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As eleições de 2018 ficarão marcadas como aquelas em que a mídia digital ocupou o papel preponderante de formação dos referenciais em torno dos quais se constrói o debate público | Pixabay
As eleições de 2018 ficarão marcadas como aquelas em que a mídia digital ocupou o papel preponderante de formação dos referenciais em torno dos quais se constrói o debate público| Foto: Pixabay

Fazer previsões sobre como fatos presentes serão interpretados no futuro é sempre um risco e revela certa dose de pretensão. Mas não parece arriscado afirmar que as eleições de 2018 ficarão marcadas como aquelas em que a mídia digital ocupou o papel preponderante de formação dos referenciais em torno dos quais se constrói o debate público. O candidato que mais angariou votos no primeiro turno da eleição presidencial não tinha mais do que alguns segundos na TV, fator que tradicionalmente foi visto como decisivo no processo eleitoral e moeda de barganha que leva à formação de coalizões tão amplas como frouxas.

O embate político se deslocou de forma significativa para as plataformas digitais e redes sociais que se estruturam a partir delas. Essas são marcadas por forte fragmentação que leva à perda de referenciais comuns em torno dos quais era possível conceber a existência de uma esfera pública que conectava cidadãos sem vínculos pessoais. Em seu lugar, emergem inúmeras bolhas e feudos nos quais se reúnem discursos na mesma direção, reforçando certezas e empurrando os participantes para ideias cada vez mais extremadas, em que realidade e absurdo se confundem. 

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Não há aqui apego ou saudosismo em relação à estrutura tradicional da comunicação social. Apenas uma constatação. Tampouco se ignora que a formação desse referencial comum tinha como contrapartida a possibilidade de manipulação da esfera pública a partir de poucos agentes. Por outro lado, a fragmentação atual não elimina a possibilidade de manipulação, que emerge sob nova e mais complexa roupagem, mais difícil de detectar e potencialmente muito mais eficaz. 

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O que acontece no âmbito político verifica-se em igual medida no âmbito econômico da mídia. Tradicionalmente, a comunicação social enquanto atividade econômica se estruturou a partir das receitas obtidas com publicidade. Os meios tradicionais veem sua relevância econômica ser questionada pelas plataformas digitais, para as quais migram crescentemente as verbas publicitárias em busca de instrumentos que se mostram muito mais eficazes para influir no comportamento de consumo de seus usuários. Mesmo meios que se organizaram com menor dependência em relação à publicidade, como a televisão por assinatura, assistem a seus modelos de negócio serem questionados por novos serviços e formas de acessar conteúdo audiovisual. 

Essas mudanças exigem repensar a legislação que trata da comunicação social. Certas normas e discussões passam a ser anacrônicas, enquanto novos desafios emergem, completamente distintos daqueles que se colocavam no passado recente. Proteção à privacidade e uso de dados pessoais – a moeda de troca no ambiente da internet – ganham relevância e dimensões inéditas, para as quais a legislação ainda procura dar respostas. 

Embora esse novo contexto da comunicação social tenha provocado impacto significativo no processo político, o debate em torno de propostas para essa área nas eleições atuais parece ainda se apegar a modelos de regulação marcados pelo anacronismo, como no caso da chamada “regulação econômica”. O que se visa com essa modalidade de regulação é limitar a concentração da propriedade dos meios de comunicação. Assim, por exemplo, se estabelecem limites ao número de concessões de rádio e TV que podem ser detidas pelo mesmo agente. 

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No Brasil, as regras vigentes sobre o tema constam do Decreto-lei 236/67. São completamente ultrapassadas hoje e já eram incoerentes quando editadas – por tratarem concessões de rádio e TV em grandes capitais como equivalentes a concessões em cidades pequenas no interior para fins de definição dos limites. A Lei 12.485/2011 contém, ainda, algumas regras adicionais para a televisão por assinatura, que limitam a concentração da propriedade entre quem produz conteúdo e quem organiza o serviço de televisão, assim como impedem radiodifusores de controlarem empresas de televisão por assinatura. 

Nenhuma dessas regras considera as mudanças aqui discutidas e seus impactos. Tampouco servem para enfrentar os novos problemas que emergem nas plataformas digitais. Nas poucas oportunidades em que foram mencionadas no debate político ou planos de governo, foi no sentido de torná-las mais restritivas e reforçá-las, como se o modelo do passado – ainda que recente – pudesse resolver questões contemporâneas. 

Nenhum dos temas da regulação econômica parece mais deslocado do presente do que a necessidade de limitar a chamada “propriedade cruzada” dos meios tradicionais para “promover a democracia na mídia”, como sugere o plano de governo de Fernando Haddad (PT). Na prática, implicaria impedir que donos de rádios e televisões se tornassem proprietários de jornais. Quando esses eram os principais meios de comunicação existentes, a discussão tinha relevância. Em momento no qual os jornais e a própria atividade jornalística perdem sua sustentação econômica, com fechamento de veículos tradicionais ou substancial redução nas equipes de jornalistas, o efeito de limitações à propriedade será o de intensificar esse processo, e não o de promover diversidade. Os Estados Unidos, que adotavam regra dessa natureza, afastaram sua aplicação em 2017. 

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Isso não significa que a regulação econômica da mídia perdeu por completo sua razão de ser. Mas que essa discussão precisa ser avaliada no contexto mais amplo no qual a comunicação social se reorganiza a partir do uso das plataformas digitais, as quais restringem o impacto político e a viabilidade econômica da mídia tradicional. 

Ademais, enquanto certos meios tradicionais são objeto de significativa regulação, soluções concorrentes via internet florescem sem qualquer restrição, gerando assimetrias entre agentes que disputam o mesmo espaço. A televisão por assinatura, por exemplo, tem cotas de conteúdo nacional, limites à propriedade e controles diversos por duas agências reguladoras. A distribuição do mesmo tipo de conteúdo audiovisual por soluções via internet – atualmente acessíveis nos próprios aparelhos de televisão – não se submete a quaisquer dessas regras. 

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A questão não é transplantar regime regulatório pensado em outro contexto para o universo da internet – como alguns pretenderam no debate sobre aplicativos de transporte individual de passageiros. Mas repensar a necessidade das regras que incidem sobre serviços tradicionais e avaliar quais modelos de regulação são demandados pelas novas questões que emergem das mudanças nas comunicações sociais. Temas, como outros tantos, que passaram ao largo do debate eleitoral.

*Alexandre Ditzel Faraco, advogado, é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Livre-Docente pela USP.

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