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À esquerda, Dovey Johnson Roundtree, em 1963. À direita, Mary Pinchot Meyer no aniversário de 46 anos de John F. Kennedy. | Dovey Johnson Roundtree / Arquivo pessoalJFK Library / Wikimedia
À esquerda, Dovey Johnson Roundtree, em 1963. À direita, Mary Pinchot Meyer no aniversário de 46 anos de John F. Kennedy.| Foto: Dovey Johnson Roundtree / Arquivo pessoalJFK Library / Wikimedia

A morte de Dovey Johnson Roundtree, em maio de 2018, aos 104 anos, traz de volta memórias de seu mais célebre caso. Roundtree, uma renomada advogada negra de Washington, defendeu com sucesso um jovem negro, Ray Jr. Crump, acusado do assassinato de Mary Pinchot Meyer às margens do Canal C&O, logo abaixo da Universidade de Georgetown, em Washington D.C., em 1964. 

Mary Meyer era artista plástica e ex-mulher de um funcionário de alto escalão da CIA, Cord Meyer, além de amante ocasional de John F. Kennedy. Seu assassinato, 11 meses após o assassinato de JFK, em Dallas, deu origem a teorias da conspiração, já que suas conexões pessoais eram muito sugestivas. 

Mary era cunhada de Ben Bradlee e amiga de James Jesus Angleton, diretor de contraespionagem de CIA – e figura um tanto quanto bizarra e doentia. Depois que ela foi assassinada, Angleton e Bradlee vasculharam sua casa e estúdio à procura de seu diário secreto. Bradlee o encontrou e entregou para Angleton, que alegou tê-lo queimado.

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Crump, o jovem acusado pelo assassinato, era mentalmente instável. Eu acredito que Crump matou Mary (embora os tiros fatais – um na cabeça e outro no coração – fossem incrivelmente certeiros e profissionais). Trabalhando como repórter para o Washington Star, eu estava na cena do crime apenas 20 minutos após os tiros, e conversei com duas testemunhas. Fiquei de guarda sozinho ao lado do corpo de Mary, enquanto os policiais procuravam o assassino na mata entre o canal e o Rio Potomac.

Mas Dovey Roundtree conseguiu inocentar Crump por insuficiência de provas, acusação pouco sólida e pelo fato de a arma do crime nunca ter sido encontrada. Roundtree sempre acreditou que esse caso era uma parábola racial da América: homem negro indefeso vs. conspiração de poder do homem branco. 

Roundtree contou a sua história de vida em um belo livro de memórias, Justice Older Than the Law, escrito por uma mulher branca, Katie McCabe, também de Washington. Roundtree narrou e McCabe escreveu. Naqueles tempos havia gigantes na terra, e Roundtree era um deles: uma mulher heróica, do Sul racista da primeira metade do século XX. 

Eu pensei nela e em Mary como duas fascinantes – e contrastantes – personagens norte-americanas. Mary era oriunda de Nova York, Upper East Side, Manhattan, Park Avenue, Brearley School e Vassar College (e parte da Daisy Chain, no último ano da faculdade). Passava os fins de semana e verões na propriedade de 300 hectares da família, a Grey Towers, na Pensilvânia, às margens do Rio Delaware. 

A família de Mary tinha serviçais; a família de Dovey era de serviçais, que conseguiram sobreviver durante a grande depressão em Charlotte e Atlanta. 

Dovey – uma jovem brilhante, ambiciosa e de sorte – trilhou um caminho árduo para conseguir estudar na Spelman College, trabalhando como empregada e babá, até que seu patrão branco – irritado por sua petulância de almejar uma educação universitária – acusou-a falsamente de roubo, e a demitiu. 

Depois disso, Dovey passou por diferentes empregos e conseguiu se formar com a ajuda de uma bolsa de estudos e de um empréstimo pessoal feito por uma professora branca da Spelman, Mary Mae Neptune, que a ensinou a ler Shakespeare e Milton. 

(Sim, os nomes parecem ter saído das páginas de um romance de Dickens – Dovey Roundtree, Mary Mae Neptune, Ray Crump e assim por diante) 

Os protestantes franceses Pinchot, ancestrais de Mary, fizeram fortuna com a exploração de madeira e, posteriormente, fabricando papel de parede. O tio de Mary, Gifford Pinchot, foi o primeiro diretor do serviço florestal dos Estados Unidos e conservacionista engajado no governo de Teddy Roosevelt, além de governador da Pensilvânia. 

Mary teve amantes promissores antes de se casar com Cord, um idealista e herói de guerra, que voltou do Pacífico com um olho só, e subordinar-se à carreira do marido. Ela teve três filhos e se tornou uma pacata dona de casa em McLean, Virgínia, não muito longe de Hickory Hill, onde John e Jacqueline Kennedy – e depois, Robert e Ethel Kennedy – moraram por algum tempo; não muito longe da sede da CIA, em Langley. Cord Meyer havia fundado a organização World Federalists antes de se juntar à CIA, sob o comando de Allen Dulles. 

A família de Dovey passou fome e angústia com a Ku Klux Klan. Seu avô era ministro da igreja, mas sucumbiu ao alcoolismo. Foi a determinação de sua avó, profundamente religiosa e devotada aos estudos bíblicos, que manteve unida a família. Ao chegar à meia-idade, Roundtree voltou à escola, desta vez para se tornar uma ministra da Igreja AME. 

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Mary Pinchot Meyer tinha a boa aparência e as boas maneiras de moça fina e educada em Vassar. Era uma combinação das atrizes Jean Arthur e Barbara Stanwyck. Ela sabia como fascinar os homens e, sob maneiras irrepreensíveis, agia com grande ousadia, e mesmo com certa imprudência dissimulada e disciplinada. 

John Kennedy parece ter sido apaixonado por Mary. Ela teve outros amantes, incluindo o pintor Kenneth Noland, com quem teve um longo relacionamento depois de se divorciar de Cord Meyer. Dovey Roundtree não tinha tempo para essas tolices. 

Mas havia semelhanças entre elas. Tanto Dovey quanto Mary eram determinadas e independentes. Após se divorciar de Cord, Mary se mudou para o bairro de Georgetown para estabelecer uma vida própria e uma carreira séria como pintora. Ela tinha algum talento e fez parte da chamada “Escola Colorista” de Washington. 

Já Dovey foi casada por algum tempo com um colega da faculdade, Bill Roundtree, mas quando ela quis estudar Direito na Howard Law School, ele não aceitou, e Dovey abandonou o casamento para seguir seu próprio caminho. Dovey e Mary eram mulheres inquietas e ambiciosas, e ambas foram ótimas alunas. 

Dovey foi uma persona pública, mulher de ar grave, que se direcionava ao júri falando em cadência bíblica, e cujo código moral não tinha meio-termo – era pensado em termos de justiça divina. Ela era uma verdadeira artista – fosse no púlpito, fosse no tribunal. Mary, ao contrário, era inclinada a dissimulações e certa reclusão por conveniência, talvez amoralidade. 

Ambas as mulheres eram capazes de intensa lealdade, mas Mary foi uma personagem ligeiramente enigmática. Ela era culpada de traição (incluindo a traição em relação à sua amiga e colega de Vassar, Jackie Kennedy, cujo marido ela visitou repetidamente – umas trinta vezes – nas dependências da família na Casa Branca, quando Jackie estava fora da cidade. Dizem que JFK e Mary fumaram maconha juntos, e Timothy Leary teria confirmado que eles tomaram LSD). 

Dovey Johnson Roundtree tinha a ardorosa pureza associada à fase inicial do movimento dos direitos civis. Ela sugeria um ar messiânico, e sua paixão pela justiça racial pode ter obscurecido seu juízo sobre a culpa ou a inocência de seu cliente Ray Crump. Sua natureza profética lhe dizia que Crump era inocente – ele tem de ser inocente! –, embora a prosaica verdade pudesse ser outra. Seu senso de justiça era primitivo e indignado, o que desperta em mim uma atitude de reverência por sua memória.

Lance Morrow é escritor. Foi ensaísta da revista Time durante muitos anos.

©2018 City-Journal. Publicado com permissão. Original em inglês.

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