse que seu filme não é uma peça de propaganda política, nem parte de uma suposta guerra cultural. Para o cineasta, mesmo quem é de esquerda e vê o filme gosta do resultado, mas há pessoas que não suportam a exibição do longa, pois “ele trata de um filósofo [Olavo de Carvalho] que denunciou, há mais de 20 anos, que a esquerda tem se organizado criminosamente para se perpetuar no poder, para se favorecer na cultura, nas universidades, nos jornais”, afirmou. 

O cineasta está planejando fazer uma caravana, levando seu filme para exibição em outras universidades e espaços que assim solicitarem. Já O Diário da Causa Operária, veículo ligado ao PCO, publicou nesta quarta-feira (1º) um artigo cujo título prenuncia: “A batalha da UFPE foi só a primeira”. Confira a íntegra da entrevista com Teófilo:

Questionado pela reportagem sobre a razão de pessoas relacionadas a ele se transformarem em pivôs de discussões e eventos políticos nacionais, Olavo de Carvalho respondeu: “Porque durante meio século a elite esquerdista se habituou gostosamente a discursar para si mesma sem ser jamais contrariada. Essa moleza acabou. Que é que há de anormal nisso? Anormal era a uniformidade idiota que reinava até a publicação de ‘O Imbecil Coletivo’ [publicado em 1998], o livro com que abri um rombo na hegemonia intelectual esquerdista. Por esse rombo entraram em cena muitas vozes discordantes, o que é incomparavelmente mais saudável do que aquela monotonia prepotente que tínhamos antes. Muitas dessas vozes inspiram-se no meu exemplo, o que não quer dizer que sigam alguma instrução minha. Infelizmente, muitos palpiteiros semianalfabetos, espalhados na mídia, não sabem distinguir entre a influência difusa de um escritor e as palavras de ordem de um líder de partido”.

Liberdade de expressão 

Equacionar direita e esquerda no espaço público dá trabalho. Para Ronaldo Porto Macedo Junior, professor titular de Filosofia do Direito da USP e da FGV-SP, uma manifestação pública de protesto contra uma pessoa ou contra as ideias de alguém estão protegidas pela liberdade de expressão. “O que as pessoas não podem fazer é impor a sua vontade. Uma vez que uma instituição aceite uma pessoa dar uma palestra, manifestantes não podem impedir à força que isso ocorra”, diz. 

Isso significa que não se pode impedir a entrada no evento e que as manifestações contrárias devem ocorrer fora da sala do evento. “As pessoas podem colocar bandeira, podem até fazer barulho – o que elas não podem fazer, por exemplo, é barulho em tal medida que impeça que a outra pessoa se manifeste”, afirma Macedo Junior. “O Brasil afirma o direito à liberdade de expressão como um direito constitucional. O que não existe no nosso direito é uma jurisprudência e uma reflexão ricas e que envolvem, mais do que a definição das categorias da lei, distinções conceituais para lidar com os problemas práticos”, diz. 

A Constituição Federal garante também o direito de manifestação e reunião em locais públicos, desde que isso não impeça outra manifestação e tenha sido avisado com antecedência às autoridades públicas. De acordo com o inciso XVI do artigo 5º da Constituição, “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. 

No início de 2016, na última leva de protestos do Movimento Passe Livre, quando ainda era secretário de segurança pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), defendeu que manifestações que se movessem pela cidade avisassem de antemão todo o seu trajeto, e não apenas o ponto de encontro, como forma de organizar a cidade, respeitando o direito de ir e vir dos demais cidadãos, e até mesmo de deslocar e preparar o contingente policial para proteger os manifestantes e o patrimônio público. A proposta foi considerada razoável por uns, autoritária por outros, e nada se resolveu. 

Nos Estados Unidos, onde a Suprema Corte alargou progressivamente a proteção à liberdade de expressão a partir de uma interpretação substantiva da Primeira Emenda, o Judiciário e a administração pública lidam há muitas décadas com protestos radicalizados de ambos os lados. Isso criou uma expertise própria para tentar equacionar, no calor dos acontecimentos, os direitos de vários grupos em disputa. Em 2011, por exemplo, no julgamento de Snyder vs. Phelps, a Suprema Corte entendeu que fazer piquetes, até mesmo em funerais, é uma forma de expressão protegida pela Primeira Emenda, desde que respeitadas as regras procedimentais estabelecidas pelas autoridades públicas. 

O caso surgiu a partir de um protesto da Igreja Batista de Westboro durante o funeral de um soldado americano morto no Iraque. Os membros da igreja carregavam cartazes dizendo “Agradeça a Deus pelos soldados mortos”, “As bichas arruínam a nação”, “A América está perdida”, “Padres estupram garotos” e “Vocês vão para o inferno”. Na decisão, os juízes da Suprema Corte deram destaque para o fato e que o protesto ocorreu de forma pacífica, a cerca de 300 metros do local onde o corpo era velado, o que não atrapalhou o rito fúnebre, e de acordo com as demais exigências procedimentais das autoridades locais. 

“Mesmo a expressão protegida não é igualmente permissível em todos os lugares, a qualquer momento”, destacou a sentença. “A escolha de Westboro quanto ao lugar e à ocasião de seu piquete não está fora do alcance regulamentar do governo – ela está sujeita a restrições razoáveis de tempo, lugar ou modos”, escreveram os juízes.

Questionado sobre a importância e os limites da liberdade de expressão, Olavo de Carvalho respondeu que “A liberdade de expressão tem de ser total e irrestrita, ou então não é liberdade de expressão de maneira alguma. Se alguém a usa para a prática de crime, deve ser processado e punido. Se, sem chegar ao crime, desafia ou insulta os sentimentos morais do povo, tem de suportar que este também exerça a liberdade de expressão e o cubra de protestos. Quem não aceita isso é imaturo demais para que suas opiniões valham alguma coisa. No Brasil a esquerda praticamente inteira ainda pensa que pode dizer o que quer sem ter de ouvir o que não quer. É onipotência pueril, nada mais”.

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